Silvia Maria de Araújo · Maria Aparecida Bridi · Benilde Lenzi Motim



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O que Bourdieu quer dizer é que a família se torna uma instituição quando suas regras são cotidianamente colocadas em prática por muitas pessoas. As normas sociais da família asseguram sua existência e continuidade. Um bom exemplo é a ideia - hoje questionada - de que para existir uma família é preciso ter filhos. Ao colocar essa regra social em prática (ou seja, ter filhos), ela fica assegurada e reforça a existência de um modelo de família com filhos.

As instituições sociais são maneiras duradouras e legitimadas de fazer, sentir e pensar, estabelecidas para atender às necessidades e aos objetivos das pessoas organizadas em sociedade, exercendo uma espécie de controle social, segundo o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917). As instituições são responsáveis pela preservação e transmissão dos valores, das tradições e da cultura. Essa é a perspectiva da integração social.

Para Durkheim, o ser humano é, em grande parte, fruto do meio social em que vive, e o convívio familiar tem papel fundamental na sua formação, socializando-o. Desse modo, a sociedade é uma realidade externa e anterior ao indivíduo, pois quando este nasce aquela já está constituída com seus costumes, conhecimentos e outros bens culturais.

LEGENDA: Estudantes comemoram com familiares a aprovação no exame vestibular da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém (PA), em 2012.

FONTE: Antonio Cicero/Fotoarena

Essa forma de pensar atribui à família e a outras instituições, como a escola e a religião, o papel de promover a socialização do indivíduo e de fornecer instrumentos para seu aprendizado cultural. O processo de socialização é a transmissão da cultura ao longo do tempo e das gerações com a finalidade de inserir e ajustar o indivíduo à sociedade. Há a socialização primária, que ocorre na infância e fornece condições fundamentais para a vida social, e a socialização secundária, um processo contínuo de novas aprendizagens para conviver.

A família desenvolve estratégias para que variadas questões, como as relativas a matrimônio, herança, economia e educação, se reproduzam de uma geração para outra. Desse modo, ela tem um caráter conservador, pois nos leva a preservar e a reverenciar as tradições. Entretanto, também nos ensina a enfrentar os desafios da vida social: conflitos, diferenças, avanços, mudanças, desigualdades.

LEGENDA: Tirinha do cartunista Quino, de 2014.

FONTE: Joaquín Salvador Lavado (Quino)/Acervo do cartunista



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A família conjugal concebida por Durkheim (o marido, a mulher, os filhos menores e celibatários, cada um dos membros com sua individualidade) é uma esfera própria de ação. O que surge como novo e distintivo na família moderna, já observado pelo sociólogo no início do século XX, é a intervenção crescente do Estado na esfera privada da família.

Na teoria durkheimiana, um grupo de parentesco não é definido pela consanguinidade; é preciso que haja direitos e deveres, sancionados pela sociedade, que unam seus membros. É o caso do clã, uma sociedade doméstica constituída de pessoas que se julgam de uma mesma origem. Os que integram o clã são parentes não porque sejam irmãos, pais, primos uns dos outros, mas pelo nome de tal animal ou tal planta que trazem como emblema coletivo.

As características desse grupo de parentesco também estão presentes nas sociedades modernas e os principais direitos e obrigações são: o dever de vingar as ofensas feitas a um parente; o direito de cada parente sobre o patrimônio familiar; o direito de ter um nome; o direito de participar de certo culto. Em muitas sociedades aborígenes da Austrália, por exemplo, o grupo totêmico era importante, e a criança pertencia ao clã materno, observou Durkheim em 1896, no L'Année Sociologique.

Já na análise de Bourdieu, a família aparece para os indivíduos como um universo social separado, portador de um espírito coletivo que demarca fronteiras com o que está fora, de modo a idealizar e preservar as relações em seu interior. A ela associam-se a noção de residência, do lar como lugar estável, e o caráter de permanência do grupo doméstico - também conhecido como grupo familiar, que reúne seus membros por laços de sangue ou afinidades e valores sociais comuns, ainda que não habitem sob o mesmo teto.

FONTE: Orlando Pedroso/Arquivo da editora

[...] a família é o lugar da confiança e da doação - por oposição ao mercado e à dádiva retribuída - [...]; o lugar onde se suspende o interesse no sentido estrito do termo, isto é, a procura por equivalência nas trocas. O discurso comum frequentemente (e, sem dúvida, universalmente) inspira-se na família de modelos ideais das relações humanas (em conceitos como os de fraternidade, por exemplo), e as relações familiares em sua definição oficial tendem a funcionar como princípios de construção e de avaliação de toda relação social.

BOURDIEU, Pierre. O espírito de família. In: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p. 126.

Na família,asvidas de várias pessoas assumem diferentes papéis inter-relacionados. Os papéis sociais são expectativas de comportamento que os indivíduos carregam em suas relações uns com os outros e dizem respeito às funções a serem exercidas nos grupos, na concepção do sociólogo estadunidense Talcott Parsons (1902-1979). Por meio dos papéis, os membros de uma família se adaptam a novas situações e buscam melhores condições de vida, auxiliando-se mutuamente, como quando os jovens estabelecem um lar independente, tornam-se pais, etc.

Família é um grupo de pessoas cujos membros possuem entre si laços de parentesco - consanguíneo, por aliança ou por afinidade -, habitando ou não o mesmo domicílio.

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Pausa para refletir

Observe a imagem e faça as atividades.

LEGENDA: Cena da família de Adolfo Augusto Pinto (óleo sobre tela), 1891, do pintor e desenhista brasileiro José Ferraz de Almeida Júnior.

FONTE: Coleção Banco Safra/Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, SP.



1. Descreva como as personagens estão posicionadas no ambiente.

2. Que papel social você atribui a cada uma das personagens retratadas?

3. Você identifica relações de dominação nessa família? Justifique sua resposta.

4. Comente as diferenças entre as ações desempenhadas por homens e mulheres retratados na tela.

A família patriarcal no Brasil e seus desdobramentos

O grupo familiar é dinâmico, ou seja, assim como sofre influências do contexto social em que se insere, também contribui para promover ou apoiar mudanças no meio. Dessa forma, entende-se por que a família nem sempre foi como a conhecemos hoje. Atualmente, ela divide a função de socialização e de transmissão de valores e comportamentos com a escola, as creches, os meios de comunicação, as redes sociais e outras instituições.

No período do Brasil colonial e imperial, por exemplo, a situação era diferente. Houve um tipo de dominação em que colonizadores, em geral portugueses, uniam-se, consensualmente ou não, com mulheres socialmente submetidas a eles, como africanas escravizadas e indígenas, o que significou a multiplicação de filhos fora do casamento. Essa exploração do gênero feminino pelos colonizadores e seus descendentes resultou em inúmeras relações interétnicas.

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Entre os colonizadores portugueses havia uma elite que implantou, no Brasil, o que chamamos de família patriarcal, um modelo em que a autoridade é do patriarca e é passada apenas aos filhos homens. Em seu livro Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre (1900-1987) ressaltou que o grande fator colonizador do Brasil desde o século XVI não foi o indivíduo, o Estado ou qualquer companhia de comércio, mas a família, "a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América" (1997, p. 18).

LEGENDA: Núcleo familiar típico da elite brasileira no século XIX: Martinho Prado Jr. e sua família, em 1890.

FONTE: Acervo Iconographia/Reminisc·ncias

Até o período republicano, as famílias da elite brasileira eram bastante numerosas, com muitos filhos. Tendo por objetivo evitar a divisão das fortunas e garantir a manutenção ou melhora das condições econômicas, os casamentos e os contratos sociais se estabeleciam entre membros de famílias ricas - grandes proprietários de terras ou ocupantes de cargos de prestígio.

O processo de colonização do Brasil foi marcado pela dificuldade de administração do governo colonial, diante da extensão do território e da distância da metrópole. As famílias contavam apenas com seus membros e vizinhos, o que favoreceu o desenvolvimento de relações de compadrio e a prática do apadrinhamento, que estabelecia vínculos muitas vezes mais fortes do que os consanguíneos.

Esse tipo de relação predominou de modo ostensivo até 1930, permanecendo em várias regiões comandadas política e economicamente por centenárias famílias da oligarquia. Essas famílias caracterizavam-se pela posse de terras, de gado e de mão de obra (até a abolição da escravidão, em 1888), conferindo status social a muitos líderes locais e seus familiares, fato que favorecia o exercício do poder. Isso ajuda a explicar o caráter patrimonial ainda presente na política brasileira, em que, geralmente, as esferas pública e privada tendem a se confundir.

Os chefes políticos locais agiam segundo sua conveniência, guiando-se pela posição social e fortuna das pessoas na escolha tanto do noivo para as filhas quanto da profissão dos filhos. Os patriarcas interferiam na vida social da localidade e nos cargos e jogos políticos. Na época, as relações de gênero tinham nas esferas pública e doméstica um significado mais opressor e conservador do que encontramos hoje. A autoridade dos homens sobre as mulheres estava não apenas nas práticas sociais, mas legitimada na legislação e no funcionamento do Estado. O fato de apenas homens poderem votar durante mais de um século no Brasil independente é um exemplo do que chamamos "sistema patriarcal".

No período de maior influência desse sistema, era marcante o desequilíbrio nas relações de gênero. Pode-se lembrar, por exemplo, que as mulheres da elite, em especial as filhas, eram mantidas nos espaços privados da casa, afastadas da sala e da varanda. Considerados locais públicos, nesses espaços os proprietários recebiam pessoas que só entravam se chamadas ou autorizadas pelo fazendeiro.

Glossário:



oligarquia: refere-se a "governo de poucos", no âmbito da Ciência Política, ou seja, uma forma de governo em que o poder está concentrado nas mãos de uma ou poucas famílias de um grupo econômico. A historiografia brasileira costuma nomear o período de 1898 a 1930 de República oligárquica, pelo fato de um grupo social, o dos grandes proprietários de terra, deter o poder sobre o país (local, regional e nacionalmente).

relação de gênero: diz-se da relação social de poder determinada pela diferenciação cultural entre masculino e feminino.

Fim do glossário.



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O patriarcalismo dificultava o reconhecimento de outras estruturas familiares. Os africanos trazidos para o Brasil na condição de mão de obra escrava enfrentavam dificuldades para manter suas famílias unidas e para transmitir e manter seus próprios valores e costumes. Ao serem capturados na África, eram separados de seus familiares e, muitas vezes, encaminhados para regiões distintas no momento da venda. Quando constituíam novas famílias, nem sempre eram respeitados, a começar pelo fato de viverem em senzalas sem qualquer privacidade. Os filhos nascidos da união entre senhores e escravizadas não eram reconhecidos legalmente, embora muitos tenham sido declarados filhos em confissões e perfilhados em testamentos.

Glossário:

perfilhar: reconhecer legalmente alguém como filho.

Fim do glossário.



A família como espaço de reprodução social

No fim do século XIX e início do XX, a organização familiar no Brasil recebeu influência dos imigrantes vindos de vários países europeus e asiáticos. Eles tiveram papel importante na produção agrícola e industrial do país. Esses imigrantes constituíram famílias numerosas e, na condição de liberdade, puderam mantê-las unidas, preservando e recriando costumes e tradições de seus países de origem. Assim, agregaram à cultura local valores sociais e novas formas de educar e socializar as crianças. No meio rural, sobretudo, as famílias costumavam ser numerosas, e os filhos desde cedo compunham a mão de obra para a lavoura.

LEGENDA: Agricultores japoneses fotografados na década de 1930, no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo.

FONTE: Reprodução/Museu Histórico da Imigração Japonesa, São Paulo, SP.

Com as modificações no campo - modernização e mecanização da agricultura, diminuição da necessidade de mão de obra, antes essencialmente de origem familiar, desenvolvimento da agroindústria -, na segunda metade do século XX, muitas famílias migraram para os centros urbanos em busca de melhores oportunidades. Essas famílias atuaram como agentes de mudança no Brasil que se urbanizava, ao mesmo tempo que eram forçadas a se adaptarem à moradia nas cidades, a novos modos de vida, ao trabalho industrial ou a tarefas que desconheciam até então.

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Diante da impossibilidade de produzir para a própria subsistência no ambiente urbano e das dificuldades por que passavam em razão da baixa remuneração, esses grupos familiares se reorganizaram para viabilizar a participação de seus membros no mercado de trabalho. Assim, enquanto os filhos mais velhos exerciam atividades para complementar a renda das famílias, os filhos menores de famílias pobres passaram a ser cuidados pelos irmãos mais velhos ou por alguém da vizinhança, iam para creches ou ficavam sozinhos em casa, dependendo da idade das crianças.

Mais que responsáveis pela reprodução biológica, as famílias são "unidades de reprodução social". Nos espaços de convivência familiar, ocorre a socialização permanente de seus membros, fundada em relações que reproduzem ideologicamente e perpetuam determinados costumes, hábitos e padrões de comportamento.

Boxe complementar:



A família é um coletivo

As famílias em geral constituem uma rede. Isso significa que elas envolvem os parentes em uma trama de obrigações morais e laços de solidariedade que viabilizam a sobrevivência dos indivíduos. Valem-se do grupo doméstico e, em alguns casos específicos, da vizinhança e de outros tipos de comunidade, como clubes e associações de bairro, para garantir sua manutenção. A antropóloga brasileira Cynthia Sarti (1941-) observou famílias de trabalhadores de baixa renda e percebeu que aquele que era responsável por prover o sustento da casa teria a preferência para alimentar-se (quando havia alimentos), e os demais comeriam depois. Tal costume seria uma forma de assegurar àqueles indivíduos as condições mínimas necessárias para o trabalho e, assim, garantir a sobrevivência de toda a família. Esse exemplo ilustra bem a forma como o interesse do coletivo (família) pode se sobrepor ao interesse individual.

Outros estudos das Ciências Sociais mostram que, em famílias de classe média e alta, existem formas de o grupo investir coletivamente em seus membros, o que garante a manutenção ou ascensão de seu status social. Os pais podem priorizar que apenas um dos filhos frequente uma escola particular ou possa cursar o ensino superior sem precisar trabalhar simultaneamente, por exemplo, por entenderem que esse investimento terá retorno em benefício do coletivo. Algumas mães de classe média também optam por não dar continuidade a suas carreiras profissionais, pensando que seu tempo pode ser mais bem empregado cuidando das atividades voltadas à família e ao desenvolvimento dos filhos.

LEGENDA: Em muitas famílias, a noção de comunidade é importante, por exemplo, para criar vínculos que permitam que os pais trabalhem enquanto os filhos ficam em casa. Na foto, crianças brincam na rua na região administrativa de Ceilândia, no Distrito Federal. Foto de 2012.

FONTE: Iano Andrade/CB/D.A Press

Fim do complemento.



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Boxe complementar:



Encontro com cientistas sociais

A família não deve suas virtudes à unidade de descendência: é simplesmente um grupo de indivíduos que se en-contram próximos uns dos outros, no centro da sociedade política, por uma identificação particularmente estreita entre suas ideias, sentimentos e interesses. A consanguinidade pôde facilitar essa concentração [...]. Mas muitos outros fatores intervieram: a vizinhança material, a solidariedade dos interesses, a necessidade de se unir para lutar contra um perigo comum, ou simplesmente para se unir, foram causas igualmente fortes de aproximação.

DURKHEIM, Émile. De la división del trabajo social. Buenos Aires: Schapire, 1973. p. 27. Texto traduzido.

· Esse trecho de Durkheim, escrito em 1893, mostra que o que mantém uma família unida muitas vezes não é a consanguinidade. Relacionando essa leitura com o boxe A família é um coletivo, você consegue pensar em exemplos e situações em que os familiares facilitam sua vida? Lembre-se também de exemplos de como eles a dificultam em outros momentos e explique por quê.

Fim do complemento.



As Ciências Sociais observam a família

Dentre as Ciências Sociais, a Antropologia e a Sociologia são aquelas que têm desenvolvido mais estudos sobre questões ligadas a famílias, arranjos familiares e parentesco. Como a família é uma instituição central para compreender a sociedade, pela importância que atribuímos a ela, centenas de autores abordaram o assunto, antes mesmo de essas duas disciplinas serem "inauguradas" como ciências no século XIX.

Os antropólogos sociais, conforme afirma o inglês Tom Bottomore (1920-1992):

[...] dedicaram grande parte de seu esforço à análise dos sistemas de parentesco de determinadas sociedades, e seu estudo comparado. Esse interesse reflete o fato de ser o parentesco de importância suprema nas sociedades primitivas. É o principal fator de manutenção da unidade social, e constitui a moldura da qual o indivíduo recebe funções econômicas e políticas, adquire direitos e obrigações, recebe ajuda da comunidade. Usualmente, portanto, a forma mais efetiva de estudar a estrutura social de uma sociedade primitiva é começar com a análise de parentesco.

BOTTOMORE, Tom. Introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. p. 149.

Ao analisar a formação das sociedades indígenas do continente americano, Lévi-Strauss indicou algumas características comuns, entre as quais o sistema de circulação de mulheres, como regra de convivência entre os grupos. Essa regra consiste na cessão de uma mulher de um grupo familiar para ser cônjuge de um indivíduo de outro grupo, que retribui cedendo, também, uma mulher para casar-se com um homem do primeiro grupo. Esse sistema estabelece as alianças que organizam essas sociedades. As regras, os graus de parentesco e as relações que se estabelecem variam conforme as sociedades. Uma união que em um tipo de sociedade é proibida, em outra pode ser tolerada e mesmo promovida. É o caso, por exemplo, da proibição de casamentos entre primos paralelos e do estímulo ao casamento entre primos cruzados, que ocorre em muitas sociedades. Para desvendar essas e outras formas de relações nas sociedades indígenas, os antropólogos fizeram inúmeros estudos comparativos dos sistemas de parentesco.

Glossário:

primo paralelo e primo cruzado: categorias determinadas pelo fato de que o primo de alguém é filho de um irmão do mesmo sexo do pai ou da mãe desse indivíduo (paralelo) ou filho de um irmão do sexo oposto ao do pai ou da mãe (cruzado). Assim, um primo paralelo é filho do irmão do pai ou da irmã da mãe, enquanto um primo cruzado é filho da irmã do pai ou filho do irmão da mãe.

Fim do glossário.



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LEGENDA: Casamento kuikuro, no Parque Indígena do Xingu (MT). Foto de 1978.

FONTE: Milton Guran/Reprodução

Um dos achados mais curiosos sobre parentesco é descrito pela antropóloga inglesa Marilyn Strathern (1941-), em After Nature ["Após a natureza", sem publicação em português], de 1992. No livro, ela comenta algumas etnografias, estudos descritivos das características culturais e sociais de etnias, feitas na Papua-Nova Guiné, descrevendo sociedades em que as relações com as pessoas são desfeitas após sua morte.

Em uma dessas sociedades, por exemplo, se uma mãe vier a falecer, seu filho deixa de ser "filho", ela deixa de ser "mãe", e ambos perdem qualquer status associado a essas posições sociais. Isso nos faz perceber que, na sociedade ocidental, o parentesco é, em geral, fixo, com exceção de algumas posições conjugais. É possível ser "ex-marido", mas de maneira geral não é possível ser "ex-pai" ou "ex-filho".

LEGENDA: Mulheres com seus filhos em Mount Hagen, na Papua-Nova Guiné. Foto de 1969.

FONTE: Reprodução/Arquivo P. J. Stewart & A. J. Strathern: Universidade de Pittsburgh, EUA.

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Além das relações simbólicas que nos tornam "pai", "mãe", "filho" num sistema de parentesco, a Antropologia tem se dedicado também a entender de que forma a organização da vida comum em grupos de parentesco ou "famílias" influencia a construção de nossas visões de mundo. Janet Carsten, uma antropóloga britânica, diz em seu livro After Kinship ["Após o parentesco", sem publicação em português] que a "casa" tem uma dimensão física - o espaço, as paredes, os objetos -, mas também uma dimensão simbólica. Ela é formada pelas pessoas e pelas visões de mundo que orientam suas relações umas com as outras, com os objetos e com o espaço, relações essas exercitadas nos rituais do dia a dia. Segundo essa autora, a forma como a casa está organizada, a forma como seus habitantes fazem as refeições ou dividem tarefas são importantes momentos de construir, transmitir e reafirmar valores, conceitos e visões de mundo.

Pierre Bourdieu partia dessa mesma percepção utilizando a instituição familiar como objeto em estudos de variados assuntos, entre eles o de como a estrutura desigual da sociedade se mantém de forma tão sólida. As famílias e outros grupos sociais transmitem a seus membros uma série de valores, formas de se comportar e visões de mundo, criando uma identidade própria que lhes permite dizer quem são seus "semelhantes". Esse conjunto de maneiras de agir e sentir que os indivíduos de um grupo ou classe social compartilham entre si, chamado habitus, os predispõe a realizar práticas particulares semelhantes relacionadas a aspectos como ocupação, educação, renda, preferências artísticas, etc. A transmissão desse conjunto de propriedades simbólicas é uma das formas que os grupos com mais poder na sociedade têm para manter seu status. Informações sobre a vida familiar e cotidiana das pessoas são ferramentas centrais para os estudos sociológicos.

FONTE: Filipe Rocha/Arquivo da editora

A Sociologia e a Ciência Política abordam também a questão do poder e da dominação de determinados grupos familiares e sua perpetuação nos cenários políticos internacional e brasileiro, tendo por base a análise da riqueza e de genealogias que revelam as imbricações entre as redes de parentesco, a riqueza e o poder político dessas famílias. Provam, portanto, que esses grupos se utilizam de inúmeras estratégias para manter a coesão do grupo, seus valores, sua sobrevivência e, conforme o caso, seus privilégios, prestígio e poder. Exemplo literário de uma família oligárquica tradicional no Brasil está na trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo (1905-1975), que narra a histórica saga de Ana Terra e Pedro Missioneiro. Veja na página ao lado a árvore genealógica dessa família.

Vertentes da Sociologia veem a família por diversos ângulos. Os cientistas sociais que adotam a metodologia funcionalista procuram ver na família as necessidades sociais que ela satisfaz, como o controle da sexualidade e a procriação, o sustento dos seus membros e a garantia de um status social, a socialização, o cuidado e a proteção das crianças.

Glossário:

relações simbólicas: que não são materiais, físicas, mas decorrentes de interpretações e de significados reconhecidos, valorizados culturalmente.

Fim do glossário.



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FONTE: VERISSIMO, Érico. O continente. v. I [O tempo e o vento - parte III]. 5ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Outros estudiosos consideram a família uma unidade na qual se encontram diferentes tensões que controlam o convívio no seu interior, como as relações entre cônjuges, irmãos, pais e filhos. Essas situações podem desencadear disputas de poder em processos de socialização, de luta pela sobrevivência ou herança.

O sociólogo Talcott Parsons, por exemplo, sustenta que a família nuclear surgiu como resposta às exigências do sistema econômico da sociedade industrial. Estudos recentes e críticos apontam que a família está vinculada ao processo geral de constituição da sociedade, e é nesse sentido que, nas sociedades modernas, observa-se a paridade entre os cônjuges. Sociólogos da Teoria Crítica, como os alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), refletem sobre interesses conflitantes na instituição familiar, indagando: uma vez que deve proteger seus membros de um mundo no qual está presente a pressão social, é possível manter a função protetora da família e eliminar seu aspecto disciplinar?



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Famílias em transição

As mudanças na família, mais evidentes no século XX, originaram-se, em parte, da Revolução Industrial (que trouxe distinção entre a casa e o local de trabalho), de fatores demográficos (redução da mortalidade e da natalidade, por exemplo) e da maior mobilidade das populações. Alteraram-se os papéis tradicionais do pai e da mãe nas famílias de elite nas sociedades ocidentais e surgiram novas formas de gestão da vida doméstica.

Em geral, quando pensamos em família, logo nos vem à mente a imagem de um grupo composto de pai, mãe e filhos, baseado no modelo ocidental monogâmico heterossexual, aquele em que uma pessoa pode ter apenas um cônjuge do sexo oposto enquanto dura a união. No entanto, há, nos dias de hoje, outros arranjos em todos os contextos sociais, como uniões consensuais, pessoas casadas vivendo em casas separadas, famílias monoparentais, ou seja, aquelas que contam somente com um dos pais vivendo com seus filhos e sendo responsável pela prole, ainda que outros parentes residam na casa, entre outros.

Um fenômeno demográfico recente despertou a atenção de cientistas sociais: no Brasil, é crescente e sólido o número de famílias chefiadas por mulheres. Isso acontece não apenas porque mais mulheres têm hoje trabalho remunerado, mas porque houve também uma série de mudanças nas concepções da nossa sociedade sobre o que significa "ser mulher" e "ser homem", o que chamamos, grosso modo, de "sistema de gênero". Além disso, as reformas legislativas que passaram a permitir o divórcio por livre e espontânea vontade do casal (ou de um de seus integrantes), na década de 1970, foram fundamentais para essa mudança. Naquela época, as mulheres que chefiavam famílias eram principalmente viúvas ou aquelas cujos maridos migravam para outras regiões em busca de trabalho - como as "viúvas da seca" do Nordeste brasileiro. Mais recentemente, mães solteiras, separadas ou divorciadas predominam nas famílias monoparentais. Há uma rede familiar e profissional extensa que apoia as necessidades cotidianas de mães e pais "solteiros".

Além da ajuda de parentes (avós, primos, tios) e vizinhos, muitas famílias recorrem a serviços profissionais para suprir os cuidados básicos com a casa e o desenvolvimento dos filhos. Um exemplo pode ilustrar melhor essa situação.

Glossário:



consensuais: de comum acordo entre as partes, sem mediação de uma instituição.

Fim do glossário.

LEGENDA: Tirinha de Alexandre Beck, de 2015.

FONTE: Alexandre Beck/Acervo do cartunista



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Durante o expediente uma mãe que trabalha como faxineira faz parte da rede de apoio de uma família monoparental em que a responsável trabalha fora de casa. Para que a faxineira possa realizar seu trabalho, ela recorre a outra rede de apoio, deixando seus filhos pequenos numa creche municipal ou particular e às vezes pede auxílio a vizinhos ou parentes para levá-los ou trazê-los de volta para casa. E esses cuidados não se dirigem apenas às crianças da família, mas também acontecem com idosos, doentes ou pessoas com necessidades especiais.

Outra característica das famílias brasileiras é a diminuição do tamanho médio de seu núcleo. O número de nascimentos, por mulher, baixou de 2,3, em 2000, para 1,7, em 2015. Já a taxa de mortalidade infantil no país decresceu de 29,7, em 2000, para 13,8 mortes, em 2015, para cada mil crianças com menos de 1 ano nascidas vivas. Esses dados inserem o Brasil em um quadro de transição demográfica no qual altas taxas de fecundidade e de mortalidade têm redução. Podemos conferir esses dados nos dois gráficos a seguir.

FONTE: INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Séries estatísticas & Séries históricas. Disponível em: www.ibge.gov.br/series_estatisticas/. Brasil em síntese. Disponível em: brasilemsintese.ibge.gov.br. Acesso em: 12 fev. 2016.

Fontes: INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Séries estatísticas & Séries históricas. Disponível em: www.ibge.gov.br/series_estatisticas/. Brasil em síntese. Disponível em: brasilemsintese.ibge.gov.br. Acesso em: 12 fev. 2016. Créditos dos Gráficos: Cassiano Röda/Arquivo da editora

Mudanças nos índices de fecundidade e de mortalidade resultam em aumento na média de idade da população. A alteração do índice de natalidade levou a um menor número de membros compondo uma família, principalmente após a década de 1970. Outro fator observado se refere à redução do número de filhos por família, que em 2003 era de 1,78 e caiu para 1,59 em 2013. Esse processo ocorreu graças a uma conjunção de fatores, tais como o intenso processo migratório campo-cidade, a popularização do uso de métodos contraceptivos e as melhorias gerais das condições de vida da população.

Na área rural, a redução do número de filhos por família também foi registrada, com maior diminuição em regiões com propriedades voltadas à subsistência e à agricultura familiar, onde as famílias tiveram dificuldades para se manter. A concentração de terras para o plantio mecanizado foi outro fator que contribuiu, pois dispensou a mão de obra, agora requisitada apenas para trabalho temporário ou sazonal.

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Movimentos de mulheres e relações familiares



8 de março

[...]


me perdoe poeta e contista

nem beleza

nem mulher

são fundamentais

por que sobrepor o epíteto

ou o gênero à espécie?

fundamental é ser

mulher e

ponto. [...]

mulher é homem que volta do

trabalho e alimenta os filhos

homem é mulher que põe pra

dormir e conta histórias

essa androginia das funções

ensina novo conceito:

essência é mais [...]

Trechos do poema de Juarez Poletto. In: POLETTO, Juarez. Vaidade. Curitiba: Mileart, 2002. p. 59.

A ideologia patriarcal difundiu atitudes de dominação masculina e de submissão da mulher não apenas no âmbito doméstico como também em outras esferas sociais. Mudanças nas ideias e nos costumes de uma sociedade são processos lentos, e isso também vale para a transformação nas relações de gênero, próprias de cada contexto social e que envolvem relações de poder e tensões tanto por diferenças biológicas quanto psicoculturais.

LEGENDA: Manifestação contra a violação dos direitos das mulheres realizada no Dia Internacional da Mulher, no Rio de Janeiro, em 2015.

FONTE: Anderson Barbosa/Folhapress

Na família, a diferenciação de papéis masculinos e femininos é, em geral, reforçada pela educação. Em busca da igualdade nas relações de gênero, os movimentos feministas e outros movimentos sociais conquistaram vitórias contra a opressão. Mas, segundo os estudiosos desses temas, há muito a fazer para a construção da igualdade, seja no ambiente doméstico (em que os homens partilham pouco as tarefas com as mulheres), seja no trabalho (no qual a mulher ainda tem dificuldade de acesso a cargos e funções de altos salários).



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LEGENDA: Tirinha de Alexandre Beck, de 2014, ironiza a divisão de tarefas entre homens e mulheres no ambiente doméstico.

FONTE: Alexandre Beck/Acervo do cartunista

Os movimentos feministas têm atuado em muitos países, visando assegurar a participação da mulher de forma igualitária nas diversas instâncias da sociedade. Algumas de suas principais bandeiras são: o sufrágio universal, a participação em igualdade de condições no mercado de trabalho, a valorização dos serviços domésticos, o direito sobre o próprio corpo, o combate à violência e à opressão. Esses movimentos têm promovido modificações importantes em diversas instituições sociais, como o direito ao exame de DNA e o reconhecimento de paternidade, a criminalização da violência doméstica (no Brasil, mediante a Lei Maria da Penha), a instituição da licença-paternidade e a ampliação da licença-maternidade. As lutas feministas também transformaram o campo simbólico: por causa delas, mudamos a forma de compreender os diferentes papéis que a mulher pode ocupar na sociedade.

Desde o século XX, a família patriarcal tem se modificado, tendência que se deve às mudanças no mundo do trabalho e na educação, segundo o sociólogo espanhol Manuel Castells (1942-). Os movimentos sociais, especialmente os feministas, e a rapidez na difusão das ideias, em tempos de globalização, também colaboraram com as mudanças nas relações de gênero, afetando diretamente a legitimação de diversas configurações familiares. Durante esse período, as mulheres conquistaram a cidadania, garantindo o recebimento de salário e de direitos trabalhistas, o registro de bens em seus nomes, o direito à herança, à educação superior, entre outros.

Glossário:



sufrágio: direito de voto.

Fim do glossário.

LEGENDA: A advogada Joênia Batista Carvalho Wapixana recebe prêmio pela sua atuação na defesa dos direitos humanos. Foto de 2004. Ela se destaca em sua profissão, principalmente na defesa da demarcação de terras indígenas. Em 2013, foi eleita presidente da Comissão Nacional de Direito dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

FONTE: Dimitrios Kambouris/WireImage/Getty Images



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Boxe complementar:



Relações de igualdade na família

Apesar das mudanças pelas quais a família passou nas relações entre seus membros e na concepção de seu amparo jurídico pela Constituição de 1988, encontra-se ainda bastante arraigada em suas bases a ideologia patriarcal. Até 2002, por exemplo, o Código Civil Brasileiro (que estava em vigor desde 1916) ainda conferia ao homem a condição de chefe nas configurações familiares.

Do ponto de vista jurídico e social, a mulher brasileira por muito tempo foi considerada incapaz, devendo ser representada pela figura masculina do pai ou do marido. Tal situação só foi alterada pela Constituição de 1988, que reconheceu a união estável entre um homem e uma mulher como uma família e equiparou a posição dos sexos, além de não fazer diferença com relação aos filhos desse tipo de união e aos novos vínculos. No entanto, apesar dos avanços nas leis, sabemos que a cultura de uma sociedade não se transforma da noite para o dia.

Um novo texto do Código Civil, estabelecido em 2002, distingue-se dos anteriores, sobretudo pelo princípio da isonomia: homens e mulheres possuem direitos iguais. Além disso, outra mudança importante é que hoje não se fala mais em "pátrio poder", expressão que remete à figura masculina, mas em "poder familiar", pelo qual cabe ao pai ou à mãe, em igual medida, cuidar da família.

No entanto, em 2015, no Congresso Nacional, uma comissão de parlamentares apresentou a proposta de um novo Estatuto da Família que restringia o conceito de família à união estável entre homem e mulher, proposta que recebeu críticas por não corresponder à realidade de muitas famílias no Brasil. Esse é um exemplo de como fatores culturais tendem a mudar de modo mais lento, além de mostrar que, na história, as relações sociais não transitam de modo linear; ao contrário, alteram-se conforme as conjunturas políticas e sociais de um país.

LEGENDA: Capa de edição do Código Civil e da Constituição Federal publicada em 2012.

FONTE: Reprodução/Editora Saraiva

Fim do complemento.



Debate

Leia o fragmento do texto publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), anote suas dúvidas e, se possível, fale com o professor. Depois, em grupo, discutam e façam as atividades propostas.



Cresce o número de famílias chefiadas por mulheres

Ao longo dos últimos anos (1995-2009), a proporção de mulheres chefes de família aumentou mais de 10 pontos percentuais (p.p.). Esta proporção passou de 22,9%, em 1995, para 35,2% no ano de 2009. Isto significa que temos 21,7 milhões de famílias chefiadas por mulheres. Apesar de não se saber quais os critérios adotados pelas famílias para identificarem quem é o/a chefe, este aumento certamente indica mudanças no padrão de comportamento das famílias brasileiras. O aumento da proporção de famílias chefiadas por mulheres é um fenômeno tipicamente urbano, apesar de, embora com uma intensidade menor, também estar presente no meio rural. Ao longo do período analisado, houve um aumento de 13 p.p. na proporção de mulheres chefes de família nas cidades - passando de 24,8%, em 1995, para 37,8%, em 2009; ao passo que, no campo, o aumento foi de aproximadamente 5 p.p., sendo a proporção de famílias no campo chefiadas por mulheres em 2009 - 19,9% - inferior à proporção de mulheres chefes de família que viviam na cidade no ano de 1995. Para tentar compreender melhor o que significa o aumento da chefia por mulheres, é importante perceber em que tipos de famílias estas mulheres estão. No ano de 1995, 68,8% delas estavam em famílias monoparentais (mulher com filhos/as) e apenas 2,8% em famílias formadas por casais - seja com ou sem filhos/as. Já em 2009, 26,1% de mulheres chefes participavam de famílias formadas por casais, e 49,4%, de famílias monoparentais. Ou seja, houve um aumento considerável - mais de nove vezes - no número de mulheres identificadas como chefes nas famílias formadas por casais. Esse dado sugere novos tipos de padrões de comportamento dentro das famílias e uma possível ampliação da autonomia das mulheres.

IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4ª ed. Brasília: Ipea, 2011. p. 19. Disponível em: www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=12893. Acesso em: 25 jul. 2015.



1. Citem algumas das características e dimensões das mudanças na família brasileira.

2. Com base nas transformações da estrutura familiar indicadas pelo estudo do Ipea, discutam as prováveis implicações sociais e culturais.

97

O que há de novo nas famílias?

O britânico Anthony Giddens (1938-) considera o casal como o centro da vida familiar na sociedade contemporânea, e a intimidade como fundamento da união.

Na família tradicional, o casal unido pelo casamento era apenas uma parte, e com frequência não a principal, do sistema familiar. Laços com os filhos e com outros parentes tendiam a ser igualmente importantes, ou até mais, na condução diária da vida social. Hoje, o casal, casado ou não, está no cerne do que é a família. O casal passou a se situar no centro da vida familiar à medida que o papel econômico da família declinou e o amor, ou o amor somado à atração sexual, se tornou a base da formação dos laços de casamento.

GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 68.

Na visão do sociólogo, uma relação estável é compatível com o que se denomina "democracia das emoções", uma situação que aceita as obrigações e os direitos previstos nas leis e contempla a proteção das crianças como política pública, em que os pais devem prover a subsistência dos filhos, sejam quais forem os arranjos de vida. Essas ideias são úteis para compreender a atual dinâmica familiar, embora não se apliquem exatamente a famílias que não se baseiam em um casal, como quando uma mulher solteira tem filhos adotados ou biológicos, constituindo uma família monoparental.

LEGENDA: Um casal face a face| ilustração de Trina Dalziel.

FONTE: Trina Dalziel/Ilustration Works/Getty Images

FONTE: Filipe Rocha/Arquivo da editora

O uso de métodos contraceptivos, a adoção do planejamento familiar e a primazia conquistada pela mulher à carreira profissional contribuíram para as mudanças na família moderna.

98

Giddens refere-se à família como um local de luta entre a tradição e a modernidade, que revela uma nova sensibilidade racional diante da realidade. Os conflitos geracionais dentro das famílias são um exemplo concreto dessas tensões. Dessa forma, o processo de redução da influência do patriarcalismo foi acelerado com a difusão das novas informações e ideologias em escala mundial, modificando alguns dos valores sociais.

Um exemplo dessas modificações é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A ideia de uma infância que deve ser protegida pela sociedade como um todo, inclusive pelo Estado, nem sempre existiu. Até o século XIX, as "crianças" eram consideradas "miniadultos", que trabalhavam legalmente e, no caso das meninas, casavam por vontade de suas famílias. Crianças podiam até ser vendidas como mão de obra para trabalhos domésticos, na lavoura ou em fábricas. A difusão de um ideal de infância e o reforço desse ponto de vista por diversos países, principalmente por meio da Organização das Nações Unidas (ONU), modificaram as práticas em relação à infância em grande parte do mundo.

Essas informações, valores, ideologias e visões sociais afetaram diretamente o direito e o Estado, trazendo novas possibilidades às famílias e aos relacionamentos conjugais, com algumas consequências que podemos constatar: o aumento do número de separações e divórcios, a dificuldade em compatibilizar o trabalho com a rotina da família e a distinção entre sexualidade e reprodução. Outros fatores que influenciam a formação de novos arranjos domésticos são as uniões tardias, os relacionamentos informais, o envelhecimento da população e a maior mortalidade entre os homens.

Também os movimentos pelo respeito à diversidade sexual colaboram com as mudanças no âmbito familiar, pois questionam a heterossexualidade como norma social. Isso abriu espaço para o reconhecimento de arranjos familiares fundados em relações homoafetivas, termo usado para referir-se aos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. A união civil de duas pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por elas, possíveis em alguns países, refletem alterações nos valores da sociedade referentes às relações familiares, pois passam a reconhecer e a respeitar a diversidade. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal legitimou pela primeira vez, em 2011, a união entre homossexuais, concedendo-lhes os mesmos direitos civis de que dispõem os casais heterossexuais, como, o direito à herança, ao plano de saúde do cônjuge, entre outros.

Outras mudanças podem ser observadas no que diz respeito às ideias que temos hoje sobre conjugalidade, família e relacionamentos. Muitos casais jovens têm preferido manter relações duradouras e estáveis sem a oficialização contratual por meio de matrimônio. A possibilidade de ter abertamente relacionamentos curtos e não monogâmicos também é um fenômeno recente. Ambos os casos são indicativos dessa mudança de valores.

LEGENDA: Foto do primeiro casal homossexual a formalizar seu casamento no Brasil. Tal fato ocorreu em Jacareí (SP), em 28 de junho de 2011.

FONTE: Lucas Lacaz Ruiz/Futura Press

Glossário:

tradição: transmissão dos comportamentos coletivos e do patrimônio cultural, via memória e linguagem, ao longo das gerações.

Fim do glossário.



99

LEGENDA: Tirinha de Cibele Santos, de 2013.

FONTE: Cibele Santos/Acervo da artista

Hoje, há cônjuges que desfazem uniões anteriores e constituem uma nova família, a chamada família recomposta. Nesse caso, os papéis sociais se misturam e modificam o cotidiano: além de pai, mãe e filhos, convivem o padrasto, a madrasta, os meios-irmãos e meias-irmãs. As crianças recebem influências diversas ao circularem em diferentes ambientes familiares. Na família recomposta pode ocorrer a pluriparentalidade - compartilhamento entre pais biológicos e sociais -, ficando divididas as principais funções parentais, como alimentar o filho, ensinar valores e atitudes morais, ajudar a desenvolver conhecimentos e fazê-lo chegar à idade adulta.

Boxe complementar:

Intelectuais leem o mundo social

Pressionada por inúmeros fatores próprios da sociedade contemporânea, a família é uma instituição que apresenta dilemas aos seus membros, expressos em suas relações cotidianas. O sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett (1943-) capta essa situação na entrevista com um casal de trabalhadores da área da computação e processamento de dados, às voltas com as mudanças de "curto prazo" e o tempo acelerado do seu trabalho, e os reflexos sobre sua vida familiar com filhos:



Para esse casal moderno, o problema é [...]: como podem eles evitar que as relações familiares sucumbam ao comportamento a curto prazo, ao espírito de reunião, e acima de tudo à fraqueza da lealdade e do compromisso mútuo que assinalam o moderno local de trabalho? Em lugar dos valores de camaleão da nova economia, a família - como Rico a vê - deve enfatizar, ao contrário, a obrigação formal, a confiança, o compromisso mútuo e o senso de objetivo. Todas essas são virtudes de longo prazo.

Esse conflito entre família e trabalho impõe algumas questões sobre a própria experiência adulta. Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 27.

Glossário:

nova economia: organizada em torno de redes globais de capital, gerenciamento e informação, com inovações tecnológicas e organizacionais nas empresas.

Fim do glossário.

· Se fosse explicar o dilema do trabalhador entrevistado, Sennett diria que o capitalismo de curto prazo está corroendo "aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros e dão a eles um senso de identidade sustentável". Como você analisa a família contemporânea em relação a essa crítica do autor? Você sabe de casos semelhantes a esse?

Fim do complemento.



100

As relações familiares transformadas

As questões relacionadas às novas formas de sociabilidade e de socialização das crianças, no ambiente doméstico e fora dele, alteram os relacionamentos familiares. Um dos maiores desafios que as famílias contemporâneas enfrentam é o de criar e educar os filhos. Entre as mais pobres, há dificuldade em conciliar a maternidade/paternidade e o emprego; e, sem recursos suficientes para sustentar os filhos, os pais ou responsáveis podem até mesmo perder sua custódia. Isso, de modo geral, conduz a um círculo vicioso que mantém algumas mães, por exemplo, no limite da sobrevivência ou como dependentes das políticas públicas de complementação de renda e de outros programas assistenciais oferecidos pelo Estado.

Boxe complementar:



Socialização e educação: o papel social da família e da escola

A família vem mudando seu papel social, atribuindo algumas funções a outras instâncias, como a escola. Nesse contexto, essas instituições disputam ou compartilham a socialização da criança.

A escola é um espaço, por excelência, de transmissão cultural e de aquisição de conhecimentos, capacidades e hábitos, afirma o sociólogo francês Jean-Claude Forquin (1939-2009). Educar nesse espaço é uma ação política, e não um trabalho meramente técnico, pois exige um projeto de sociedade. O pouco tempo que os pais e responsáveis têm para educar os filhos faz com que, atualmente, as famílias esperem mais da escola em seu papel social: ela precisa considerar a diversidade cultural e fornecer padrões de comportamento, uma vez que a educação deve assegurar a aquisição de uma experiência social acumulada e culturalmente organizada.

A relação entre família e escola diferencia-se sociologicamente conforme suas origens sociais, pensa Pierre Bourdieu, para quem a manutenção do status social das elites, por exemplo, não ocorre mais exclusivamente pela herança. Hoje, é necessária sua legitimação por meio de diplomas, daí a necessidade de investimento na escolarização. Já nas classes populares, a relação com a escola é ambígua, pois, embora mantenham certo distanciamento, aceitam-na como fonte legítima de aquisição de conhecimento e como uma das poucas possibilidades de ascensão social.

Segundo a socióloga Maria Alice Nogueira, as classes médias, por sua vez, contêm gastos e limitam o número de filhos para oferecer-lhes uma educação de qualidade. Por isso aderem aos valores, normas e exigências escolares.

LEGENDA: A escola ganha espaço cada vez maior na formação dos jovens na atualidade. Na imagem de 2015, alunos de uma escola em Iranduba (AM).

FONTE: Bruno Kelly/Reuters/Latinstock

Fim do complemento.

O fato de os pais se ausentarem de casa para trabalhar e precisarem delegar parte da educação de seus filhos a creches, escolas, familiares, vizinhos ou profissionais tende a mudar a forma de transmitir valores e a troca de afeto entre pais e filhos. Por outro lado, diante das novas necessidades e valores, alteram-se as maneiras de criar, educar e socializar os filhos. Entre as mudanças, a abertura ao diálogo e às relações mais democráticas dá à criança e ao jovem a oportunidade de expor suas ideias e explicitar suas escolhas no âmbito da família.

101

Outras mudanças de atitudes revelam a conscientização das mulheres com relação aos seus direitos. O amparo de novas leis e o fato de as pessoas poderem permanecer juntas apenas enquanto desejarem reduzem a vulnerabilidade das mulheres no grupo doméstico como um todo. Nesse contexto, hoje as famílias são mais complexas, pois os papéis sociais, as regras e as responsabilidades estão sendo renegociados entre seus membros.



A reconstrução da família em condições de igualdade e a responsabilidade das instituições públicas em assegurar apoio material e psicológico às crianças são as medidas capazes de alterar o curso da destruição total da psique humana, implícita na vida instável de milhões de crianças.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 167-292.

Cada vez mais as relações familiares se constituem em parcerias econômicas e afetivas nas quais o trabalho doméstico e a responsabilidade pelos filhos são compartilhados integralmente, como sugere a poesia 8 de março, apresentada neste capítulo: "mulher é homem que volta do trabalho e alimenta os filhos / homem é mulher que põe pra dormir e conta história".

LEGENDA: "O Pintinho", de Alexandra Moraes. Charge publicada em 26 de outubro de 2012 no caderno especial Eleições, do jornal Folha de S.Paulo.

FONTE: Alexandra Moraes/Folhapress

Pesquisa

Em equipes de quatro pessoas, sigam o roteiro de entrevista para realizar uma pesquisa exploratória sobre os papéis sociais no âmbito das famílias.



1. Cada membro da equipe deve realizar entrevistas com dois pais ou mães de idades distintas - um com 60 anos ou mais e outro com idade entre 20 e 30 anos. Siga o roteiro abaixo.

a) Qual é seu estado civil (solteiro, casado, união consensual, separado ou viúvo)?

b) Quem faz parte de sua família?

c) Em sua opinião, qual é o papel do pai e qual é o papel da mãe na família?

d) O que você acha do trabalho do homem e da mulher fora de casa?

e) Quem cuida de seus filhos?

f) Quem realiza o trabalho doméstico?

g) Como você participa na educação de seus filhos?

h) Caso a pessoa seja separada ou viúva, pergunte: depois da separação ou da perda de seu(sua) companheiro(a), você constituiu ou pretende constituir uma nova família? Por quê?

2. Em sala de aula, reúnam as respostas e verifiquem as semelhanças e as diferenças entre os depoimentos dos pais e mães mais velhos e dos mais jovens. Analisem as tendências de comportamento dos dois grupos e, depois, sistematizem por escrito o resultado.

102

Diálogos interdisciplinares

As famílias são instituições sociais e organizações centrais em nossa sociedade. É por meio delas que entramos em contato com uma série de códigos culturais, sociais e simbólicos. Esses códigos nos fazem ocupar um determinado lugar social: nascer e crescer em uma família com pouco acesso à educação e a empregos estáveis não é o mesmo do que nascer numa família abastada.

LEGENDA: Agente recenseador do IBGE realiza entrevista para o Censo 2010 em Parnamirim (RN). O Censo mapeia a realidade socioeconômica brasileira buscando entrevistar, em cada domicílio do país, o responsável pela família.

FONTE: Fábio Cortez/DN/D.A. Press

Depende também das famílias a coleta de informações mais importante que o Estado brasileiro realiza: o Censo. É com entrevistas feitas nos domicílios que começa esse processo de produção de dados sobre a população do país. Durante a coleta das informações, um agente treinado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz uma série de perguntas para a pessoa apontada como responsável pelo domicílio. Essas perguntas servem para obter informações sobre a família e seus membros, que vão desde o sexo e a idade das pessoas que moram ali até condições de trabalho e renda, orçamento da casa, acesso à educação e hábitos de consumo.

As informações colhidas durante o Censo, realizado a cada dez anos, são estratégicas para a elaboração de políticas públicas que visem melhorar as condições de vida da população. Esses dados também são usados pelas empresas de iniciativa privada, para identificar e selecionar seu público-alvo e caracterizá-lo, adequando seus produtos ao interesse dos consumidores, e por organizações não governamentais, para identificar regiões que possuem dificuldades em acessar serviços fornecidos pelo Estado. Para as Ciências Sociais, esses dados são essenciais, pois ajudam os pesquisadores a elaborar perguntas sobre a sociedade e a traçar perfis de grupos sociais específicos.

Fato é que, se fôssemos ler, um a um, os questionários respondidos pelas famílias durante o Censo, provavelmente não conseguiríamos identificar as tendências e perfis comuns a elas nem enquadrá -las em certas regiões geográficas, bairros, classes sociais, etc. O tratamento estatístico dos dados é que nos permite interpretá-los de forma mais geral. Por isso, as Ciências Sociais aliam-se à Estatística, que é parte do campo da Matemática, para obter dados empíricos fundamentais aos seus estudos. Outras ciências voltadas para as humanidades, como a História, a Geografia e a Economia, também utilizam dados dos estudos populacionais para elaborar questões e explicações sobre a sociedade.

Ao mesmo tempo, sem as teorias e as percepções dos estudiosos da sociedade, esses dados não seriam produzidos de forma consistente e relevante para a compreensão da vida social. Dentro das Ciências Sociais, a área que se dedica ao estudo massivo de populações inteiras se chama Demografia.

Para conhecer as ciências que estudam e analisam os fenômenos da vida em sociedade, visite o site do IBGE Teen, uma seção da página oficial do IBGE na internet dedicada a estudantes de Ensino Fundamental e Médio: http://teen.ibge.gov.br/. Explorando as seções do site, você encontrará informações que podem ser utilizadas para analisar a sociedade brasileira pela perspectiva da História, da Geografia, da Economia ou da Sociologia.

Glossário:

demografia: palavra originada dos termos gregos demos, que significa 'povo', e graphia, 'registros'. A demografia seria o "registro do povo, da população".

Fim do glossário.



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