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Inalienável em mãos indignas de confiança
1603-1620
NA MADRUGADA DE QUINTA-FEIRA, 24 de março de 1603, a Inglaterra Tudor que Elizabeth I tinha construído com tanta paciência chegou ao fim. Em seu leito de morte, Elizabeth se comunicou por sinais e convocou seu Conselho Privado. Eles falaram os nomes de possíveis sucessores para a rainha, e quando o nome do rei dos escoceses foi pronunciado ela tocou a cabeça com a mão para que todos soubessem que ele era o homem que ela desejava que reinasse após ela. A rainha tinha tomado essa decisão marcante muito tempo antes, quando pediu perdão a Jaime Stuart ao escrever a ele sobre sua traição e inocência na execução de sua mãe Maria em 14 de fevereiro de 1586.
Ao nascer do dia, dois cavaleiros galopavam furiosamente pela estrada do norte na direção do Palácio Holyrood, em Edimburgo, para prestar homenagem ao novo mandatário das Ilhas Britânicas. Às 10 horas da manhã, em Whitehall Gate, em Londres, Jaime VI da Escócia — filho único de Maria, rainha dos escoceses — foi proclamado rei Jaime I da Inglaterra e Gales. A nação temia uma revolução, e homens começaram a reunir armas em preparação. Então Robert Cecil, a personificação das conquistas da falecida rainha tanto na Igreja quanto no Estado, falou, e os lordes e o conselho concordaram que deveriam aceitar o desejo de Elizabeth, e a guerra civil foi evitada.
Marinheiros puritanos que haviam zarpado em seus barcos para prevenir uma invasão "papista" pela costa flamenga retornaram ao porto; e os guardas dos torreões dos castelos ingleses do norte ouviram de seus mestres predominantemente católicos que, na medida em que a Inglaterra e a Escócia tinham então um só rei, o horizonte escocês já não representava território inimigo. O trabalho de reconciliação de Elizabeth tinha passado em seu primeiro teste, e o povo inglês convidou a linhagem real da Escócia a ocupar seu lugar.
Jaime I se tornou rei de um país que era ao mesmo tempo diferente e mais rico que a Escócia. Ele tinha sido rei da Escócia praticamente desde o nascimento, e aprendera sobre a realeza na dura escola da política escocesa. A Escócia, porém, era um grotão quando comparada com a Inglaterra. Embora a população inglesa estivesse apenas entre 2,5 milhões e 5 milhões de pessoas, a maioria delas vivendo no interior, os ingleses desempenhavam um papel importante na política européia desde o tempo de Henrique VIII. A sociedade rural não era uma casta fechada, como na Escócia, e freqüentemente um cavalheiro rural empobrecido podia salvar seu patrimônio encontrando jovens com grandes dotes com as quais casar seus filhos. Enquanto a corte francesa de Henrique IV encorajava a nobreza francesa a assegurar seu lugar vivendo em Paris ou Versalhes, Jaime e seus herdeiros viam o síatus de fidalgo rural como uma profissão em si. O barbarismo militar do castelo cercado de fosso era coisa do passado, e a civilização renascentista introduzida na corte elisabetana penetrou no interior do país.
Limites de propriedade foram traçados, e a prosperidade começou a se espalhar. Aqueles eram os dias serenos de orgulho da nova prosperidade, e o sucesso final do governo de Elizabeth Tudor. Jaime tinha ostensivamente herdado todas as glórias de Elizabeth, mas na realidade elas eram apenas miragem, e um falso legado.
As cidades abrigavam uma pequena parte da população inglesa, e eram freqüentemente vítimas da peste e de condições sórdidas. A higiene básica era desconhecida, e doenças e mortalidade infantil impediam o crescimento populacional. A medicina era baseada mais em superstição que em ciência, os hábitos pessoais eram imundos tanto entre ricos quanto entre pobres, e o padrão de decência pública não resistiria às exigências ocidentais do século XXI.
Apesar da natural tendência inglesa a permanecer insular e desconfiar de estrangeiros, os ingleses tinham sido enfeitiçados pelos holandeses, e sob Elizabeth tinham sido dadas lições sobre o modo de vida holandês — tanto como amigos quanto como inimigos da Inglaterra. A supremacia holandesa nos mares; sua capacidade de manter o pequeno país livre da guerra e da destruição como um oásis de prosperidade em meio à selvageria da destruição motivada pela rivalidade religiosa que grassava por toda a Europa; sua filosofia humanista original; e seus progressos em ciências, filosofia e artes, na agricultura, jardinagem, finanças e comércio se tornaram uma visão utópica para a Inglaterra nos últimos anos do reinado de Elizabeth. Em grande parte como a maioria dos países de hoje, a Inglaterra de Elizabeth compreendia as vantagens oferecidas pelo desenvolvimento tecnológico. O investimento em tecnologia tinha criado uma máquina de guerra mais eficiente, como pôde ser visto na derrota da Armada espanhola.
Os católicos eram tolerados, desde que praticassem sua religião em segredo, como recusantes. Ainda assim, segundo os padrões de hoje, o humanismo inglês era baixo. O tratamento dispensado por eles a outras raças não era melhor que o de holandeses ou franceses, com a exceção das Inquisições espanhola e portuguesa. A prática escandalosa de "caça às bruxas" permanecia sob controle, diferentemente do que acontecia no restante da Europa, em grande parte graças à peremptória recusa de Elizabeth em admitir leis mais duras que "não admitissem que uma bruxa vivesse". Com a ascensão de Jaime ao trono, tudo isso mudou, e um surto violento de "bruxamania" tomou conta da nação, como havia acontecido sob Jaime na Escócia.
O novo rei era inteligente, embora um pouco irritadiço; um bom cavaleiro; dedicado à caça, à teologia e a rapazes bonitos; dotado de um espírito vigoroso, e no auge de sua vida aos 38 anos de idade. Ele tinha modos flagrantemente grosseiros, arrotando e soltando gases em público. Ele adorava beber, mas nunca ficava embriagado. Ele tinha uma disposição autoritária em política, era facilmente bajulado, não gostava de aparições públicas e acreditava no direito divino dos reis.
Embora Elizabeth tivesse longamente sustentado um status semi-divino, nunca reivindicou ou proclamou isso. Jaime I, em contraste evidente, afirmava em seus escritos e em seus pronunciamentos públicos que os reis eram lugares-tenentes de Deus na Terra. Ele fazia sermões ao Parlamento e até mesmo a seu povo sobre isso, e dessa forma eliminou a anterior sobriedade de Elizabeth na corte. Ele estava determinado a ter uma corte mais magnífica que a de Elizabeth e a criar uma classe de nobreza inteiramente nova. Em sua jornada de um mês rumo ao sul, de Berwickpara Londres, ele "nomeou 237 novos cavaleiros", de acordo com o Calendar of State Papers. A corte de Jaime iria se tornar sinônimo de extravagância e corrupção à medida que o rei cobria seus favoritos de cargos, títulos, terras e dinheiro.
Jaime pretendia manter no cargo Robert Cecil, passar a perna no papa, manobrar o novo rei da Espanha, Felipe III, converter os católicos ingleses por proclamação e guiar seus súditos no caminho da unidade. Ele se via como o "Restaurador da paz perpétua na Igreja e na Comunidade Inglesa". Mas ainda havia um grande obstáculo a ser superado: ele não sabia nada sobre as leis e as liberdades da Inglaterra — tanto no espírito quanto na prática — e ordenou que um ladrão que roubava a multidão que o saudava em Newark, Nottinghamshire, fosse enforcado sem julgamento. Ele estaria perto do final de seu reinado antes de começar a lidar com essas "anomalias cansativas" das regras constitucionais e dos procedimentos parlamentares — tarde demais para consertar algo.
Embora pedante, ele era humano. Ele era instintivamente caloroso com seu povo, exceto quando aborrecido, mas tinha uma incomum capacidade de titubear inconscientemente e era raivoso em suas críticas a qualquer um ou qualquer coisa que não gostasse. Ele também era fundamentalmente homossexual, e os favoritos que ele escolhia freqüentemente tinham o desejo inato de exercer o mau poder em vez do bom, muitas vezes com resultados monstruosos para a nação. A maior falha de Jaime era sua incapacidade de distinguir um bom homem de um patife, ou um homem sábio de um tolo. Ele fugia da excelência e escolhia seus conselheiros com base em seus relacionamentos amorosos pessoais com Robert Carr e George Villiers, o futuro duque de Buckingham.
Jaime desposara Ana da Dinamarca alguns anos antes. Ela deu a ele uma filha e dois filhos — o mais velho sendo o príncipe Henrique, o mais jovem, o príncipe Carlos. Quando Jaime seguiu para o sul para tomar posse da coroa da Inglaterra, escreveu uma carta amorosa a seu filho e herdeiro, o príncipe Henrique:
Não permita que essa notícia o deixe orgulhoso ou insolente, pois filho de rei e herdeiro era antes, e não mais que isso. O acréscimo que desta forma pode repousar sobre você traz em si um pesado fardo. (...) Receba todos os ingleses que o visitem como seus súditos amorosos, não com aquela cerimônia reservada aos estrangeiros, mas com a cordialidade que neste momento eles merecem. Seja diligente e sério em seus estudos, para que quando venha ao meu encontro eu possa louvá-lo por seus progressos no aprendizado. (...) Adeus, seu Pai amoroso, Jaime R.
Jaime iniciou seu reinado com uma opulência que indicava como ele pretendia que continuasse. Ele envolveu esta carta e o soneto que escreveu no final dela em veludo púrpura, adornado de um lado com as Armas da Escócia em uma placa de ouro, coroada e circundada pelo colar e as jóias de Santo André, e com o lema EM MINHA DEFESA DEUS ME DEFENDE. As margens da capa eram adornadas com cardos, o símbolo da Escócia, em ouro.
Jaime tinha consciência de que a primeira impressão conta, e que seu cortejo rumo a Londres deveria ser ornado do maior refinamento, não apenas para ele, mas também para sua esposa. Elizabeth tinha transformado a moda em uma expressão fundamental de seu poder, e a rainha de Jaime não seria ofuscada por ternas lembranças da velha rainha na mente das pessoas. Alguns dias depois de ter escrito sua carta para Henrique e ainda no norte da Inglaterra, ele escreveu para o lord keeper e outros ministros em 15 de abril sobre jóias para a rainha Ana, deixando claro que:
No tocante às jóias a serem enviadas para nossa Esposa, nossa intenção não é ter qualquer das principais jóias do Estado enviadas tão logo nem tão longe (...) consideramos bom torná-los cientes de que seria conveniente que além de jóias fossem enviadas algumas das damas de todos os graus que serviam à rainha assim que passar o funeral, ou algumas outras, que os senhores considerem adequadas e mais desejosas de servir e que sejam capazes de enfrentar trabalho, para encontrá-la assim que puderem em sua entrada no Reino, ou logo após; pois devemos estar atentos à sua honra.
Quando Jaime chegou a Londres, o embaixador francês, Louis de Harlay, barão de Monglat, soube que sua proposta em nome de seu irmão para a venda do diamante Sancy seria bem recebida. Não apenas o Sancy era sedutor por sua importância histórica, mas também o argumento de venda de Monglat incluía a verdade torturante de que, apesar de todos os esforços da rainha Elizabeth, a gema escapara de suas mãos. O Sancy se tornaria o símbolo do ápice do poder de Jaime — a "jóia na coroa" da Inglaterra. Jaime foi fisgado pela idéia de que as jóias da coroa inglesa poderiam se tornar as mais fabulosas da cristandade — e ele instruiu seus ministros a concluir a compra.
A coleção de jóias da coroa inglesa cresceu tremendamente sob Elizabeth, por meios lícitos e ilícitos. Ela aceitou um grande número de jóias de vários governantes da Europa como "garantias" para seus empréstimos de homens e artilharia para combater nas guerras continentais, algumas vezes devolvendo as gemas, outras não. Como os mercadores que haviam emprestado dinheiro a dom Antônio de Crato de Portugal descobriram às suas próprias custas em 1582, nem sempre se podia confiar que a rainha da Inglaterra pagaria por garantias recebidas, e William Cecil, lorde Burghley, escreveu a ela em mais de uma oportunidade recomendando que esses cavalheiros fossem tratados de forma justa:
Com vossa graça, Majestade
Meu senhor de Leicester, vindo a mim, me levou à casa de Vossa Majestade para saber minha opinião sobre vosso Grande Diamante [o Espelho de Portugal], e como ele chegou à sua custódia pelo dinheiro que certos mercadores de Londres emprestaram a dom Antônio por Vossa Majestade. Esses mesmos mercadores devidamente solicitam pagamento, e, em minha opinião, a consideração por Vossa Majestade, mais que por sua jóia, é grande e real, e que este pagamento cabe apenas a Vossa Majestade, pelo qual tem um compromisso. (...) Penso que Vossa Majestade certamente pode se orgulhar de ter a Jóia em vossas mãos e deveria pagar por ela de vosso próprio dinheiro e através de vossos magníficos bens aliviar vossos mercadores que, por seu dever leal para com Vossa Majestade, cuja fama nenhum outro obscureceu, diante de Vossa Majestade podem ter melhor destino, como costuma ser e embora eu não goste de ocultar vosso dinheiro fazendo os pagamentos lentamente, Vossa Majestade tem como política pagar por si mesma, com seu dinheiro de prata disponível ou barras estocadas. Assim, se eu me atrevo a escrever para Vossa Majestade é por meu senhor Leicester ter dito para fazê- lo. Vosso mais humilde e puro servo, W. Burghley.
A coleção de jóias da coroa inglesa sem dúvida devia muito de sua proeminência às transações duvidosas de seus monarcas. A mais antiga gema da coleção, o diamante em lapidação mesa Espelho de Nápoles, pertenceu ao rei Luís XII da França por volta de 1500. Três meses depois da morte de sua esposa, Ana da Bretanha, em 1514, ele se casou novamente com a irmã de Henrique VIII, Maria, e deu a ela a jóia. Luís morreu no dia de Ano-Novo do ano seguinte e Maria retornou à Inglaterra, já tendo se casado em segredo com o duque de Suffolk. Henrique ficou apoplético e confiscou o tesouro de sua irmã, incluindo o Espelho de Nápoles, que fora avaliado em 60 mil coroas. O diamante de Ana Bolena, uma grande pedra em forma de lágrima semelhante a uma ponta de lança, pesava aproximadamente vinte quilates e tinha sido um presente de Francisco I da França. O diamante foi confiscado do barão de Samblançay, superintendente de finanças de Francisco, quando este foi considerado culpado de peculato em 1527 e sentenciado à morte. Ana recebeu o presente na reunião do Campo do Velo de Ouro em 1532, e essa pedra se tornou o primeiro diamante da Europa a ser considerado amaldiçoado, já que seus dois primeiros proprietários foram enforcado e decapitada, respectivamente.
Com a ascensão de Jaime I ao trono vieram as jóias da coroa da Escócia, incluindo o Grande Harry, também conhecido como a Pedra da Letra H da Escócia. Essa jóia pertencia a Maria Stuart já em seu inventário de jóias de 1561, que foi compilado depois da morte de seu primeiro marido, Francisco II da França. Quando a rainha Elizabeth ofereceu "asilo" a Maria após sua fuga da Escócia quando Jaime tinha um ano de idade, ela também surrupiou todas as jóias de Maria.
Mas era o Sancy que Jaime cobiçava. No dia 10 de março de 1604 foi finalmente concluído o negócio pela pedra de 55,232 quilates. Ela foi vendida por apenas 60 mil écus, em vez dos 100 mil écus que Harlay de Sancy pedira oito anos antes ao duque de Mântua. Na undécima hora, o rei concordou em pagar 30 mil écus na entrega (10 mil mais que o originalmente estipulado), com o restante a ser pago nos dois anos seguintes.
Jaime estava radiante de orgulho com a aquisição do mais importante diamante da Europa e avisou a seu joalheiro que desejava que o Sancy estivesse pronto para seu cortejo de coroação em março de 1605.
O Sancy foi engastado em um famoso ornamento para chapéu conhecido como o Espelho da Grã-Bretanha, suspenso em um grande losango brilhante feito de quatro grandes diamantes colocados lado a lado, dando a impressão de um único diamante gigantesco. Duas das outras pedras usadas na jóia foram avaliadas em 36 quilates cada, com um diamante losangular de verso plano de 12 quilates e o Grande Harry de 20 quilates. Jaime também tinha outros ornamentos para chapéu, incluindo um descrito no inventário real de 1606 como "uma bela jóia, como uma pena de ouro, contendo um belo diamante mesa no centro e 25 diamantes de diversas formas feitas de variadas outras jóias", O outro ornamento para chapéu favorito do rei era o Três Irmãos — que após 126 anos foi finalmente reunido ao Sancy
Mas nenhuma dessas jóias fazia parte da grande coleção de jóias de Escócia e Inglaterra, nem fizeram parte das insígnias da coroação real, que eram usadas nas cerimônias oficiais de coroação na Inglaterra desde o século VIII. Em função do acidentado histórico de penhorações, pilhagem e dilapidação da coleção de jóias da coroa ao longo dos séculos, no dia 29 de fevereiro de 1605 Jaime autorizou o lorde tesoureiro a fazer um novo inventário das jóias da coroa na Torre de Londres. Diferentemente do que acontece hoje, essas jóias não eram expostas ao público, e havia pouco que impedisse qualquer monarca futuro de continuar a negociar essas gemas de valor inestimável como parte de seu tesouro pessoal. Jaime estava ansioso para salvaguardar a sua coleção — a mais fabulosa do mundo — para as gerações futuras, e com a conclusão do inventário declarou todas as jóias da coroa inalienáveis — incluindo o Sancy e outras gemas que ele tinha adquirido ou iria comprar.
A ânsia de Jaime e Ana por jóias alimentou a indústria real de joalheria e lapidação que havia brotado no período Tudor. Os príncipes Henrique e Carlos foram cobertos de diamantes e outras jóias adequadas à sua posição, e foram pintados retratos de Henrique usando jóias que indicavam seu interesse pelo aprendizado e por expedições marítimas e militares. Um dos três grandes broches de diamante no chapéu em seu retrato pintado por Garter em 1604 é coroado com um barco; outro tem uma esfera armilar em sua base.
Cortesãos jacobitas pegaram a "febre das jóias" e patrocinaram joalheiros reais, gastando muito, freqüentemente além de suas possibilidades. Após anos de privação como rei da empobrecida nação escocesa, Jaime estava determinado a desfrutar dos muitos confortos materiais que a sorte tinha concedido a ele. Para Jaime, a Inglaterra era a terra prometida. O único problema era que as aparentes glórias de Elizabeth tinham sido obtidas ao custo de muitos anos de desarmonia com a Europa católica, escalada inflacionária e o custo de modernizar a marinha da Inglaterra. Na verdade, Jaime herdara dívidas, não fundos, e tinha poucos meios à disposição para sustentar o estilo de vida ao qual ele acreditava ter direito.
Seu maior problema era como sustentar o governo. Os custos do reino tinham se tornado cada vez maiores, e esperava-se que o rei vivesse "por conta própria" — ou seja, com os rendimentos das terras da coroa e outras obrigações estabelecidas séculos antes, na época feudal. Só era possível pedir dinheiro ao Parlamento, que o rei se recusou a convocar por dez anos, no caso de uma declaração de guerra. Uma forma de conseguir dinheiro era ordenar como cavaleiros homens que pagassem seus tributos de vassalagem. Talvez tenha sido por isso que Jaime elevou mais homens que qualquer outro monarca. Outro método à sua disposição era tentar cobrar impostos da pequena nobreza proprietária de terras em época de paz pelo trabalho cotidiano de governar, mas, naturalmente, isso era muito impopular. Â terceira alternativa era prescindir do Parlamento — uma decisão que estaria em sintonia com o que estava acontecendo em todo o continente na época — e assim exercer plenamente o direito divino real de impor todos os tipos de impostos e obrigações. Todos esses métodos de levantar dinheiro tinham sido utilizados no passado, de modo que tanto o Parlamento quanto o rei podiam igualmente alegar que o direito estava do seu lado. Jaime colocou em marcha uma série de acontecimentos que resultariam em uma progressiva erosão da confiança entre a monarquia e o povo, e isto culminaria em desastre para ambos.
Em 1603, Jaime iniciou seu reinado firmando a paz com a Espanha e produzindo um enorme surto de atividade econômica. No mesmo ano, Jaime convocou uma conferência teológica em Hampton Court para os puritanos anunciarem suas exigências para uma nova reforma na Igreja da Inglaterra. Embora a conferência tenha sido um absoluto fracasso, Jaime quis sustentar o conceito de uma Igreja verdadeiramente nacional, como Elizabeth tinha feito. Como calvinista, Jaime compreendia a base do movimento puritano na Inglaterra e o fato de que seus "ministros divinos" praticavam a fé em ação. Mas os católicos, apesar de terem recebido garantias de Jaime, enquanto ele ainda estava na Escócia, de que teriam liberdade de credo, continuavam descontentes. Multas estabelecidas sob Elizabeth, mas nunca cobradas, de "recusantes" eram agora impostas em troca da permissão de missas públicas. Os católicos eram instados a transferir sua lealdade do papa para o rei, e enquanto os puritanos e os anglicanos aplaudiam as medidas, os católicos ficavam alarmados.
Em novembro de 1605 foi frustrado um complô conhecido como Conspiração da Pólvora, para assassinar toda a família real e todos os membros do Parlamento, tramado pelo católico Robert Catesby. Se ele tivesse sido bem-sucedido, teria sido a maior catástrofe a atingir a infra-estrutura política, econômica e social de uma sociedade ocidental. Catesby e seus conspiradores não eram fanáticos — eles eram homens desesperados, lutando por sua própria existência — e, a não ser pelo fato de que acreditavam no assassinato de todo o establishment inglês como o único meio de atingir seus objetivos, sua coragem e seu sacrifício pessoal devem ser admirados e sua situação difícil lastimada.
Todos os conspiradores eram "cavalheiros de nome e sangue". Guido "Guy" Fawkes, um soldado profissional que os conspiradores trouxeram de Flandres da legião católica inglesa que lutava pela Espanha, tinha se alistado a serviço da Espanha após vender sua propriedade em Yorkshire. Ele tinha aprendido a arte da guerra com holandeses e espanhóis, e mostrou a seus comparsas como cavar um túnel seguro do porão de um prédio até as fundações das Casas do Parlamento. Trinta e seis barris de pólvora, carregados com grandes barras de ferro para atravessar o teto da galeria subterrânea, foram estocados durante seis meses até o dia de abertura do primeiro Parlamento de Jaime, em 5 de novembro de 1605. Os conspiradores foram descobertos como resultado de uma carta cuidadosamente redigida enviada a lorde Monteagle, cunhado do conspirador chamado Tresham, que dizia:
Eu o aconselho a cuidar de sua vida, a apresentar alguma desculpa para evitar comparecer a este Parlamento; pois Deus e o homem se uniram para punir a iniqüidade desta época. Não negligencie este aviso e retire-se para o campo, onde poderá esperar pelos acontecimentos em segurança, pois embora não haja qualquer aparência de alguma agitação, eu digo que eles irão receber um terrível golpe deste Parlamento, e eles não verão quem os feriu.
Robert Cecil, que pouco antes fora elevado ao título de lorde Salisbury, recebeu a carta de Monteagle, que temia ser implicado na conspiração. Mas Cecil não tinha idéia de quem procurar ou onde procurar. Cecil mandou que homens de sua confiança fizessem buscas discretas nas Casas do Parlamento. Na tarde de 4 de novembro, o conde de Suffolk cruzou com um vigia solitário na galeria subterrânea do Parlamento e perguntou a ele a quem pertenciam as barras de ferro e madeira amontoadas nas sombras. O vigia era Fawkes, que respondeu honestamente que elas pertenciam a lorde Percy, omitindo, entretanto, que Percy era um dos conspiradores católicos. Às 11 horas da noite Fawkes foi arrastado, amarrado e lutando, para a Torre de Londres.
Catesby e muitos dos outros conspiradores foram rastreados e mortos em Holbeche House, Staffordshire. Os poucos conspiradores remanescentes foram levados de volta a Londres, sangrando por ferimentos mortais, para enfrentar julgamento e morte certa. O fato de que a conspiração foi denunciada por um par católico indica que o esquema não tinha amplo apoio da comunidade católica, que estava ela mesma dividida em facções menores.
Fogueiras foram acesas e orações de agradecimento feitas em igrejas de todo o reino. O próprio Jaime acreditava que o Sancy e suas outras pedras preciosas trouxeram a ele sorte — e talvez invencibilidade — e que ele só poderia se tornar cada vez mais forte. Jaime decretou que aquela "Noite de Guy Fawkes" seria comemorada em todo o território a cada 5 de novembro, com um serviço de ação de graças especial em todas as paróquias. Os católicos foram obrigados a fazer ao rei um Juramento de Supremacia sobre o papa. Após um breve período de terror no qual católicos foram aprisionados ou multados, Jaime maquinou um plano para fechar as feridas religiosas. Ele iria casar seu filho e herdeiro, o príncipe Henrique, com uma princesa católica, e seu filho Carlos com uma princesa protestante. Em dezembro de 1605, um embaixador foi enviado à Espanha para iniciar as negociações com Felipe III pela mão de sua filha, a infanta Maria, para o príncipe Henrique.
Enquanto isso, Salisbury se concentrou em taxas de importação como a melhor forma de sustentar a família real. Impostos eram forçados para regular o comércio e faziam parte da política externa — e tudo o que dizia respeito à política externa fazia parte das prerrogativas reais. Jaime tinha encontrado sua válvula de segurança.
Então veio a tragédia. Em 1612, o talentoso e leal Salisbury morreu, seguido pouco depois pelo herdeiro de Jaime, o príncipe Henrique. Henrique era um jovem de excepcionais perspectivas e tinha apenas 18 anos de idade quando contraiu febre tifóide. Jaime tinha investido todas as suas energias na sucessão de Henrique, ignorando inteiramente seu filho mais jovem e fraco, Carlos. O rei ficou simplesmente arrasado. Todos os seus planos e esperanças foram transferidos para o insípido príncipe Carlos, e Jaime entrou em uma espiral descendente.
Sua corte se tornou cada vez mais marcada por escândalos, como o envenenamento de sir Thomas Overbury por sua resistência ao divórcio de Francês Howard para se casar com o então favorito de Jaime, Robert Carr, então conde de Rochester. A saga sórdida de seu caso, noivado e o assassinato de Overbury foi apresentada à Câmara dos Lordes, e seus lacaios foram enforcados. Jaime interferiu para salvar Carr e sua nova esposa, e eles foram autorizados a passar sua existência em retiro, mas o escândalo expôs sua corte por sua ativa perversão da justiça. Outros cortesãos sabiam que o único caminho para o coração do rei era instigar nele o amor por outro homem, e encontraram o empobrecido filho mais novo de um cavalheiro de Leicestershire, George Villiers.
Villiers era considerado o homem mais bonito de sua época e foi preparado para atrair o interesse do rei. Jaime caiu de amores, fazendo de Villiers visconde em 1616 e duque de Buckingham em 1623. Mas Buckingham se mostraria mais perigoso que Carr e qualquer outro de seus antecessores. Ele combinava ambição cega, aspirações políticas e total inépcia, e enquanto Jaime envelhecia e se tornava mais enfeitiçado por seu "cão" (o apelido dado a Buckingham por Jaime), o duque levaria a nação à beira da catástrofe.
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