A dama Do Labirinto



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Capítulo VI

A tensão que pairava pelas dependências de Sevenoaks era mais densa que o leite que Desmond colocou diante de Pointisbright naquela noite. Parado junto à entrada oculta do labirinto, ele travava uma batalha consigo mesmo. Queria ver sua misteriosa donzela, porém um novo conflito se instalara em seu peito: naquela tarde sua noiva havia se apossado de um naco de seu coração.

Com coragem e determinação, Aislin, a noiva idosa que ele não queria nem precisava, conquistara sua admiração, seu res­peito e sua lealdade. Não era sempre que alguém lhe inspirava uma reverência inabalável. Aislin de Sevenoaks, a despeito da idade ou da aparência, era uma pessoa sem igual. Tratava-se de uma mulher de fibra, de princípios... Uma mulher que pre­feria enfrentar a morte a abrir mão de suas convicções. O co­ração dele inchava de orgulho pela dama que o tinha recusado.

― Lamento que ela não me queira por esposo ― Desmond disse a Pointisbright. ― Um homem seria afortunado por ter como companheira, uma mulher como Aislin. Com alguém assim a seu lado, qualquer um haveria de se sentir um rei.

Pena que ela tivesse idade e não pudesse gerar filhos... Mas, apesar desses empecilhos, seus sentimentos para com a noiva que não o queria haviam mudado e eram agora uma mistura de orgulho e frustração. De sua parte, aceitaria tomá-la por esposa, de bom grado e com imensa satisfação, porque ela pos­suía um coração e um espírito heróicos.

Só que ela não o queria.

Por conta da confusão e do pesar que o acometiam, Des­mond não conseguia entrar no labirinto naquela noite. Nem mesmo quando Pointisbright terminou de tomar o leite e em­brenhou-se pelo corredor recoberto de folhas secas ele encon­trou forças para seguir no encalço do bichano. Não poderia fazê-lo. Não agora... Talvez nunca mais. Pois se o fizesse, es­taria sendo desleal para com Aislin, uma dama honrada demais para ser enganada por um homem cativo do desejo por outra mulher.

Não, isso ele não podia nem iria fazer.

Aislin ficou olhando para o relógio de sol. A meia-lua estava alta no céu e Desmond não aparecera.

― Por quê? ― ela indagou a Pointisbright, sentado a seu lado no banco de pedra. ― Agora que a castelã recusou-se a desposá-lo, por que ele não vem para mim?

A perplexidade que tomava conta de seus pensamentos era uma adaga afiada a lhe dilacerar a autoconfiança e abrir fendas em seu coração. Parte dela estava extasiada com o fato de Des­mond ter se lançado em defesa de Aislin, outra parte queria que ele viesse ao jardim secreto à procura da donzela sem nome.

Ainda que as duas mulheres fossem ela, Aislin tinha a sen­sação de não ser nem uma nem outra. Isso era como um punhal cravado em sua alma. Mas se Desmond soubesse que ela era ambas...

― Ele não pode saber ― disse num murmúrio tristonho. ― Eu o quero como Aislin e como a donzela, só que ele não ama nenhuma das duas.

Desmond andava de lá para cá quando o cavaleiro chegou. A chama dos archotes tremulava nas vidraças de seus aposen­tos como ouro líquido em meio à escuridão da noite, enquanto a guarda gritava os brados de prontidão. Alguns momentos depois, o ranger de metal e madeira anunciava que a ponte levadiça era baixada.

Pressentindo que as notícias não seriam nada boas, ele dis­parou para o salão para verificar quem teria sido admitido no interior da fortaleza àquela hora da noite. No caminho até lá, viu-se envolvido por um murmúrio de vozes, pelo barulho ás­pero do portão levadiço que era içado, pelo ruído de passos apressados sobre as pedras do calçamento à entrada da forta­leza. Chegou às portas externas do castelo no instante em que um homem cruzava o pátio em direção a ele.

― Barão Desmond Vaudry du Luc? ― indagou o cavaleiro protegido por uma cota de malha negra, depois de cumprimen­tá-lo com reverente mesura.

― Sim.

― Trago saudações do rei Henrique. Ele e sua comitiva chegam amanhã. ― Apanhando um rolo de pergaminho sob as dobras do manto, o cavaleiro entregou-o a Desmond. ― Da parte do rei. Somente para seus olhos, barão.



― Muito obrigado, Por favor, coma e beba e descanse por esta noite, a hospitalidade de Sevenoaks é sua. ― Desmond apertou o rolo de velino entre os dedos ao se aperceber dos olhares curiosos de Hadwaine, Giles e alguns barões de Montfort que buscavam as cozinhas à procura de uma refeição ligeira, depois, erguendo uma sobrancelha, disse-lhes: ― Se houver entre vocês alguém que de súbito encontrou motivos para partir antes que o dia amanheça, sinta-se à vontade para fazê-lo sem se incomodar com explicações ou desculpas.

Após uma rápida troca de olhares, boa parte dos barões dei­xou o salão numa nuvem de cochichos.

― Não importam os castigos que Henrique irá distribuir por aqui, o que conta é que a simples notícia de que ele se aproxima já foi suficiente para afugentar aquele ninho de víboras desta fortaleza ― Desmond comentou consigo enquanto subia a es­cadaria rumo a seus aposentos.

O cilindro de pergaminho trazia um lacre de cera com o sinete do próprio Henrique. Depois de rompê-lo, Desmond de­senrolou o velino tentando ignorar as batidas descompassadas do coração em seu peito. Mas ao passar os olhos pela mensa­gem, deixou escapar um suspiro de alívio.

― Então é isso? ― perguntou a si mesmo. ― Ah, mas por que mais eu estava esperando? Bem, talvez a lenda que envolve os Vaudry seja verdadeira e, quem sabe?, não sou mesmo capaz de ressuscitar dos mortos.

De repente seu dormitório lhe pareceu pequeno demais e um tanto abafado. Caminhando até a porta, ele a escancarou num só movimento. Do salão se erguia o barulho feito pelos barões ao prepararem-se para deixar o castelo antes da chegada do rei.

― Como ratos que abandonam uma barca prestes a afundar. ― Desmond deixou os aposentos do castelão e trancou a porta pelo lado de fora. Tudo o que queria era cavalgar Nevoeiro. Nem que fosse pela última vez.

Aislin girou a argola de ferro para fazer deslizar o painel que dava acesso aos aposentos do senhor de Sevenoaks. Ao pisar ali dentro, sentiu a presença de Desmond a envolvê-la por inteiro, despertando-lhe um desejo abrasador. Sentia tanto a falta dele!... Da voz, da risada, do modo como ele fazia seu coração disparar com um simples carinho... Céus, onde iria parar se não conseguisse arrancá-lo dos pensamentos?

Foi então que ela viu um rolo de pergaminho largado sobre a arca ao pé da cama. E reparou no timbre real sobre o lacre de cera.

Mesmo sabendo que não era correto, apanhou o pergaminho e o desenrolou com cuidado. O susto causado pelo conteúdo da esmerada caligrafia levou-a a largar a mensagem com uma praga e correr de volta à passagem que levava aos seus apo­sentos de castelã. Que Deus a ajudasse! Como Henrique pudera ir tão longe?

Despejando sua luminosidade dourada sobre o topo das mu­ralhas de Sevenoaks, o raiar do dia encontrou os habitantes da fortaleza imersos em suas tarefas cotidianas. Os cômodos desocupados pelos barões em fuga foram arejados, tiveram as roupas de cama trocadas e também novas esteiras de junco dispostas pelo chão. Mataram-se porcos e carneiros, e por conta disso as fornalhas na cozinha de assar carne ardiam em laba­redas que faziam lembrar o fogo do inferno.

― Lorde Desmond, seus pastelões já estão prontos.

Ele caminhou até a longa mesa repleta de marcas de golpes de facão para depois se largar sobre um banco.

― É uma honra saber que vamos receber o rei. O senhor pode estar certo: a comida que Sevenoaks irá servir a nosso soberano será da melhor qualidade. Pulei da cama antes das orações para regar a carne de veado com molho e esfregar o cordeiro com louro e alecrim. O senhor não passará vergonha por causa de nossa comida.

Desmond sorriu para a cozinheira, mas sua expressão não transmitia muito entusiasmo.

― Tenho certeza de que o rei não terá do que reclamar.

― Por Deus, milorde, por acaso o senhor está enfermo? Mal provou do seu pastelão!

― Lorde Desmond, está precisando de algum remédio? ― Sempre solícito, Tom se aproximou dele com a ajuda de suas muletas.

― Não, não estou doente. E, por favor, não deixem que meu estado de espírito estrague o bom humor de vocês. ― Evitando pensar na pena que sentia do rapazinho, Desmond buscou ani­mar-se para dizer a ele: ― Antes que o rei chegue, eu gostaria de ver você numa túnica nova e bem bonita.

― Oh, milorde, não posso...

Desmond ergueu a mão para silenciar os protestos do rapaz.

― Não, não me contrarie. Vá procurar meu escudeiro, Gwillem, nas cocheiras, e diga-lhe que providencie túnicas para vocês dois. Se ele não encontrar nada que sirva nas minhas arcas, Coy certamente terá algo para lhes ceder. Um barão deve ter seus criados devidamente trajados.

As faces de Tom ruborizaram e logo em seguida, num mo­mento raro, a tensão e a dor pareciam ter sumido do rosto tão jovem. Pela primeira vez desde que o conhecera, Desmond teve a impressão de estar vendo as feições do rapazinho como de fato seriam se uma carroça carregada não o mutilasse e o obrigasse a passar o restante da vida trincando os dentes contra a dor.

― Prometo que buscarei uma maneira de recompensar sua generosidade, milorde ― disse Tom timidamente.

― Estou certo disso. Agora, vá fazer o que eu lhe disse. Tome um banho e vista seus trajes novos. O rei não deve de­morar a chegar.

Tom não perdeu tempo a obedecer.

― O senhor é um homem bom, barão. Antes que viesse para Sevenoaks, foram poucos os que se dignaram a dar um pouco de atenção ao rapazinho. ― A cozinheira enxugou os olhos com a ponta do avental. ― Agora, se me permite o atre­vimento, vá cuidar de si mesmo. Vá se preparar para a chegada do rei.

― Vou, sim. Um homem deve acatar a vontade de seu so­berano ou preparar-se para arcar com as conseqüências. ― Desmond riu com secura, indagando-se sobre ser capaz de manter o humor quando o monarca e seus carrascos passassem sob o portão levadiço de Sevenoaks.

A distância entre os arautos e sentinelas avançados e a reta­guarda da comitiva real era espantosa. Olhos fixos no horizon­te, todos os que viviam no interior das muralhas de Sevenoaks, à exceção da castelã, perfilavam-se no pátio do castelo à espera do monarca.

― Pela Virgem, nunca vi uma multidão como esta! ― ob­servou Coy.

― O povo de Sevenoaks irá contar os eventos deste dia aos seus netos — Desmond respondeu ao amigo.

― Sim, ver o rei é uma experiência incomum ― concordou Coy. ― E abrir os portões do castelo ao soberano desta terra é motivo de grande orgulho para todos.

― Um espetáculo quase tão formidável quanto uma deca­pitação ― ironizou Desmond num resmungo. ― Ouvi dizer que ele viaja com um séqüito de quase cem pessoas. Alimentar a todos deixará profundas cicatrizes em nossas despensas.

Ninguém tinha como novidade o fato de que muitos barões viam-se à beira da mendicância por conta das prodigalidades que cometiam para agradar à Coroa nas andanças que o mo­narca e sua comitiva faziam pelo território nas idas e vindas de suas propriedades favoritas.

Tom e Gwillem surgiram em meio à multidão. O escudeiro usava o cotovelo para abrir caminho e Tom vinha logo atrás, amparado por suas muletas. Desmond reparou que ambos ti­nham um aspecto bastante asseado, além dos cabelos ainda molhados e cuidadosamente penteados.

Ao perceber que ambos tentavam chegar ao local onde ele e Coy se achavam, Desmond declarou em voz alta:

― Ah, meus melhores ajudantes vêm vindo para me assistir.

Todos os olhares se voltaram para ele, e logo em seguida os demais criados se afastaram para dar passagem aos rapazes. Tão logo conseguiram alcançar Desmond, Gwillem tomou a iniciativa de dizer:

― Meu lorde, não é correto nos mostrarmos maiores do que realmente somos.

― Bobagem. Quero meus três melhores homens ao meu lado neste dia tão importante. Um homem deve ter por perto as pessoas em quem mais confia no dia de seu casamento... e na hora de sua morte. ― Embora se sentisse tudo menos con­tente, Desmond fazia questão de mostrar-se risonho.

Coy olhou-o com estranheza, porém antes que pudesse dizer alguma coisa, os arautos do rei assomaram aos portões. As cornetas soaram para anunciar a entrada de três cavaleiros. E então, com a mesma perfeição com que Moisés apartou as águas, a multidão se dividiu para formar um corredor.

Instantes depois o monarca, todo paramentado em seus tra­jes reais, surgia à garupa de um garboso garanhão baio que parecia escoicear o ar. Ao lado dele vinha o príncipe Eduardo, alto, majestoso e com um quê de crueldade nos olhos claros. Atrás de ambos, cavaleiros em armaduras reluzentes, liteiras trazendo damas da realeza e carroças repletas de itens pessoais derramavam-se pelos portões de Sevenoaks. Apesar de bastan­te grande, com espaço suficiente para permitir que os animais pastassem e engordassem sem atrapalhar o dia-a-dia dos cria­dos, o pátio interno do castelo de repente parecia acanhado. A multidão se encolheu em direção aos muros enquanto flâmulas e estandartes se erguiam no ar.

― Que o Senhor nos guarde ― murmurou lady Eleanor. ― Meu sobrinho guerreiro vem junto do pai. Se bem o conheço, haverá derramamento de sangue na fortaleza de Sevenoaks.

― Desmond Vaudry du Luc ― gritou um dos arautos do monarca. ― Aproxime-se para receber um presente real de Henrique, rei da Inglaterra.

Encorajado por saber que tinha Coy, Gwillem e até mesmo Tom às suas costas, Desmond deu um passo adiante; dobrou a perna para se apoiar num joelho e, curvando a cabeça, saudou seu soberano:

― Majestade.

― Basta, basta. Ponha-se em pé, meu bom amigo. Veja o que trouxemos para você. ― Henrique bateu palmas, e escu­deiros suarentos apareceram carregando uma liteira coberta. ― São do meu plantel particular em Winchester.

A cobertura foi retirada para revelar um par de pavões da Ásia. Banhado pela luz do sol, o iridescente azul-turquesa das delicadas penas no pescoço das aves, brilhava como pedra pre­ciosa. Pavões reais eram um item dos mais cobiçados, um sím­bolo de predileção.

― O senhor é muito generoso, Majestade ― Desmond agra­deceu.

― Ouvi dizer que você ainda não se acorrentou à dama da fortaleza. Isso é verdade? ― A pergunta fora feita pelo prín­cipe, que observava Desmond com seus olhos de ave de rapina. Eduardo não piscava, não sorria; era como se tivesse as feições esculpidas numa porção de rocha.

― É verdade ― confirmou Desmond num tom firme e forte, sustentando o olhar com que o príncipe o perscrutava. ― Ela não quer se casar comigo.

Henrique acolheu as palavras dele com o cenho fechado, mas então indagou:

― Você recebeu minha declaração real avisando-o de nossa chegada?

― Sim, Majestade.

― Eu esperava mais de você, Vaudry du Luc.

― Parece que sua vontade pouco conta para essa Flor Ve­nenosa de Sevenoaks ― Eduardo disse ao pai. ― Ela escar­neceu de sua ordem.

― Haverá um casamento ou uma decapitação. Que todos ouçam o que irei decretar: se ao pôr-do-sol lady Aislin não se apresentar nos degraus da capela para casar-se prontamente com Desmond Vaudry du Luc, a cabeça dele irá rolar. ― Hen­rique saltou da sela de seu vistoso garanhão. ― Agora, minha irmã, esclareça-me e me diga em que brincadeira de mau gosto seu marido está metido. Os espiões de William Briware con­taram-me que os tentáculos das intrigas de seu marido estão a ponto de chegar à corte. Dizem que Simon se opõe à nova feira que pretendo promover em Westminster. Isso é correto?

― Não, meu irmão, ele não se opõe; apenas receia que uma feira programada para durar uma quinzena ocasionará perda das receitas da feira costumeira em Ely. Simon está preocupado com você, irmão, pois isso poderia significar uma diminuição nos rendimentos da Coroa. O bispo de Ely também está preo­cupado com essa possibilidade.

― Ah, e porque um bispo dá sinais de aflição, você acha que posso ser persuadido a mudar de idéia? O lorde seu marido tem uma mente mais propensa a negócios do que eu supunha, Eleanor. Por acaso esse tal bispo lhes disse que a feira que estou propondo tem por finalidade homenagear Santo Eduar­do? O povo o adora, e nosso bom bispo de Ely deveria fazer o mesmo.

Baixando a cabeça, Eleanor sorriu astuciosamente enquanto argumentava:

― Receio que você fará mendigos de todos nós no propósito de reconstruir tumbas antigas na igreja monástica e homena­gear o santo. Diz-se que os mortos em Londres têm acomoda­ções de melhor qualidade do que os vivos.

O semblante do monarca era a mais pura expressão da raiva e da incredulidade. Mas, perito na arte de dissimular o que não pretendia expor, Henrique não demorou mais do que um ins­tante para se dominar, esboçando um sorriso gélido antes de declarar:

― Westminster será reconstruída, a feira de uma quinzena será feita. E eu duvido de suas alegações de miséria, irmã, pois seus trajes são da melhor qualidade e suas jóias, soberbas. Ago­ra, não tente afastar de minha mente a pergunta que lhe fiz. Vamos conversar, e eu espero uma boa prestação de contas a respeito das atividades daquele conde velhaco com quem você se casou.

Com o rosto numa máscara de pedra, Eleanor curvou-se numa elegante mesura, depois se ergueu e pousou a mão de leve sobre o braço do irmão. Lado a lado, ela e o rei então subiram os degraus diante das portas do castelo para desapa­recer salão nobre adentro. Um enxame de conselheiros, lordes e damas pôs-se no encalço dos irmãos num passo respeitoso. E atrás deles todos seguiu Simon de Montfort, o conde insul­tado pelo monarca.

― Ele não parece nem um pouco feliz ― comentou Coy ao ouvido de Desmond.

― A felicidade é algo fugaz ― retrucou Desmond, que es­tava a ponto de sentir pena de Simon, mas então se lembrou de sua própria sorte.

― Vamos, eu lhe faço companhia ― Coy se ofereceu.

― E aonde iremos? ― quis saber Desmond, um pouco mais tranqüilo ao ver que a maior parte da comitiva do rei já havia sumido de vista e a multidão concentrada no pátio começava a se dispersar.

― Aos aposentos de lady Aislin. Ela precisa se aprontar para a cerimônia... nem que seja preciso obrigá-la.

― Não, Coy. Por acaso não ouviu o que eu disse ao primo dela, Giles? Não pretendo forçar mulher nenhuma a se casar.

― Sim, mas isso foi antes de Henrique declarar que mandará cortar sua cabeça se ela não desposá-lo.

― Nada mudou. Ainda que tenha de entregar minha vida nas mãos do rei, não tomarei por esposa uma mulher que não queira unir-se a mim de vontade própria.

― Pela cruz do Cristo, Desmond! Você está farto da vida, é isso?

― Não, não estou. A verdade é que ainda tenho muito o que viver. Mas não à custa de ver minhas convicções aviltadas.

― Você é um tolo, meu amigo. Ou será que acredita na profecia gravada nas pedras perto de seu lar ancestral? Por acaso imagina que poderá se erguer dos mortos uma segunda vez? Pois se imagina, saiba que está redondamente enganado. ― Com isso, Coy se afastou murmurando pragas contra a crueldade dos soberanos e das mulheres difíceis.

― Dama, não precisa falar comigo, apenas escute o que tenho a dizer... ― Desmond falava pela porta dos aposentos da castelã. ― O rei chegou, porém, quero que você saiba que mantenho minha palavra. Ninguém lhe forçará a se casar contra a sua vontade.

A resposta foi um silêncio profundo. Desmond encostou a cabeça à madeira polida.

― Já tomei providências para que você parta em segurança para meu castelo em Mereworth assim que o rei se for... Hen­rique planeja tomar Sevenoaks para a Coroa. Não tenha medo, já tomei todas as medidas necessárias para que você não seja enclausurada num convento. ― O que ele não disse, mas estava em seus pensamentos, era "depois que minha cabeça se separar de meu corpo". ― Você e qualquer criado que quiser levar consigo estarão bem cuidados e protegidos em Mereworth.

Engasgada com o nó que tinha na garganta, Aislin deitou a testa de encontro à porta. Jesus, por que Desmond tinha de ser tão nobre e honrado? Ela lera a mensagem enviada por Hen­rique, sabia que o monarca ameaçava tomar ou até mesmo destruir Sevenoaks pedra por pedra. Tudo aquilo pouco ou nada lhe importava, mas ouvir Desmond afirmar que tomara provi­dências e medidas para seu bem-estar, provocava-lhe a estra­nha sensação de que ele falava como... como se não fosse viver para...

― Tente manter-se calma, dama. E saiba que, aconteça o que acontecer, muito admiro sua coragem e sua determinação. Que Deus esteja com você, Aislin.

O ruído de passos pelo corredor indicava que Desmond se afastava.

Confusa, aturdida, ela continuou onde estava, tentando ig­norar a dor que lhe afligia o coração. Se ao menos não fosse amaldiçoada...

Instantes depois, uma outra voz ecoou baixinho de encontro à porta:

― Senhora? ― Bateram de leve à madeira. ― Lady Aislin, está me ouvindo?

― Quem é você? ― ela indagou.

― Sou Coy de Brambourg, amigo de Desmond du Luc. Senhora, preciso lhe contar que estamos com problemas sérios.

― Estou sabendo da mensagem do rei.

Coy cerrou o punho. A vontade que tinha era colocar aquela porta abaixo e arrastar aquela mulher pelos cabelos.

― Então a senhora está ciente de que Henrique decretou que quer a ordem dele cumprida ou a cabeça de Desmond?

― O quê? O que está dizendo? O que sei é que o rei ameaçou confiscar Sevenoaks. Mas se o que você diz é verdade, por que seu lorde não veio ele mesmo me falar do decreto? Por que enviou você?

― Ele não me enviou, senhora, estou aqui por minha conta. Amo Desmond como a um irmão e acho que ele está errado em agir como vem agindo.

― Como assim?

― Ele jura que não tomará uma mulher por esposa à força. Diz que prefere morrer a manchar sua honra, obrigando uma dama a casar-se com ele. Desmond está disposto a submeter-se ao machado do carrasco no dia de hoje.

― Seu lorde parece um homem muito digno.

― Ele é, sim, digno e firme. A senhora virá? Irá salvar a vida de meu lorde Desmond?

― Você não ouviu o que dizem a meu respeito?

Coy passou o peso do corpo de um pé para outro. Não es­perava tanta sinceridade de uma mulher...

― Você já ouviu dizer que sou perversa e trago o mal. Sabia que me chamam de Flor Venenosa?

― Sim.

― Então seu lorde Desmond não correria um perigo mortal se se casasse comigo?



― Talvez seja como a senhora diz, minha dama. Mas ouça com atenção: Desmond certamente irá morrer pela lâmina de um machado se a senhora não desposá-lo. Não sei se a senhora prepara poções ou se seus quatro maridos eram idosos e frágeis, como Desmond quer me fazer crer, o que sei é que não há como fazer o rei mudar de idéia e anular o que foi decretado.

Às palavras de Coy seguiu-se um breve silêncio. Então ele ouviu uma voz suave afirmar:

― Vou pensar no que você me disse.

Um boi foi assado no espeto que um cachorro em arreios fazia girar, acionando o mecanismo ao investir contra um pe­daço de pernil fora de seu alcance. O touro estalava e chiava enquanto dourava acima das labaredas. Ao término de sua mis­são, o grande cão de caça seria recompensado com um bom naco de carne e um osso repleto de tutano do animal que assava.

Atarefados até o último fio de cabelo, os criados da cozinha destinada às carnes cuidavam de amolecer enguias no vinho de mel, rechear gansos e temperar uma grande quantidade de melros, o prato favorito do rei. Desmond mal conseguiu um lugar onde se empoleirar para saborear seu pastelão de todos os dias. Perto dele, sentado ao lado de suas muletas, Tom a tudo observava em silêncio.

― Meu lorde, o senhor parece um homem conformado com a má sorte, mas tenha fé e não se desespere ― a cozinheira tentou confortá-lo enquanto esmagava castanhas num pilão. ― A dama irá ao seu encontro. Ela não é má pessoa, não permitirá que o senhor perca sua cabeça.

― Você a conhece? ― ele perguntou.

― Oh, sim. Quando veio para Sevenoaks para desposar nos­so querido lorde Theron, ela era uma pequena fada, muito bo­nita e sempre alegre. Nossa lady Aislin tinha sempre um sorriso e uma palavra gentil para todos nós. Quase sempre ela vinha à cozinha para perguntar da minha saúde.

― O que houve para fazê-la mudar tanto assim? ― indagou Desmond, referindo-se ao fato de a castelã ter escolhido viver trancada em seus aposentos.

― Depois da morte de lorde Theron, ela começou a ficar diferente. Não sei dizer como nem de onde as histórias surgi­ram, mas um belo dia, assim do nada, parecia que as pessoas tinham dado para cochichar a respeito da dama e os boatos começaram a se espalhar por todos os cantos.

― Com certeza o falatório teve início entre os moradores da fortaleza.

― Oh, não, milorde. Todos em Sevenoaks a amavam e ti­nham pena dela. Não, as histórias eram estranhas. E os rumores se espalharam como fogo na palha seca.

― Que tipo de rumores?

― Esquisitices. Começou-se a dizer que qualquer mulher com os cabelos da cor das chamas era cruel e precisava ser evitada. Eu nunca tinha ouvido uma coisa dessas. Ninguém por aqui costumava dar muito crédito a superstições. O abade ofe­receu orações aos Céus e promoveu bênçãos para combater o mal. Não demorou e a dama deixou de vir às cozinhas. E depois que mais dois de seus maridos morreram, ela só vinha aqui para baixo para fazer as refeições no salão nobre. Então o quar­to marido se foi, e aí ela se fechou em seus aposentos. Sou eu quem cuida de mandar levar as refeições a lady Aislin, assim ela não fica doente, pobrezinha.

Desmond, que já tinha se perguntado quem se encarregaria da alimentação da castelã, imaginava ser Giles quem providen­ciava para que ela não perecesse de fome. Era estranho: as mesmas pessoas que supostamente morreriam de medo de Ais­lin, justamente elas cuidavam de suprir as necessidades da se­nhora do castelo. Esse era mais um mistério para juntar a tantos outros que pairavam sobre Sevenoaks.

― Acho que vou comer mais um pedaço de torta. ― Ele lambia as migalhas dos dedos.

― Seu apetite está afiado hoje, meu lorde. Isso é bom sinal.

― Se esta for a última das refeições que faço na Terra, então que seja repleta de suas tortas de carne... Não, não falaremos desse assunto. Por ora estou contente. Tenho boa comida e boa companhia. Tom, não tomaria uma caneca de cerveja comigo?

Com um sorriso de orgulho e afeição, o rapazinho fez men­ção de se levantar.

― Não, fique sentado aí. Eu mesmo cuido disso, vamos ver se sou tão hábil quanto você. ― Desmond realmente conseguiu despejar cerveja em duas canecas sem derramar uma só gota no chão. ― Aos meus bons amigos. Que vocês dois vivam muito e bem.

Depois de tomar toda aquela caneca, ele se serviu de mais outra. Quisera a bebida pudesse entorpecer o fio do machado...

Desmond olhou para um lado e para o outro a fim de se certificar de que ninguém o vira. Com tantas pessoas pela for­taleza, a maioria delas ocupadas com a chegada do soberano, não era de se estranhar que ninguém tivesse se apercebido de seus movimentos. Várias canecas de cerveja o faziam arriscar uma última visita ao labirinto de arbustos, na esperança de encontrar sua donzela para dizer-lhe pessoalmente que ela seria bem recebida em Mereworth.

Depois de tornar a olhar em todas as direções, disparou em meio às folhagens e, alcançando a entrada do labirinto, fez com passadas ligeiras o percurso que levava ao coração do jardim secreto. Encontrou-o deserto. O gorgolejar da pequena fonte e o chilro dos passarinhos à procura de gavinhas para a feitura de seus ninhos era tudo o que se ouvia por ali.

Um assomo de melancolia, espesso e pesado como um man­to, obrigou-o a sentar-se no banco de pedra junto do relógio de sol. Seus olhos então vaguearam pelo instrumento feito para marcar a passagem do tempo. A peça fora concebida de um modo ímpar, diferente de tudo o que ele já vira. Sem pressa, Desmond correu a ponta dos dedos pela superfície do aparato.

Por que diabo haveria de se importar com algo tão mundano como um relógio de sol se estava condenado à morte?

Vai ver escolhi pensar na passagem das horas porque meu próprio tempo esteja se esgotando. Então rezou para que não desonrasse a si mesmo, e pediu força e coragem quando che­gasse o momento de entregar seu pescoço à peculiar justiça do rei.

― Você está mais elegante do que a maioria dos homens que formam a comitiva real ― comentou Coy de Brambourg ao entrar nos aposentos do castelão.

― É verdade, meu lorde Desmond ― concordou Gwillem, antes de pôr-se a arrumar os pertences de seu senhor.

Após se banhar na grande tina que tinha as bordas acolchoa­das em linho, Desmond vestira sua melhor túnica, bordada com os brasões tanto dos Vaudry como dos Luc, a qual Gwillem fizera brilhar de tanto escovar.

― Um homem deve ir ao encontro de seu Criador aparen­tando seu melhor ― ele comentou.

― Não consigo acreditar que a dama deixará você morrer ― devolveu Coy.

― Ah, mas ela não está sabendo do decreto do rei. Aislin nunca sai de seus aposentos, não tem como se inteirar das in­tenções de Henrique. ― Desmond ajeitou o cinto de couro, e seu escudeiro correu a lhe escovar os ombros. ― Gwillem, não se preocupe mais com isso. Vocês dois deviam estar lá embai­xo, distraindo-se.

― Não, vamos ficar e descer com você. ― Largando-se sobre o espaçoso leito, Coy balançou-se em cima do colchão.

― Esta cama é macia e grande o bastante para a prática das artes do amor.

Desmond virou-se para olhar feio para o amigo. Coy falava como se seu casamento com Aislin fosse um fato consumado.

― Seu humor parece ter melhorado, Coy. Isso é sinal de que já andou tomando algumas taças de vinho?

― Não. É sinal da convicção que eu tenho de que a dama não irá abandoná-lo à cólera do rei.

― De onde foi tirar essa idéia? Esqueceu o que eu disse? Ninguém aqui irá obrigar Aislin a fazer o que ela não quer.

― Ah, é verdade. Não se pode arrastá-la até os degraus da capela, nem que seja para salvar sua vida.

― Coy, dê-me alguns instantes a sós comigo mesmo, sim? Não faz muito tempo você e Gwillem andavam provando da minha comida e do meu vinho para se certificarem de que eu não seria envenenado, não é verdade? Creio que isso significa que ambos querem o meu bem.

Empertigando-se à beirada da cama, Coy retrucou:

― Zombe de mim se quiser, mas ainda acho que alguém neste castelo pode ter usado de ervas e poções para provocar a morte de seus lordes.

― Com que propósito? Aponte-me alguém que tenha se beneficiado disso. A Igreja, a Coroa e lady Aislin receberam um pequeno quinhão, uma quantia mínima, nada que pudesse incentivar seja quem for a cometer assassinato quatro vezes em seguida.

― Admito que ainda não saibamos o motivo que estaria por trás dessas mortes, mesmo assim continuo acreditando que tal ameaça existe. E ficaria muito grato se esta noite você não bebesse nada antes que eu prove de sua taça.

Com um sorriso, Desmond aproximou-se para dar um tapa no ombro do amigo.

― Depois que minha cabeça deixar meu corpo, você não terá mais de se preocupar com que o passa pelos meus lábios.



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