Trazendo estas reflexões para o campo do abuso do direito no processo, tem-se de concluir que o significado do uso anormal do direito de demanda, que está no plano das realizações culturais, é intuitivo. A análise, hic et nunc, de uma prática abusiva, embora singular, contigente e transitória, permite construir, a partir daquilo que é particular e específico, um conceito universal.93 Neste sentido, a fenomenologia, fonte de inspiração da teoria egológica de Carlos Cossio e da teoria tridimensional de Miguel Reale, permite superar as críticas freqüentemente formuladas contra a pretensão de fundar o Direito em bases científicas, críticas estas que se orientam exata- mente no sentido de que, partindo da casuística, não é possível produzir um conhecimento científico. Isto faz Iembrar a máxima de Poincaré, segundo a qual uma acumulação defatos não é ciência, assim como um amontoado de pedras não é uma casa. E certo que
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(90) Hans Kelsen, op. cit.. p. 1 15 e 1 16. Husserl, op. cit., vol. 1, Cap. I, § 14 e 15, p. 60 a 64.
(92) Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 1 l 1 e ¡ 12.Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 l. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p.366e367.
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o pensamento do matemático e filósofo francês tem em conta outra questão, ou seja, oproblema da interpretação na investigação científica, que não está limitada à coleta dos dados. Mas aqui também é inovadora a fenomenologia jurídica.
Com efeito, toda significação reclama uma verificação intuitiva. Isto não é outra coisa senão dizer, com Kelsen, que um mínimo de eficácia é condição de validade.94 Daíporque inconcebível a existência de uma normajurídica como simples categoria mental. O significado da normajurídica surge, precisamente, no momento em que coincidem aquilo que é simplesmente pensado e a intuição. Isto se dá através de um ato de cumprimento (na terminologia de Husserl), que é a realização da intenção.95 O texto da norma não é expressão de um caso concreto, mas uma categoria mental. Somente quando o juiz aplica a norma ao caso concreto revela-se o significado. Já na escolha mesma da norma jurídica que integra o primeiro enunciado do silogismo condicional (Sep, então q; p; q), há uma intuição valorativa. Muitas vezes o juiz prefere uma regra legal à outra. Esta
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(94) Hans Kelsen, op. cit., p. 29 a 3 1. A propósito desta relação entre verifi- cação intuitiva e eflcácia, v. Carlos Cossio, op. cit., p. 109.
(95) A propósito da noção de cumprimento, v. Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Sexta investigação, introducción, p. 597-601; Sexta investigação, Primeira Seção, Cap. 1, § 8-10, p. 621-627; Sexta investigação, Pri- meira Seção, Cap. 3, § 16 a 18, p. 645-650; José Ferrater Mora, Fundamentos de Filosofía, Madrid, Alianza Editorial S.A., 1987, p. 172- 175. Segundo exposição feita por Carlos Cossio, o juízo, em razão de sua imanente intencionalidade, reclama uma intuição que possa verificá- Io. Somente através dela o juízo completa-se, deixando de ser mero pensamento. Eis aqui o ato de cumprimento, a coincidência entre aquiIo que está na mente e aquilo que está na intuição. Por isso, a existência das normas depende da existência dos fatos. Este o sentido do chamado Princípio da Efetividade. Isto quer dizer que uma norma jurídica não é verdadeira norma se não tem uma verificação intuitiva, que lhe dá significado (Carlos Cossio, op. cit., p. 108 e 109). Para Husserl, a lógica pura não trata de juízos propriamente ditos, mas sim de estruturas de juízos. Aqui reside a crítica husserliana à indiferença da Iógica formal em relação à verdade (op. cit., vol. I, Prolegomenos a la lógica pura, Cap. 1 1, § 66-72, p. 1 99-2 1 1; Investigaciones para lafenomenologia y teoria delconocimiento, § 1, p. 215 e 216).
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opção, que está por trás da primeira premissa de um argumento de- dutivo, é orientada por uma convicção pessoal dojulgador. Não basta o fato empírico. Também não basta a norma como pensada pelo legislador. As vivências intencionais, a consciência voltada para o caso que é objeto do processo, constituem o ato que confere significado às categorias jurídicas. Em outras palavras, é da interpretação que nasce o significado.96
Tomando de empréstimo a classificação proposta por Carlos Cossio,97 pode-se dizer que o julgamento (e isto se aplica ao pro- cesso judicial como um todo) encerra diversos tipos de verdade: a) a verdade apodítica, aplicada às relações necessárias entre os con- ceitos, a exemplo da sanção, do ilícito e do deverjurídico; b) a ver- dade assertiva, que é expressão de um silogismo dedutivo no qual
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(96) Idem, p. 1 88 a 208. A respeito, ver também KarI Engisch, op. cit., p. 75 a 1 05, Karl Larenz, op. cit., p. 265 a 27 1, Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, São Paulo, RT-Educ, 1977, p. 245 a 248. Para Cossio, por exemplo, o enunciado universal da nor- ma (Todos os S devem ser P) não é senão enunciado particular (A1- guns S devem ser P), uma vez que, ao cotejar a regra legal com o caso concreto, o juiz tem em conta aqueles a quem se aplica a norma. A ciência jurídica, para Cossio, conhece sempre a partir da ótica do julgador. O direito posto é o direito aplicado: não é a norma (pensamento), mas a aplicação da regra à situação concreta (existência). Interessa aojuiz não o conceito (norma) e sim a conduta (caso concreto). Neste sentido, a ciência do direito só conhece singularidades, com o que Cossio repete Husserl, dizendo que só há experiência direta das coisas singulares, nunca das coisas universais. Por isso, para saber o que é direito, em vez de recorrer à norma, tem-se de verificar a conduta. O ser do direito não é a norma. Nela está apenas o modo de ser do direito. Em outras palavras, o que ao jurista não é dado saber sem que recorra à norma é se tal ou qual conduta está proibida ou permitida. Esta perspectiva, segundo ojusfilósofo argentino, concilia a tão polêmica antinomia, suscitada pelo realismo jurídico, entre fato e norma, O racionalismo só enxerga a vali- dade do pensamento (norma) enquanto o sociologismo só vê a validade da conduta (fato). A conciliação egológica permite falar de uma validade normativa em uma ciência de realidades (Carlos Cossio, op. cit., p. 128-139, 183-187, 199-201).
(97) Carlos Cossio, op. cit., p. 193.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
uma das premissas é construída a partir de dados empiricamente verificáveis, a exemplo do que ocorre com a provajudicial.98 Há uma terceira forma (c), que é a verdade assertiva do tipo empírico- dialético, fundada nas valorações jurídicas, o que mais de perto interessa para os propósitos da presente exposição.
Sob o enfoque da verdade apodítica, é impossível revelar a essência fenomenológica do uso anormal do direito de demanda. Assim, se é certo que o uso anormal de um direito deve ser impedi- do, tem-se de buscar o fundamento desta proibição. Se ela está na norma, há de se indagar se a regra é provida de sanção. Em caso positivo, já não se está mais em condições de separar o ilícito do abuso. Em caso negativo, fica a dúvida quanto ao caráter normati- vo da proibição, que mais se assemelharia a uma exortação, a um conselho ou a uma diretriz, vale dizer, a uma regra deontológica, mas não jurídica. Mas se a proibição não está na norma posta, necessário indagar acerca de outro fundamento jurídico qualquer, recorrendo a uma justificativa teórica, a uma ratio, que não integra o sistema.
A reflexão sobre o fundamento jurídico da proibição do uso anor- mal do processo encontra lugar, sob uma perspectiva fenomenológica,
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(98) Para ilustrar a verdade assertiva, veja-se a seguinte série de argumentos: 1 — Todos os policiais, ao depor contra o réu emjuízo, mentem; O policial Ticio depôs contra o réu em juízo; O policial Ticio mentiu. A conclusão deste quase-silogismo, que tem forma dedutiva, por sua vez, pode ser utilizada como uma das premissas que compõem o silogismo condicional empregado na sentença judicial: 2 — Todas as testemunhas que mentem devem ser condenadas a cumprir pena de reclusão; O poli- cial Ticio mentiu; Tício deve cumprir pena de reclusão. Trata-se de um silogismo condicional válido, no qual se afirma o antecedente. Importante observar que a primeira premissa do argumento i é prévia conclusão de um argumento indutivo. Neste tipo de argumento, a conclusão sempre diz mais do que dizem as premissas. Por isso, ainda que verdadeiras as premissas, a conclusão não necessariamente o será. Vale dizer, examinados vários casos particulares, constatou-se que os policiais mentem em juízo, tentando incriminar o réu, com o que buscam legiti- mar o trabalho desenvolvido na fase do inquérito. Partindo do particular, do empírico, chegou-se à generalização indutiva: Todos os policiais, ao depor contra o réu em juízo, mentem.
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
no a priori material, de conteúdo axiológico. O exame da forma como atuam as partes no processo, além da análise dos dados empíricos, implica valoraçõesjurídicas. No segundo capítulo, viu-se que existem certos standards, núcleos significativos em torno dos quais gravita a questão do abuso do direito no processo. O significado surge de um ponto de vista estimativo, por meio de uma intuição intelectiva. Assim, além do significado que nasce das relações necessárias, das relações sintáticas entre conceitos do a priori formal, o sentido das expressões jurídicas surge também dos valores prudenciais, que implicam uma tomada de posição dante do caso concreto. Para poder situar-se, o julgador terá em conta a finalidade do processo, condicionada às possibilidades históricas e sociais de sua realização. Dele também se espera que não se deixe enganar por um utilitarismo perverso, e mais, que esteja em condições de prever o resultado de sua decisão.99
O dever da verdade processual, por exemplo, é conceito bastante polêmico. De um lado, há os que entendem que, além da desconformidade entre o fato e aquilo que está na mente de quem descreve o fato, necessário seria examinar, para saber da infringência a esse dever, o querer, a vontade de burlar o intelecto por parte de quem apresenta o relato desconforme (subjetivismo). De outro lado, existem aqueles que prescindem da existência do ânimo emulativo do litigante (objetivismo). Mas a distinção, no campo concreto, coloca em pauta a necessidade de critérios dejustiça, razão por quejá se entendeu que certos meios protelatórios muitas vezes se justificam para evitar mal maior. E o caso do devedor que, na esperança de receber numerário, procrastina o desfecho da execução judicial.100
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(99) Recaséns Siches, Introducción al estudio del derecho, México, Porruá, 1 98 1, p. 254-260. A respeito dos standards jurídicos, ver o que foi dito no primeiro capítulo (seção 1.4). A propósito de uma visão utilitarista do processo, v. a nota 1 12, Iogo à frente.
(100) o exemplo, já utilizado no capítulo anterior (seção 2.2), é de Carvalho de Mendonça (Código de Processo Civjl Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 112 e 113). Sobre os expedientes procrastinatórios, assim disse Piero Calamandrei: este abuso da finalidade dilatória dos meios processuais é tão comum e tradicional,
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O chamado dever de completude também coloca em discussão a necessidade de critérios axiológicos no exame da verdade processual. A propósito, citava-se, no capítulo anterior (seção 2.4), um exemplo de Couture, ao figurar a hipótese de ação de divórcio, na qual o litigante esconde o real motivo da ruptura conjugal, para poupar a prole da desdita do cônjuge adúltero, contra quem a demanda foi proposta.101 E aquilo que as pessoas costumam tratar por meia verdade.
Para a fenomenologia, a verdade é a evidência com que os objetos se apresentam a partir da epoché, que deixa entre parênteses os dados empíricos e acidentais do objeto, libertando-o do que é contingente, individual. Assim chega-se à essência, ao conceito univer- sal, captado não mais por uma estrutura apriorística do espírito, mas através da intuição, de uma razão alargada. Com a reflexão da cons- ciência intencional sobre si mesma, o conceito universal vai-se impregnando do mundo da vida. A verdade processual passa a ser vista, então, como um conjunto de experiências de ordem prática que constitui o mundo vivido. Neste sentido, a arte tem a sua verda- de, que é estética, assim como o direito também a tem. O processo judicial busca a acomodação dos conflitos na base de regras de procedimento adrede conhecidas, dentre as quais está aquela que diz que ao julgador compete, à luz da prova produzida, aplicar ao fato, como reconstruído pelo discurso dialético das partes, determinada norma jurídica. Outra regra do jogo processual consiste em dizer a verdade. A verdade, entretanto, não é mais que verossimilhança, não é mais do que aproximação dos fatos empíricos, assim como tam- bém o é a verdade histórica.102
que se tornou mesmo objeto de estudo, considerando-se-o não como uma degeneração patológica, mas sim como refinado virtuosismo de boa prática forense. (Estudios sobre el Proceso Civil, in Derecho Procesal Civil 111, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 276). E, em outro ponto da mesma obra, colhe-se: a lealdade prescrita, é lealdade nojogo; ojogo, isto é, a competição de habilidade, é lícito. Porém não se permite a trapaça (idem, p. 268 e 269).
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(101) Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo I, 2. ed., Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 249-253.
(102) Piero Calamandrei, Estudios sobre el Proceso Civil, in Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 973,
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
A legislação brasileira pune, com pena de reclusão, a testemunha que falta com a verdade. Por questões éticas ou pragmáticas,
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p. 3 1 9. Neste ponto, e ainda a propósito do policial Ticio, que foi condenado por haver mentido em juízo, veja-se que a conclusão do argumento indutivo (Todos os policiais, ao depor contra o réu em juízo, mentem), que serviu de base para o quase-silogismo (cuja conclusão é O policial Ticio mentiu), bem demonstra como o julgador é influen- ciado por sua particular visão de mundo. Experiências particulares, fa- tos isolados que Ihe impressionaram o espírito podem contribuir para uma indevida generalização indutiva (a propósito do valor do depoimento de policial é farta a jurisprudência, como se pode ver em Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal interpretado — referências dou- trinárias, indicações legais, resenhas jurisprudenciais, 5. ed., São Pau- lo, Atlas, 1 987, p. 282). Carlos Cossio, depois de afirmar que o direito é uma ciência das singularidades, dirá que há uma pluralidade de circunstâncias que compõem o caso concreto. Para ver esta totalidade como conjunto, é necessário examiná-la em perspectiva, tal qual se contempla um Iago sempre de um ou outro ponto de suas margens. Isto quer dizer que haverá sempre a escolha de uma circunstância como clave ou meridiano para hierarquizar o conjunto, escolha esta baseada na intuição axiológica do caso. A circunstância que assim serve de guia para a compreensão do conjunto tanto pode ser uma daquelas que estão na norma, tal qual pensada, como também uma outra que não a integra, porque, afinal, todas intuem a mesma conduta, com a mesma possibilidade de apresentá-Ia em perspectiva. O problema da verdade jurídica está, precisamente, em determinar a melhor perspectiva, dentro de certas exigências de objetividade. Trata-se de uma verdade axiológica, porquanto as circunstâncias do caso são percebidas onticamente pela intuição sensível, mas ontologicamente compreendidas e, assim, valoradas. O trabalho de subsunção é uma verdadeira integração de sentido, que se dá em uma vivência complexa, na qual aparecem refundidos o sentido mental da norma e o sentido efetivo da conduta. O conhecimento do juiz é um ato de compreensão pelo qual, ao aplicar o conceito ao caso concreto, terá de recriar o sentido da conduta, vivenciando-o novamente (Carlos Cossio, op. cit., p. 185 a 187, 196 a 198). A dogmática penal mesmajá incorporou estas reflexões jusfilosóficas: o Juiz, ao solucionar a questão penal — definição jurídico-penal positiva ou negativa — conheceu-a. O conhecimento, como pode parecer no primeiro lanço, não parte de pura descrição do fato, imerso em suas circunstancialidades e emergente na acusação, ou em outra simples afirmação do dever-ser. O julgador vai ao
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tanto na esfera civil como na esfera penal, dispensa certas pessoas do compromisso de dizer a verdade. Assim sucede no caso de testemunhas suspeitas ou impedidas, a exemplo, respectivamente, do cônjuge da parte e daquele que tiver interesse no litígio. Veja-se que a parte também está no dever de dizer a verdade (art. 14, I, e 17, 11, do CPC), exceçäo feita ao réu no processo-crime, que tem o direito de permanecer calado (art. 5.°, LXIII, da C.F.).103 Se o autor da ação penal mentir, imputando falsamente a prática de crime ao réu, res- ponderá pela prática de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal).104 No processo civil, a parte que se recusar a depor ou mesmo que tergiversar a respeito dos fatos estará sujeita, em qual- quer dos casos, ao ônus da confissão (art. 343, § 2.°, do CPC). Fal- tando com a verdade, poderá ser condenada ao pagamento das des- pesas e dos honorários advocatícios, o que não a dispensa do dever de indenizar a parte contrária (arts. 16 e 18 do CPC).
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fato, posto em Juízo, mas já antes aprestado com o modelo legal de conduta... Não é tudo, porém. A cognição consiste em estado de consciência intencional. Sentença adveio de sentir. Conhecer, entretanto, está em agir, vendo uma realidade — não a realidade.... O fato, aí não é mera re- presentação ou simples imagem mental, porém o existente, o concreto, tanto que desvendado pelos meios de prova (Sergio Marcos de Moraes Pitombo, O juiz penal e a pesquisa da verdade material, in Hermínio Alberto Marques Porto e Marco Antonio Marques da Silva [org.], Processo Penal e Constituição Federal, São Paulo, EditoraAcadêmica, l 993 [Coleção Temas de Direito e Processo Penal], p. 72 e 73).
(103) O Supremo Tribunal Federal, aplicando o texto da Constituição, tem entendido que o direito de permanecer calado inclui, implicitamente, a prerrogativa processual de o réu negar, ainda que falsamente, a prática da infração penal (HC 68.929-9, DJU de 28.08.92, p. 1 3.453, apud Julio Fabbrini Mirabete, op. cit., p. 265). O réu só não pode mentir quanto a sua identidade ou autoacusar-se falsamente, porque estas práticas encontram punição no Código Penal, caracterizando crime, portanto (arts. 307 e 341).
(104) o Promotor de Justiça também comete o crime de denunciação caluniosa quando age com interesses subalternos, imputando a alguém crime de que o sabe inocente (Vicenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale Ita- liano, vol. 5, Torino, Unione Tipografico-EditríceTorinese, 1 950, s. l 624 e I 632, p. 683 e 705).
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
Há hipóteses, entretanto, nas quais a parte, tanto quanto a testemunha (art. 347 e incisos do CPC; art. 208 do CPP), não tem o dever de dizer a verdade. E o caso do sigilo de profissão, ministério ou função (art. 406, 11, do CPC; art. 207 do CPP) e também, no campo do processo civil, do depoimento acerca de fatos que possam acarretar graves danos à própria testemunha ou à própria parte (art. 406, I, do CPC; art. 347 do CPC). Mesmo que se mostre imprescindível ao conhecimento dos fatos, à falta de outras provas, as testemunhas suspeitas ou impedidas não podem ser obrigadas à verdade (art. 405, § 4.°, do CPC; art. 214 do CPP). Diversamente, as partes, no processo civil, em determinadas ações de estado, têm o dever de dizer a verdade (art. 347, parágrafo único, do CPC).105
René Popesco sustenta que a parte, no processo civil, também tem o direito de calar, isto em decorrência da liberdade de não se apresentar em juízo. Mas, em contrapartida, o outro litigante tem o direito de ouvir a parte. O magistrado, por sua vez, tem o poder e, às vezes, até o dever de interrogá-la. Por isso, aquele que se recusa a depor, sob simples alegação de que tem o direito de permanecer calado, abusa deste direito, opondo-se ao próprio interesse social, que tem em conta a rápida solução dos litígios.106 Daí o ônus da con- fissão, há pouco mencionado. Este ponto de vista dá a exata dimen- são das dificuldades que envolvem o tema da verdade processual e do abuso do direito.
Com efeito, a parte tem o dever de dizer a verdade (art. 14, I, do CPC). Conduzindo-se de forma diversa, pratica um ilícito, pois,
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(105) Durante a tramitação do Projeto de Lei, o Senador e civilista baiano Nélson Carneiro propôs a supressão da obrigação de dizer a verdade, nas circunstâncias previstas no artigo 347 do Código de Processo Ci- vil, mesmo no caso das ações de estado (parágrafo único). Todavia, o texto manteve-se inalterado (Aiexandre de Paula, Código de Processo CivilAnotado, 4. ed., vol. 2, São Paulo, RT, 1988, p. 1.293).
(106) René Popesco, Le silence créateur dobligation et l abus du droit, apud J. M. de Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, 7. ed., vol. 3, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1 958, p. 369 e 370, apud Moacyr Amaral Santos, Prova Judiciária no Civel e Comercial, 5. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1983, p. 237-239.
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neste caso, a lei prevê sanção (arts 16, 17 e 18 do CPC). Ocorre que o silêncio é uma atitude ambígua. Dele já se disse que implica consentimento (qui tacet consentire videtur). Mas esta presunção não está livre de controvérsias, porquanto, segundo a regra de Paulo, quem cala nem por isso confessa, sendo certo apenas que não nega (qui tacet, non utiquefatetur sed tantum verum est eum non negare). Muitas vezes, o silêncio revela-se como forma perversa de obstar à fruição de um direito, exatamente porque imobiliza. Para fugir ao impasse, para impedir que a parte, com sua omissão, pudesse decidir sobre a sorte do processo, recorreu o legislador ao ônus da con- fissão. Não se trata de buscar a verdade, mas de garantir a aplicação dajustiça, dentro de determinadas regras, adrede conhecidas.
Sob este enfoque, o dever de dizer a verdade (cuja infringência implica imposição de sanção e não simples ônus processual) aplica-se somente àquele que fala, de onde é dado concluir que não se há de exigir da parte a revelação de fatos que possam favorecer o outro litigante. Calando, não estará sujeita a pena, mas apenas a um ônus processual, exatamente porque não se admite que abuse do direito de permanecer em silêncio.107 De qualquer forma, esta confissão tácita não é uma presunção absoluta. Cabe ao juiz apreciar o conjunto probatório, saber da verossimilhança e coerência dos de- mais elementos de convicção existentes nos autos, como constava da norma do artigo 229, § 2.°, do Código de 39. Ademais, nem sempre o silêncio da parte é abusivo. O que se vê é que o Iegislador, mesmo no processo penal, em que vige como regra o principio
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(107) Neste aspecto, não deve impressionar o uso da expressãopena de confissão, já que as definições são contextuais. Em outras palavras, não há um vínculo natural entre as palavras e as coisas, como sustentam os realistas, apegados ao idealismo platônico. A relação que se estabelece entre as palavras e aquilo que elas pretendem significar é convencional. No sistema adotado pelo Código, há uma presunção de manifestação da vontade de confessar. Giuseppe Chiovenda explica que, tal como sucede com a revelia, a presunção visa a tornar o processo mais célere, com o que se cumpre um interesse social. A confissão tácita, assim, não tem o caráter de sanção, como ocorria na elaboração dos antigos (Instituições de Direito Processual Civil, vol. 2, 111, São Paulo, Saraiva, 1 965, p. 368).
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