(6) Dias Palmeira, op. cit., p. 109.
(7) Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 21
(8) Platão, Górgias, o de la retórica, 457b, in Platão, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1969, p. 364.
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de sentido. Todavia, há nas proposições, compostas de nomes, uma referência à existência daquilo que está sendo nominado, às coisas em si mesmas.9 Não por outro motivo, Aristóteles faz uma distinção entre sentença e proposição. Na primeira, importa a convenção em torno do significado das palavras, ao passo que nas proposições há implícito o juízo de verdade e de falsidade. A proposição representa o juízo. Uma súplica, por exemplo, é uma sentença ou expressão, que não implica o juízo verdadeiro/falso. Por isso, está no campo da retórica ou da poética e não no campo da lógica.10
A maneira por que os juristas elaboram o conceito de abuso do direito processual revela a marca impressiva da concepção on- tológica do significado, dessa visão das essências, que está em Platão e Aristóteles, ainda que de prismas diferentes. A expressão abuso do direito processual é o conteúdo de múltiplas formas de consciência que têm em comum a mesma essência. Estabelece-se uma relação unívoca entre palavra e coisa, de forma tal que os sujeitos processuais assumem uma participação passiva no pro- cesso de elaboração do significado. Quando a dogmática recorre a conceitos dicotômicos a exemplo do lícito e ilícito, jurídico e antijurídico, obrigatório e proibido, supõe a existência de cate- gorias universais, representadas por estes conceitos, que são a expressão mesma da realidade jurídica. Por isso, o paradoxo de Planiol. Mas como Mario Rotondi já advertia no primeiro capítu- lo (seção 1.4), é importante entender que a discussão acerca do abuso do direito interfere com o problema dos limites da ordem jurídica, ou seja, importa considerar o significado jurídico do es- paço deixado entre aquilo que é obrigatório e aquilo que é proibi- do. A conduta descrita como obrigatória ou proibida não tem um significado unívoco. Existe cntre essas condutas um espaço va- zio que há de ser preenchido com um conteúdo significativo. A
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(9) Aristóteies, De la expresión o interpretación, Cap. 4, 16a/17a, in Aristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1 967, p. 256 e 257. A análise crítica, como se seguiu, é feita pòr Manfrerdo Araójo de Oliveira (op. cit., p. 25-34).
(10) Aristóteles, De Ia expresión o interpretación, Cap. 4, 16a117a, in Aristóteies, op. cit., p. 257 e 258.
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pluralidade de sentidos do texto legal remete, assim, ao campo das valorações, pelo que se tem de reconhecer que as proposições não são sempre descritivas. O direito está, assim, no campo de uma razão prática e não de uma razão teórica.
Mas o jurista segue propondo classificações que supostamente refletem a natureza intrínseca das coisas. Tanto na argumentação dogmática como na argumentação zetética, a discussão acerca do abuso do direito reflete uma disputa em torno da verdadeira classificação, uma falácia metafísica que vem alimentando o pensamen- to jurídico desde a chamada elaboração científica do direito, em contraste com a jurisprudentia dos romanos. Daí porque se diz que a questão do abuso, como se coloca hoje para os juristas, é legado do racionalismojurídico, da pretensão de desenvolver o direito como um sistema cerrado e autárquico, que se esboroa ao menor contato com a realidade social. Foi precisamente essa consciência dos limites entre a norma e a realidade, entre o racional e o real, que inau- gurou a reflexão problematizadora em torno da possibilidade de uma conduta abusiva, trazendo de volta a ciência prática dos romanos, isto a partir da segunda metade do século xx.
Aristóteles, é certo, desenvolve a questão da verdade no terreno da chamada lógica apodítica, onde surge a clássica distinção entre juízos universais e juízos particulares, juízos afirmativos e juízos negativos, bem como o quadro de oposição e as regras de distribuição. Trata-se não só de categorias lógicas, mas também ontológicas, pois se mostram como condição da possibilidade do conhecimento.11 Mas a par da distinção que Aristóteles estabelece entre juízos apodíticos e juízos dialéticos, entre episteme, conhecimento racional, e doxa, simples opinião, aparência, importa chamar a aten- ção para as relações que o filósofo estabelece entre a Primeira Analítica e os Tópicos. A crítica aos sofistas — quejá se vê em Platão e lsócrates — consistia no fato de se utilizarem da erística, vale dizer, de raciocínios especiosos. Para Aristóteles, contudo, a argúcia dos
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(11) Aristóteles, De la expresión o interpretación, Caps. 5-14, 17a/24b, e Analítica Primera, 24b/70b, inAristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1967, p. 258-349.
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sofistas, no sentido pejorativo, consiste ern desenvolver a retórica trapaceando as regras formais do silogismo. Busca o filósofo a aproximação entre doxa e ontos, com o que a retórica passa ser vista como técnica. O orador não precisa necessariamente recorrer a premissas verdadeiras, contanto que respeite as regras internas do silogismo, expostas na Primeira Analítica. O importante é, pois, a verossimilhança, o que permite vislumbrar a utilidade da retórica, principalmente no campo pedagógico e no terreno das controvérsias, no qual se inserem as disputas judiciais e a próprias disputas filosóficas.12 Com isto, Aristóteles reabilita a retórica, colocando-a no mesrno plano da dialética, tão estimada por Platão.13
Estas reflexões preparam o terreno para uma gradativa superação da dicotomia realismo-nominalismo, que começa a se delinear quando o pensamento se desloca da esfera de contemplação do ser verdadeiro, em que se movem os gregos, para o campo da ação social. Com isto, a concepção mentalista, própria das teorias repre- sentativas do significado, cede espaço para um sentido intersubjetivo da linguagem, que surge das práticas sociais, e não antes delas, como se fosse lícito supor a existência de uma força misteriosa por trás das palavras. O redescobrimento da retórica aristotélica foi em grande parte responsável por esta alteração dos rumos da filosofia da linguagem. A filosofia e a teologia medievais sempre se guiaram pelas doutrinas do realismo e do nominalismo, como é possível ver nas obras de Roger Bacon, Duns Scotus e Willian Ockham. A marca impressiva dessa díade também pode ser reconhecida na herme- nêutica cristã medieval, fruto do interesse dos pensadores daquela
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(12) Aristóteles, Retórica, Livro I, Caps. 1, 2, 5 e 15, 1354a11358a; 1359b/ 1362a; 1375a11377b, e Tópicos, Livro I, Cap. 2, e LivroVIII, Caps 5- 1 1, 1 OOb, 1 Olb; 1 59a11 61 a, inAristóteles, Obras, Madrid,Aguillar S.A., Ediciones, 1967, p. 1 16-122, 124-127, 419, 420, 516-523 e 146-150. A propósito, v. Olivier Reboul, Introdução à retórica, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 21-41, Sergio Paulo Rouanet,A razão cativa—As ilusões da consciência; de Platão,a Freud, 3. ed., São Paulo, Brasiliense, p. 37 e 38, e Chaïm Perelman, Etica e Direito, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 469-473.
(13) Olivier Reboul, op. cit., p. 34 e 35.
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época na apreensão do sentido do texto bíblico.14 Entretanto, antes de tratar desta mudança de orientação, convém o exame de outras concepções representativas acerca do significado das palavras.
3.2 A teoria representativa
A filosofia grega estava muito mais preocupada com o objeto do que com o sujeito. Para Platão, que desenvolve uma estrutura semiótica triádica (nome-idéia-coisa), o significado das palavras surge a partir do referente, da coisa a que as palavras se referem, por elas nomeada. E o que também se vê na teoria dos signos dos epicu- ristas, que é, entretanto, diádica (signo-objeto), e mais, materialista.15 Convém esclarecer essa diferença. Enquanto o real, em Platão, são as idéias imutáveis, as essências, os seres exemplares, o objeto, na elaboração dos epicuristas, é a entidade física, palpável, da qual emanam as imagens captadas pelo receptor. De qualquer forma, tanto em uma como em outra concepção, o significado surge a partir da coisa, do ser. Isto é o que se chama de uma teoria referencial. Com os
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(14) Note-se que a teoria dos signos, no período medieval, era parte da Iógica, como se pode colher na obra de Leonino de Pádua, Logica estdoctrina principaliter de signis. Data daquela época a distinção entre conotação e denotação, examinada no segundo capítulo (seção 2.3), mais tar- de retomada por Stuart Mill. Estudando a bíblia, os semioticistas escoiásticos adotaram um modelo exegético depois aplicado a outros campos do conhecimento, inclusive na Renascença, que reabilitou práticas até então vistas como magia ou bruxaria, a exemplo da astrologia e da alquimia. E conhecida, também nesse período renascentista, a doutrina das assinaturas, estudada pelo médico e sábio suiço Paracelsus, que reconheceu a existência de signos naturais, deixados por Deus, pelo homem, por um principio interior do desenvolvimento, chama- do archaeus e pelas estrelas ou planetas (astra). Estes signos, deixados como traços indexicais no mundo, eram chamadas assinaturas e podiam ser descobertos na face humana, no corpo humano, nas Iinhas visíveis da superfície da planta etc. Daí a quiromancia, a astrologia, que têm em comum essa visão pansemiótica (Winfried Nöth, Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce, Annablume, 1995, Coleção E-3, São Paulo, p. 36-41).
(15) Winfried Nöth, op. cit., p. 32 e 33.
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sofistas, a tônica desloca-se do objeto para o sujeito, perspectiva que tem continuidade em Descartes e depois em Kant. Para Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas. A verdade, o certo e o errado, o bem e o mal, sempre têm de ser avaliados sob o ponto de vista do homem. Entre os estóicos, que desenvolviam um modelo triádico do signo (signo-significado-objeto), o papel daquele que reconhece o signo é fundamental. E esta recepção somente se mostra possível porque o homem tem capacidade de antecipar o enten- dimento da coisa. Na mente humanajá existem conceitos que per- mitem elaborar previamente a imagem das coisas.16 Isto é o que se chama de uma teoria idealista, que identifica o significado da pala- vra com a idéia que o signo evoca, com o conceito, que está no cam- po do pensamento.
Filósofos tais como Santo Agostinho e Ludwig Wittgenstein (este na primeira fase, correspondente ao seu Tratactus), trabalham toda a questão linguística do ponto de vista referencial, a exemplo dos gregos. Outros, dentre eles John Locke, desenvolvem uma visão idealista, acentuando o papel da interferência mental no processo de seiniose, vale dizer, no processo significativo. Uns e outros incluem-se dentro de uma perspectiva que se convencionou chamar de concepção representativa (o signo representa a coisa; o signo representa o pensamento).17 Além da teoria referencial e da teo- ria idealista, a concepção representativa da linguagem também inclui uma teoria comportamental, que ficou conhecida como behaviorisrno. Sob este enfoque, o significado das palavras tem origem naquilo que fazem os seres humanos quando delas se utilizam. Existe aqui uma identificação do significado com as situações em que as palavras são empregadas ou com o tipo de resposta que as palavras estimulam. Há mesmo quem sugira a substituição do ter- mo linguagem por coinportamento verbal. Skinner sustenta que saber o que ocorre quando um homem fala ou responde é questão que deve ser tratada no campo da psicologia, ciência experimental
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(16) Ide,n, p. 31-33.
(17) William P. Alston, Filosofía del Lenguaje, Madrid, Alianza Editorial, S. A., 1974, p. 38-45.
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do comportamento.18 Na linha da tradição de J.B. Watson, que inaugurou a escola behaviorista, Skinner procura minimizar a importância dos mecanismos mentais na formação do significado das palavras. O tema da psicologia passa a ser o comportamento ou as atividades do ser humano e não a consciência, conceito que substituiu a noção de alma, como existente entre os gregos. E isto porque a consciência não é algo que se possa observar, experimentar. Ao lado da crítica à teoria idealista, Skinner também faz objeções à tese referencialista. Esse esquema semântico — diz ele — não permite captar propriedades importantes do objeto, a exemplo das dimensões da coisa. Ademais, não oferece a possibilidade de surpreender a intenção dofalante.19
Diante das objeções de Skinner — e antes que se possa empreender uma análise crítica da concepção representativa — é importante fazer um reconhecimento do terreno filosófico em que se deu a pas- sagem de uma reflexão ontológica, como desenvolvida por Platão e Aristóteles, para uma filosofia da consciência, que se inicia com Descartes, prosseguindo depois com Husserl. Para Descartes, as coisas só existem pela intermediação do pensamento. Sendo assim, o objeto mesmo se torna intangível. Por isso, o filósofo racionalista passa a duvidar de tudo. Mas não se trata, como diz no Discurso sobre o Método, de duvidar por duvidar, à moda dos céticos, e sim de uma dúvida metódica, que afasta a areia movediça e a terra, para desco- brir a rocha ou a argila, vale dizer, para adquirir a certeza.20 Nessa mesma obra, Descartes lança algumas regras para a direção do es- pfrito, retiradas de seu Tratado sobre o universo, com o que pretendia fundar as bases para uma ciência universal.21
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(18) Burrhus Frederic Skinner, O comportamento verbal, São Paulo, Cultrix- Edusp, 1978, p. 15-20.
(19) Idern, p. 20-24.
(20) René Descartes, Discurso sobre o método, São Paulo, Hemus Editora Ltda., Quarta Parte, p. 58.
(21) Idem, Primeira e Terceira Partes, p. 13-25; 56-61; no mesmo sentido, René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, do Verdadeiro e do Falso, § 2.°, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores), p. 1 15.
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Do ponto de vista semiótico, ao postular a prioridade do intelecto sobre as experiências, Descartes acabou alijando o aspecto referencial da teoria dos signos. Dentro de sua obsessiva busca pela verdade, reconhece que apenas o ato de pensar, a capacidade de duvidar, é a certeza da própria existência. Eis aqui o cogito, funda- do na única certeza fundamental, ponto de partida para o reexame de tudo aquilo de que duvidara.22 Não há negar que o racionalismo de Descartes, ao rejeitar o conhecimento fundado nos sentidos, descrevendo o processo semiótico exclusivamente na base de catego- rias mentais, acaba conduzindo a uma concepção idealista, que tem como pressuposto, precisamente, o papel preponderante da cons- ciência no processo de conhecimento. O dualismo cartesiano (de um lado, a mente, o sujeito que observa o mundo, e de outro o mun- do observado, os objetos materiais) Ieva também ao solipsismo, presente nas formas extremadas do idealismo. Assim, se é certo que o sujeito não pode conhecer os outros homens a não ser pelas próprias idéias, é ele, então, o único a existir. O problema da certeza, em Descartes, tem também repercussões na esfera moral. É que inteligência e vontade andam a par, em uma reflexão que se inaugura, na Antiguidade, de uma perspectiva ética e que em Descartes tem conseqüências também no processo cognitivo.23
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(22) René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, Do Verdadeiro e do Falso, § 1 1, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores), p. 1 1 9.
(23) A vontadejá fora objeto de discussão entre os gregos, mas sempre submetida à razão, como faculdade superior da alma. E o que se vê em Platão (Fedro, o de Ia belleza, XXXIV, in Platão, Obras, Madrid, Aguilar S. A., Ediciones, 1969, p. 868 e 869) e em Aristóteles (Etica a Nicômaco, Livro VI, Cap. 1, 1 1 38b1 1 1 39a, in Aristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1 967, p. 1 .240). Também os estóicos radicalizaram a concepção de uma razão hegemônica, encarregada de suprimir ou controlar os impuisos. No estoicismo, a recusa das paixões adquire um sen- tido diretamente cognitivo, abrindo caminho para o conhecimento ver- dadeiro. Com Santo Agostinho, a vontade passa a desempenhar papel central no processo cognitivo. A percepção só se torna consciente por um ato de vontade. A esta concepção voluntarista opõe-se São Tomás de Aquino, para quem é a inteligência que indica à vontade os bens que
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Embora Descartes seja a negação da Escolástica, decidido que se encontrava a conhecer os fundamentos da razão, certo é que Deus estava presente em toda a sua filosofia, o que tem implicações na sua maneira de conceber a relação entre conhecimento e vontade, ponto em que se cruzam o saber e a moral. A inteligência, para Descartes, não alcança tudo, é finita, ao passo que a vontade, esta sim, é infini- ta. Os erros são precisamente o resultado do descompasso entre o conhecimento e a vontade, entre o poder de conhecer e o poder de escolher. O poder da vontade, que o homem recebe de Deus, não é em si mesmo a causa dos erros, nem tampouco o poder do entendi- mento, que é conferido à criatura pelo próprio Criador. Porém, como a vontade é muito mais ampla e extensa que o entendimento, o homem não a contém em seus limites, estendendo-a também às coisas que não entende. Como a vontade é livre, e mais, como se põe a atuar sobre coisas que não entende, perde-se muito facilmente, escolhendo o mal pelo bem, ou o falso pelo verdadeiro. Isto faz com que o homem se engane e peque.24
Na concepção de Descartes, vontade e entendimento são duas espécies de pensamento. Sentir, imaginar e mesmo conceber coisas,
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devem ser buscados, vale dizer, a vontade se move em função dos fins propostos pela razão (Sergio Paulo Rouanet, A razão cativa, 3. ed., São Paulo, Brasiliense, p. 16-19).
(24) René Descrtes, Meditações, Meditação Quarta, Do verdadeiro e do Falso, § 9 e 10, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1 983 (Coleção Os Pensadores), p. 1 1 7- 1 1 9; no mesmo sentido, René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 1 997 (Coleção Textos Filosóficos, ed. 42) Primeira Parte, Artigo 35, p. 39. Nas reflexões cartesianas, Deus acaba sendo inocentado dos erros que suas criaturas cometem (René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, Do Verdadejro e do Falso, § 1 1 a 1 3, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983, Coleção Os Pensadores, p. 1 19-121), porquanto não sendo Deus enganador, a faculdade de conhecer que nos deu não pode- ria falhar, nem mesmo a faculdade de querer, desde que não a amplie- mos além do que conhecemos... A razão dita-nos, naturalmente, que nada devemos julgar, a não ser que, antes de julgar, conheçamos o objeto distintamente (René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 1 997, Coleção Textos Filosóficos, ed. 42, Primeira Parte, Artigos 43 e 44, p. 42).
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são formas diferentes de apreender enquanto desejar, ter aversão, duvidar, são formas diferentes de querer Parajulgar é preciso aplicar a vontade e o livre arbftrio. Aliás, é a existência de uma vontade livre que torna o homem digno de louvor ou de censura.25 As elaborações de Eduardo Couture, examinadas no segundo capftulo (seção 2.4) são um exemplo dessa influência idealista, dessa implicação entre inteligência e vontade que se desenvolve ainda no plano de umafilosofia da consciência. Na visão jusnaturalista de Couture, a vontade também está submetida à razão. A parte tem de dizer ao juiz o que sabe para depois fazer valer aquilo que quer. A razão está orientada para o conhecimento dos fatos enquanto a vontade está orientada para os valores. Nisto consiste a justiça inspirada pela verdade. Esta relação entre conhecimento e vontade tem duas outras perspectivas diversas. Uma delas, que surge na elaboração do positivismojurídico, é inspirada no criticismo kantiano, como será visto no próximo tópico, e a outra, é fruto das incursões de Perelman no campo da Tópica, da Retórica e das Refutações sofísticas de Aristóteles, como também será visto mais adiante.
Na linha que descende diretamente das reflexões cartesianas, importa considerar o idealismo de John Locke, que é, a bem dizer, um realismo representativo.26 O filósofo inglês emprega a palavra idéia no sentido em que Descartes utiliza a expressão cogitatio. No Livro Primeiro de seu Ensaio sobre o entendimento humano, começa por negar a existência de idéias inatas.27 No Livro Segundo,
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(25) René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 1 997 (Coleção Textos Filosóficos, ed. 42), Primeira Parte, Artigos 32, 34 e 37, p.39e40.
(26) A propósito, v. John Hospers, lntroducción al análisisfilosófico, 2. ed., Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 603-618. Contrariamente ao que sustentava o inatismo cartesiano (as idéias inatas, que não advêm da experiência, são inteiramente racionais, colocadas em nosso espírito por Deus, que não nos engana), o empirismo advoga a tese de que a razão, a verdade e as idéias racionais são adquiridas pelo homem através da experiência.
(27) John Locke, Ensayo sobre eI entendimiento humano, Bogotá, Fondo de Cultura Económica, Sección de Obras de Filosofia, p.17-79.
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sustenta que a alma passa a ter idéias a partir da percepção.28 Neste aspecto — segundo Manuel Garcia Morente — a teoria do conhecimento em Locke coloca-se sob o signo da psicologia.29 Ainda sob este aspecto, também é possível reconhecer no idealismo do filósofo inglês uma base empírica. Isto porque, segundo exposição feita especialmente nos Capítulos 1 a IX do Livro Segundo, ao lado das qualidades secundárias, que não são produzidas pela coisa, mas que têm capacidade de provocar experiências sensoriais (idéias, no sentido que o filósofo passa a empregar), Locke reconhece a existência de qualidades primárias, inerentes às coisas mesmas.30 Nesta medida, só é possível ter conhecimento direto das sensações e nunca das coisas mesmas. Delas só temos cópias, que são modificações subjetivas do espírito, operceber-se a consciência a si mesma, na feliz expressão de Morente.31
No campo da linguagem, John Locke desenvolve uma teoria da designação, exposta nos Capítulos I e 11 do Livro Terceiro de seu Ensaio sobre o entendiinento, na qual se afasta dos pressupostos cartesianos. É que Descartes, ao postular a prioridade do intelecto sobre a experiência, acabou por desconsiderar o aspecto referencial. Para Locke, existem duas classes de signos, vale dizer, as idéias e as palavras. As idéias representam as coisas na mente daquele que contempla, ao passo que as palavras nada mais representam senão as idéias na mente de quem as emprega. As palavras, assim, são signos das idéias do emissor, sinais sensíveis dessas idéias, ao passo que as idéias do emissor são signos das coisas.32 A linguagem seria, assim, simples instrumento de idéias particulares, cuja existência independe da palavra, mas que só podem ser manifestadas através dela. Longe de uma conexão natural entre sons e idéias, Locke sustenta que a linguagem é arbitrária, ou seja, o uso prolongado de uma
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(28) Idem, p. 83-99.
(29) Manuel Garcia Morente, op. cit, p. 1 82. No mesmo sentido, Miguei Reale, op. cit., p. 120 e 121.
(30) John Locke, op. cit., p. 83-128.
(31) Manuel Garcia Morente, op. cit., p. 183.
(32) John Locke, op. cit., Livro Terceiro, Cap. ¡ e Cap. 11, § 2-6, p. 39 1 -396.
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