(69) Idem, Introdução, Iv - vII, p. 42-57. Veja-se que, diferentemente do que supunha o realismo representativo de Locke, nem mesmo as qualida- des primárias pertencem à própria coisa. Forma, extensão, movimento e, por conseguinte, todas as propriedades espaciais e temporais estão na consciência. Mais que isto, as relações de causalidade, o conceito de possibilidade e necessidade, tudo se funda em certas formas e funções a priori, as quais, excitadas pelas sensações, entram em ação, independentemente da nossa vontade. Enfim, o mundo em que o homem vive é formado por sua consciência, por suas formas a priori. E a isto se chama mundo fenomênico. Esta, pois, a perspectiva fenomenológica em Kant (Hessen, op. cit., p. 108 a 1 I 1).
(70) Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1 979, p. 1 39- l 48, eAjustiça e o direito natural, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p. 124-136.
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isso, não existe qualquer contradição entre a causalidade da ordem natural e aliberdade sob a ordem moral oujurídica.71 Kantrecusa o direito natural (na concepção clássica) por entender que a lei posta vincula-se ao Estado. Mas o conceito de direito transcende o empirismo da lei positiva, buscando fundamento na razão prática, que procura conter a vontade sem limites. O dever, que vale para todos e para qualquer ação, é uma forma universal categórica, Age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal 72
A matriz da Teoria Pura do Direito é kantiana, como se pode ver da distinção entre as categorias do ser e do dever ser. Mas para Kelsen a razão não é legisladora, pois sua função é conhecer e não querer. Ao considerar que a norma é posta por um ato de vontade, Kelsen afasta a possibilidade da existência de uma norma imedia- tamente evidente, que pressupõe a razão prática. Isto lhe dá condições para estabelecer a distinção entre o ato do conhecimento (ciência do direito) e o ato de vontade (norma), numa perspectiva diversa daquela concebida por Kant, que acaba identificando es- tas duas esferas.73 E que o direito, na visão kantiana, está no campo da razão prática, orientada pela lei moral que impera na cons- ciência do homem, ao passo que o imperativo categórico, do ângulo da Tcoria Pura do Direito, serve apenas para separar o mundo da natureza, causalmente determinado, do mundo espiritual das normas, as quais Kelsen também concebe como imperativos, mas apenas na formulação do legislador. Esse empirismo da lei positi- va, não considerado por Kant, permite uma aproximação entre Kelsen e os neoempiristas. A norma nasce de um ato de vontade (lei, sentença etc.), mas se desprende dela, ganhando um sentido objetivo, quando se torna norma posta. Kelsen reivindica, então, uma dimensão lógica para o direito, que estaria no nível da proposição jurídica. Esta, entretanto, é uma situação complicada do
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(71) Hans Kelsen, Teoria purci clo dij•eito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979,p. 148.
(72) Kelsen, Ajustiça e o direito natural, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p. 24 e 25.
(73) Ide,n, p. 124-136.
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ponto de vista do positivismo lógico, porque, como será visto mais adiante, a proposição jurídica, na Teoria Pura do Direito, é também um dever ser, que tem um sentido descritivo.74
Enfim, uma teoria do abuso do direito processual, na perspectiva kelseniana, mais não poderia fazer senão identificar possíveis significações da sentença que apreciou a questão do abuso como posta pelas partes. Com isto, Kelsen busca fugir do embaraço de uma linguagem lógica sem referente, de um sentido sem denotação, di- ficuldade que teria de enfrentar caso admitisse a possibilidade de uma relação direta entre o campo do conhecimento e o campo da vontade, dos valores. Com a intermediação da norma, que aparece como esquema de interpretação (e não como estrutura de sentido), a Teoria Pura procura contornar o problema. Contudo, está claro que as teoriasjurídicas não são simplesmente descritivas. Elas participam do processo de criação do direito, o que será mais tarde enfatizado pelas correntes jusfilosóficas que acentuam o papel da argumentação no campo da produção jurídica, a exemplo da nova retórica de Perelman.75
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(74) Kelsen, Teoria pura do direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1 979, p. 1 16.
(75) Perelman, segundo se sabe, dedicou-se inicialmente à lógica formal, escrevendo sua tese, em 1938, sobre Gottlob Frege. Tentou aplicar o método positivista de Frege à idéia dejustiça, com o que supunha poder eliminar desse conceito todojuízo de valor. Sucede que Perelman não resolveu a questão consistente em saber como se raciocina a respeito de valores. Esse problema foi resolvido, de uma outra ótica, anos mais tarde, quando teve contato com a dialética aristotélica (Manuel Atienza, op. cit., p. 8 1 -83). A crítica de Perelman ao positivismojurídico kelseniano está bem representada na seguinte passagem: Parece-me que todos os paradoxos da Teoria Pura do Direito, assim como todas as suas implicações fllosoficas, derivam de uma teoria do conhecimento que só dá valor a um saber não controverso, inteiramente fundado nos dados da experiência e da prova demonstrativa, desprezando totalmente o papel da argumentação. Com efeito, nem a experiência nem a demonstração Iógica permitem a passagem do ser para o dever-ser, da realidade para o valor, de comportamentos para normas. Por conseguinte, como toda justificação racional das normas parece excluída na perspectiva kelseniana, estas dependem efetivamente de imperativos religiosos, de revelações
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A fenomenologia de Kant exerceu influência notável nos filósofos que se seguiram. Particularmente importante, no campo da semântica, foi Husserl, cujo pensamento, na senda aberta pelo criticismo Kantiano, coloca a tônica no sujeito do conhecimento, na consciência reflexiva. O homem não é um ser puramente intelectual. Ao lado da razão está a vontade dirigida para a ação. A questão da essência do conhecimento desloca-se de uma postura receptiva e passiva — que se encontra na dicotomia idealismo-realismo — para colocar-se no plano da ação e da produção. Sob este prisma, a consciência é uma energia criadora, pois o homem, no lugar de desco- brir o mundo que está em sua volta, passa a produzir a realidade. Essa nova orientação permite colocar a questão do abuso do direito em novas bases. É o que se passará a ver.
3.4 A consciência reflexiva e a razão alargada
Husserl, nas suas Investigações Lógicas, começa por distinguir o campo da epistemologia e o campo da psicologia, a exemplo do quejá fizera Kant. Uma coisa são as regras de correção dos enun- ciados que exprimem o pensamento e outra, diversa, é a gênese do pensamento. As leis psicológicas são empfricas, vagas, limitadas à comprovação de fatos, ao passo que as leis lógicas são certas, pre- cisas e normativas. A apreensão do objeto, do ponto de vista gené- tico-psicológico, dá-se através do método indutivo, ao passo que, sob o ponto de vista lógico, tem-se de aplicar a dedução, adequada
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sobrenaturais. As metafísicas racionalistas que buscaram fundamento puramente humano para nossas normas e para nossos valores não são de fato senão ideologias, que se esforçam em vão para substituir-se ao fundamento religioso não-racional... Para constituir uma ciência do direito tal como ele é, e não como deveria ser, é preciso, ao que me parece, renunciar ao positivismojurídico, tal como concebido por Kelsen, para se consagrar a uma análise detalhada do direito positivo, tal como se manifesta efetivamente na vida individual e social e, mais particularmente, nas cortes e tribunais. Esta revela, de fato, que o dualismo kelseniano não corresponde nem à metodologia jurídica nem à prática judiciária. (Chaïm Perelman, Etica e Direito, São Paulo, Martins Fon- tes, 1996, p. 476 e 477).
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à evidência apodítica.76 Com isto, Husserl afasta-se do naturalismo sensualista, do realismo pscicologista que se vê em Locke e Hume, pois a noção de objeto, segundo sua visão fenomênica, estende-se além da simples objetividade sensível.77 Neste aspecto, também se afasta de Kant, pois as coisas, em sua essência, não são formas subjetivas nem funções transcendentais da mente. A fenomenologia de Husserl amplia o mundo a priori para nele incluir essências transcendentais ao sujeito.78
Husserl é cartesiano, pois admite, da perspectiva do sujeito, que a consciência é a única coisa de cuja existência não se pode duvidar. Assim, tudo o mais tem de ser examinado, porque não se pode
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(76) Edmund Husserl, Investigaciones Lógicas, Madrid, Alianza Editorial, S .A., Colección Ensayo — Filosofía y Pensamiento, 1 999, Prolegomenos a la lógicapura — lntroducción, p. 35-38, Cap. 2, § 1 3, po.53 a 59 e Cap. 8, po. 1 39- 1 63; ldem, investigaciones para lafenomenologia y teoria del conocimiento, § 1-3, p. 215-222; Recaséns Siches, Estudios de Filosofía del Derecho, in Del Vecchio e Recaséns Siches, Filosofía del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Hispano-Americana, 1 946, p. 617-620; Emile Bréhier, Historia de la Filosofía, vol. 2, Madrid, Editorial Tecnos S.A., 1988, p. 630-635; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 35-40.
(77) Edmund Husserl, idem, vol. 1, Segunda Investigação, Cap. 2, § 7-12, p. 307-317; Segunda Investigação, Cap. 5, § 37, p. 362-368; Recaséns Siches, Estudios de Filosofla del Derecho, in Del Vecchio y Recaséns Siches, Filosofía del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Edi- torial Hispano-Americana, 1946, p. 70, 153 e 154; Emile Bréhier. op. cit., vol. 2, p. 63 1 e 632.
(78) Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, in DeI Vecchio y Recaséns Siches, Filosofia del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Editorial Hispano-Americana, 1946, p. 70; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 40-42; Emile Bréhier, op. cit., vol. 2, p. 632-635 e 669-670. Emile Bréhier explica que Kant retira o sujeito do objeto. O sujeito é somente condição para experiência de um objeto previamente determinado pela ciência. Ao contrário, Husserl entende que se tem de fazer uma abstração do objeto para empreender uma análise adequada do sujeito, que, ademais, não deve ser psicológica e sim fenomenológica. Por conseguinte, só em Husserl se mantém o subjetivismo como racionalismo (op. cit., vol. 2, p. 670), uma espécie de empirismo
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
fazer suposições sobre a existência de qualquer outra coisa.79 Afastando-se da polêmica acerca da existência de objetos fora da consciência — discussäo que considera estéril, por envolver problemas insolúveis — Husserl parte da única certeza, vale dizer, da existência de objetos da consciência. Sugere, a partir daí, que aquelas per- guntas irrespondíveis, alvo das intermináveis disputas entre o realismo e o idealisino epistemológico, sejam colocadas entre parênteses. Desta forma, a fenomenologia husserliana busca, a exemplo das idéias platônicas, as essências imutáveis das coisas, que são conhecidas por uma intuição particular. A intuição das essências, que é a priori, independente de toda a experiência, afasta do objeto tudo que é acidental, contingente, para atingir aquilo que é universal, o eidos.80 Este, pois, é o método da fenomenologia, que permite à filosofia elevar-se à categoria de ciência.
A redução eidética (epoché) consiste precisamente nessa transformação dos fenômenos em essências, o que se dá através de um movimento de transcendência daquilo que é puramente fático e particular no objeto. Não se trata de uma oposição entre sujeito e objeto, mas de uma relação necessária, por meio da qual a coisa é dada ao sujeito, à sua consciência, através de uma intuição intelectiva. A consciência, para Husserl é sempre consciência de alguma coisa (intenção), de modo que não se pode falar em consciência separada da coisa, em sujeito separado do objeto. O papel da intuição é realizar (cumprir na linguagem de Husserl) a intenção. Em outras palavras, pode-se dizer que a intuição, fonte última do conhecimento humano, permite revelar, dentre os diferentes modos pelos quais o objeto se apresenta à consciência, aquilo que ele tem de mais consistente, como a priori material,
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transcendental, pois nele a intuição aparece como fonte última do conhecimento.
(79) Emile Bréhier, op. cit., vol. 2, Madrid, p. 634 e 635; Miguel Reale, Filo- sofici do Direito, 1 1. ed., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 362 e 363; João MaurícioAdeodato, Filosofia do Direito — uma crítica à verdade na ética e na ciência (através da ontologia de Nicolai Hartmann), São Paulo, Saraiva, 1996, p. 69. Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Quinta Investigação, p. 473 a 527.
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distinto do a priori racional de Kant. Dentro de uma análise pro- gressiva, de uma seleção gradual, que faz lembrar a dúvida metódica cartesiana, buscam-se aquelas notas essenciais, aquilo quejá não se pode mais colocar entre parênteses, sob pena de perder-se o objeto, conceito que, por ser universal, aplica-se a cada uma das coisas individualizadas.81
Posto o conceito, é necessário partir para a recuperação do mundo natural, que não se encerra no sujeito cognoscente, como supu- nha Descartes. O volver à subjetividade transcendental tem em conta a bipolaridade sujeito-objeto, o olhar e a coisa. Na primeira atitude (redução eidética), suprime-se o sujeito, com o afastamento, com a neutralidade. Significativo, neste sentido, o étimo de epoché, do grego abster-se. Nesta intuição da essência, não importa indagar sobre a existência extramental do objeto. Em uma segunda atitude filosófica, volta-se, então, a tecer a relação cognoscitiva dentro da qual o sujeito está preso ao mundo. O mundo está diante do sujeito não só como inundo das coisas, mas também como mundo dos va- lores, mergulhado na temporalidade e na historicidade. Este é o ponto de vista de quem se dirige para o mundo e, ao mesmo tempo, de quem está situado nele, descortinando um horizonte de coisas que não são simples corpos, mas objetos de valor.82
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(81) Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Quinta investigação, Caps. 1 e 2, p. 475a526.
(82) A propósito dessa exposição de Husserl, que se encontra em suas Meditações Cartesianas, vale citar o breve e compreensivo resumo de Lalande: a fenomenologia procura esclarecer o princípio último de toda a realidade. Como ela se situa sob o ponto de vista da significação, este princípio será aquele pelo qual tudo ganha um sentido, o ego transcendental, exterior ao mundo, mas virado para ele. Aliás, este sujeito puro não é o único, porque faz parte da significação do mundo oferecer-se para uma pluralidade de sujeitos. A objetividade do mundo aparece assim como uma intersuhjetividade transcendental. O reconhecimento do domínio transcendental e sua descrição exigem que se adote uma atitude difícil de tomar e muito diferente da atitude natural; o momento essencial é aquilo que Husserl chama de redução fenomenológica transcendental (André Lalande, Vocabulário — técnico e crítico — da Filosofia, 10. ed., voi. 1, Porto, Rés Editora, Ltda., s/d, p. 471).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
o exame do abuso do direito das partes no processo judicial implica dificuldades que não passaram despercebidas à análise fenomenológica. Trata-se de uma categoria jurídica, de um símbolo, cuio sentido é sempre uma aproximação na base do significado de outras expressões, a exemplo de ilícito, uso anormal do direito, litigância de má-fé, conduta temerária, deslealdade ou improbidade processual.83 A dificuldade está em eliminar a vagueza do termo. Na tentativa de restringir o campo extensional da definição, para apurar o conceito, aprofunda-se o campo intensional, delimitando o conjunto de propriedades que o termo designa, com o que se corre o risco de formular uma definição muito restrita. De outro lado, se não se aprofundar o campo intensional, escolhendo propriedades que possam reduzir a extensão da palavra, corre-se o risco de produzir definições muito amplas, que se perdem na vagueza do termo.84 A idéia, em si mesma, é incomunicável. A linguagem, por sua vez, padece de vicissitudes que comprometem o conhecimento do objeto. A redução eidética do abuso processual procura exatamente fugir a este impasse, deixando em suspenso, entre parênteses, os dados empíricos e acidentais daquele objeto cultural, libertando-o de tudo quanto possa ser contingente, individual, para que dele somente reste aquilo sem o que o objeto desapareceria. A dificuldade, neste
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(83) Na explicação de José Ferrater Mora, a essência ou a unidade ideal de significação desses standards não está radicada em uma forma ontológica, mas em atos intencionais que, executados (cumpridos), engendram outros sentidos, outras realidades, característica própria do processo cultural. Ferrater Mora sugere a figura de uma árvore, dizendo que ela representa, em diversos graus de aproximação, uma árvore real. Porém, a figura dá à arvore figurada um sentido que esta originariamente não tem. Cada nova figura vai aumentando o espectro de sentidos possíveis de árvore. EIa pode ser entendida como símbolo de fortaleza, objeto de adoração, símbolo do Iugar onde se realiza ajustiça ou debaixo da qual os amantes juram fidelidade eterna um ao outro. Com isto, vai-se deixando o sentido como intenção para ingressar em outras formas de sentido, que não são, todavia, completamente independentes da trama originária de árvore. (Ferrater Mora, Fundamentos de Filosofia, Madrid, Alianza Editorial S.A., 1987, op. cit., p. 173).
(84) A propósito das noções de conotação, denotação, ambigüidade, vague- za, intensão e extensão, ver o segundo capítulo (seção 2.3).
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ponto, reside em buscar a essência, o conceito universal, escoimando o objeto das impurezas, de suas notas secundárias, acidentais.
A primeira vista, o embaraço é o mesmo que se apresenta sob a ótica do a priori formal, do racionalismo kantiano que inspirou a obra de Kelsen, desde que a natureza do Direito, não se fundando naquilo que empiricamente se realiza, nem tampouco nos motivos interiores ou puramente morais, revela-se, de outra parte, na razão pura.85 Aliás, diga-se de passagem que as polêmicas dogmáticas em torno da noção de abuso do direito, como demonstrado nas seções anteriores deste capítulo, alimentam-se, na subjacência, de dispu- tas filosóficas, de questões aporéticas, o que explica as dificuldades. Incumbe à teoria geral do direito — sobretudo a uma teoria crítica — trazer à tona do debate estas questões latentes. Entretanto, como já dito, o método fenomenológico supera aquele percalço apontado de início exatamente porque o seu a priori é material, ou seja, precisamente porque Husserl entende que as essências são captadas não mais por uma estrutura apriorística do espírito, mas através da intuição, maneira pela qual o conceito de experiência se expande além do horizonte do empírico, já que as essências tam- bém são desta forma experimentadas.86
Com a reflexão da consciência intencional sobre si mesma, o conceito universal vai-se impregnando do mundo da vida. O sujeito transcendental conserva apenas um caráter abstrato, na medida
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(85) o racionalismo consiste na tendência a considerar verdadeiro apenas o conhecimento que esteja fundado em dados racionais. Por isso, toda experiência tem de ser racionalizada para que o conhecimento obtido através dos sentidos possa ser considerado verdadeiro; a descoberta da verdade por procedimentos não-racionais, a exemplo da intuição e da revelação, é enganosa, pois seus resultados sempre têm de se submeter ao crivo da razão.
(86) Recaséns Siches, Estudios de Filosofía del Derecho, in Recaséns Siches e De1 Vecchio, Filosofía del Derecho, Tomo I, México, Union Tipografica Editorial Hispano-Americana, 1946, p.70 e 7 1, e Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 40-42. Ver também, no mesmo sentido, Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 365, e Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 5,1 1 1,1 12.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
em que se faz sujeito concreto, sujeito no mundo.87 A fenomenolo- gia vê ajuridicidade como uma atividade consciente, um conjunto de experiências de ordem prática que constitui o mundo vivido. E na análise sistemática da experiência que se pode buscar a certeza, embora apenas como fenômeno.88 Mas o que importa, afinal, é que é este exatamente o mundo em que se vive, aquele que todas as pessoas experimentam. Por isso, é na realidade revelada pela experiência prática do processo judicial que está a verdade objetiva do direito. O conceito de abuso somente pode ser compreendido nesse contexto, que permite explicar a singularidade da ciência jurídi- ca, uma hibridação de saber descritivo e prática prescritiva, um campo em que a atividade do estudioso vai sendo aos poucos incorporada ao seu próprio objeto de estudo. Daí a dificuldade, sob outro ponto de vista (dicotomia sujeito-objeto), de tentar justifi- car uma ciência que descreve e, ao mesmo tempo, modifica o próprio objeto da descrição.89
Exemplo da dificuldade acima apontada pode ser visto na Teo- ria Pura do Direito, quando Kelsen estabelece a distinção entre
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(87) Emile Bréhier, op. cit., p. 670.
(88) A fenomenologia husserliana, que se aplica a todos os campos do co- nhecimento humano, como são as artes, as ciências, a matemática, admi- te que, sob o ponto de vista fïiosófico, é possível o conhecimento das coisas puras, da idealidade. Assim, a Filosofia da Matemática, porexem- pio, trata dos fundamentos lógicos da aritmética, ao passo que a feno- menologia da matemática irá tratar das experiências envolvidas na práti- ca da aritmética, nas operações que se realizam com os números, por exem- p1o (Husseri, op. cit. voi. l, introducción, cap. 2, § 1 3, p. 57, investigaciones para lafenomenologia y teoria del conocimiento, introducción, § 2 e 3, p. 217-222). Assim também se passa com o Direito.
(89) A propósito destas dificuldades, ver, particularmente, Luís Alberto Warat, E1 derecho y su lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de Dere- cho y Ciencias Sociales, 1976, p. 171; Alberto Casalmiglia, op. cit., p. 244. Karl Larenz, op. cit., p. 177-241, TheodorViehweg, Tópicayfilo- sofia del derecho, Barcelona, Gedisa Editorial, p. 1 5-28, 77-85, e Carlos Santiago Nino, introducción alanálisis del derecho, 2. ed., BuenosAires, Editorial Astrea, p. 338-347. Ver, outrossim, o que foi dito no segundo capítulo (seção 2.3).
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
Proposição jurídica (enunciado que descreve a norma) e norma jurídica (objeto da ciência normativa). E que para ojusfilósofo aus- tríaco, a proposição jurídica também é normativa, por descrever normas do dever-ser. Apesar disto, a proposição jurídica não tem um sentido prescritivo, mas sim descritivo.90 Husserl, de outra for- ma, sustenta que o conteúdo teorético está separado da idéia de normação, do dever-ser que é objeto de investigação das disciplinas teóricas. As disciplinas normativas cuidam sobretudo de vaIorações práticas.9 Enquanto Kelsen concebe a norma fundamental como categoria formal a priori, pressuposto de validade do or- denamento jurídico, a fenomenologia husserliana permite entender que o dever-ser da norma fundamental é a priori material, de con- teúdo axiológico, integrante da essência mesma da ordem normati- va, à qual se tem acesso por intuição.92 Nisto consiste o giro fenomenológico que permite contornar as dificuldades epistemológicas de uma ciência que descreve prescrevendo.
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