Abuso de direito processual editora afiliada



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Ao defender a verdade como concordância do relato com os fatos ocorridos (veritas), os subjetivistas enveredaram por um terreno coberto de dificuldades. A sentença, fundada em evidências psicológicas ou subjetivas, não pode ser objeto de um enunciado univer- salmente válido. Atrelar a noção de abuso processual, por exemplo, à intenção de enganar implica a produção de uma sentençajudicial que opera na base das valorações, da intuição emocional e volitiva. Pondo de parte a polêmica em torno da objetividade ou subjetividade dos enunciados éticos, é certo que a norma individual e con- creta não pode, do ponto de vista do neopositivismo, dar lugar a um conhecimento de validade universal, pois a linguagem teórica, que é lógica, também tem de ter um referente Iógico. Ocorre que a sen- tençajudicial não descreve fatos, fazendo apenas estimativas. Como o ato dejulgar tem conteúdo voluntarístico, não se esgotando na pura atividade do intelecto, disso resulta também a inadequação de um critério de verdade fundado na evidência racional.70

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(70) A Ciência do Direito, especialmente no Brasil, ainda está muito imbufda de racionalidade abstrata, no sentido de que a experiência jurídica possa toda ela ser reduzida a uma sucessão de silogismos ou de atos atribuíveis a uma entidade abstrata, ao homo juridicus. A técnica jurídica, operando com meros dados lógico-formais, vai, aos poucos, firmando a convicção errônea de que ojuiz deve ser a encarnação desse mundo abstrato de normas, prolatando sentenças como puros atos de razão. Na rea- lidade, sabemos que o juiz, antes de ser juiz, é homem partícipe de todas as reservas afetivas, das inciinações e das tendências do meio social, e que nós não podemos prescindir do exame dessas circunstâncias, numa visão concreta da experiência jurídica, por maior que deva ser necessa riamente a nossa aspiração de certeza e de objetividade (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São Paulo, Saraiva, 1 986, p. 1 36).

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

A posição adotada pelos objetivistas, ficasse somente na refutação ao idealismo e ao empirismo psicologista, não resolveria as dificuldades acima apontadas. Com efeito, os objetivistas sustentam que a verdade consiste na concordância do relato com o objeto, pouco importando saber se a alteração dos fatos resulta ou não de um ato deliberado das partes. Sucede que a verdade judicial, como já visto, não tem compromisso com o mundo sensível, mas sim com a decisão, que o discurso jurídico, na base de elementos irracionais e estimativos, busca legitimar. Entretanto (e aqui está a diferença), o objetivismo, tal qual desenvolvido pela dogmática processual, não se deixa confundir com um realismo ingênuo, avançando também no campo cultural. Há em toda interpretação um fazer persuasivo, que reconstrói o objeto. Não basta a convicção íntima dojulgador (psico- logismo) e tampouco uma investigação puramente lógica (intelectualismo). Necessário se faz aquilo que os processualistas chamam de persuasão racional, a qual se desenvolve no campo da retórica.71

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(71) Aristóteles divide a classe das orações em duas sub-classes, a saber aquelas que comportam a atribuição dos juízos verdadeiro efalso e aquelas que não comportam. As primeiras correspondem à lógica e as segundas à poética, à retórica. Ao Iado das orações apofânticas, o filósofo grego distinguiu as súplicas, as ordens, as respostas, as ameaças (Aristóteles, De la expresión o interpretación, Cap. 4, 16a/17a, in op. cit., p. 256 e 257; Aristóteles, Poética, Cap. 19, 1456b, in op. cit., p. 95). A argumentação, em Aristóteles, surge como uma das partes da arte retórica, voltada ao convencimento. O discurso forense tem a aparência de um silogismo. Entretanto, nele se coloca a questão da verossimiIhança, que não se confunde com a verdade. A partir de entimemas, os litigantes desenvolvem um discurso tópico, pautado em noções comuns, que recorre à dialética, capaz de conciliar os contrários. A apresenta- ção das provas desenvolve-se, então, na base de argumentos de autoridade, do apelo aos sentimentos e à piedade do ouvinte, sem deixar de Iado os indícios, documentos e testemunhos (Aristóteles, Retórica, Livro I, Caps. 1 e 2, 1354a/1359a, in op. cit., p. 1 16 a 122). Miguel Reale re- gistra que a realidadejurídica... não pertence à esfera dos objetos ideais, nem à esfera ou ao âmbito dos objetos psíquicos, pois lhe corresponde uma estrutura própria, a dos objetos culturais... (Filosofia do Direito, 1 1.ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 302). Em outro ponto, acrescenta: “Sentenciar não é apenas um ato racional, porque envolve, antes de mais

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Ainda que o processo não mais esteja preso à chamada prova legal, certo é que o conhecimento do fato empírico exige formas e fórmulas pelas quais se toma fato pertinente, fato processual. Apenas na ausência de regulação específica pode o juiz aplicar as regras da experiência (art. 335 do CPC); assim mesmo, o fato empírico só terá relevância se subsumido a uma norma jurídica. Ademais, nem todas as provas são permitidas (arts. 332, 401, 405 e parágrafos do CPC). O silêncio do réu, no processo penal, é uma faculdade prevista na Constituição (art. 5.°, LXIII). Diferentemente, no processo civil, o silêncio pode muitas vezes constituir prova contra aquele que permaneceu calado (arts. 343, § 2.°, 359, I, do CPC), sendo admitido apenas em certas circunstâncias moralmente rele- vantes (art. 363 e incisos do CPC). Estas particularidades, somadas às regras do ônus da prova, da preclusão e da coisa julgada, bem demonstram que a verdade é uma condição retórica de sentido, um lugar comum que permite às partes e aojulgador estabelecer o con- senso em torno deste ou daquele significado.72

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nada, a atitude de estimativa do juiz diante da prova. O bom advogado sabe perfeitamente da importância dos elementos emocionais na condução e na apreciação dos elementos probatórios. Tais fatores de convicção adquirem importância muito grande em certos setores do Direito, como, por exemplo, no júri popular. A convicção dojurado não é mera resultante de frias conjeturas racionais, pois vem animada sempre de cargas emotivas... (idem, p. 136).

(72) Nas palavras de Karl Engisch, o chamado ônus da prova é uma das figuras de pensamento mais ricas de sentido que a razão dos juristas tem elaborado. O ônus da prova relaciona-se com a hipótese de, apesar de todas as atividades probatórias, subsistirem dúvidas na questão de fato. O juiz tem de resolver o Iitígio, muito embora não possa resolver a dúvida. Qual a decisão que ele há de proferir em tais circunstâncias, eis precisamente o que lhe vem dizer o ônus da prova, mais exatamente a regulação do ônus da prova. O complexo de todos os fatos é dividido em fatos cuja prova se encontra a cargo do autor e fatos cuja prova compete ao demandado. O ônus da prova, do ponto de vista de uma lógica jurídica, é uma injunção ao juiz sobre como ele deve decidir sempre que não possa afirmar ou negar com segurança fatos juridicamente relevantes. Diferentemente do que sucede no silogismo lógico, a ausência de prova do fato (e, portanto, do fato), resulta em uma conclusão, qual seja,

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

O processo judicial, impregnado do sentido ético e prático, exige dos litigantes e do juiz um envolvimento em torno da construção de significados, que não são conceitos puros e tampouco expressão de uma realidade tangível, como faz crer a teoria representativa do significado. Há entre as partes, e também na relação das partes com o juiz, um controle persuasivo, pois os limites entre a conduta ilícita e a conduta abusiva estão no mundo da vida. Como salienta Tercio Sampaio Ferraz Junior, provar significa não apenas demonstrar um fato (sentido objetivo) mas também aprovar ou fazer aprovar (sentido subjetivo). Isto se dá através de uma espécie de simpatia, capaz de sugerir confiança, ou através de argumentos que permitam a fixação de um sentido favorável àquele que fala e argumenta.73

Está claro que um objeto assim tão multifacetado, como é a experiência jurídica, reclama uma compreensão teórica em condições de romper as amarras com o conceito de representação. Este passo foi dado a partir de Wittgenstein, notadamente em suas Investigações Filosóficas, quando se tornou possível compreender que certos enunciados declarativos, conquanto nada descrevam, podem ter um sentido.74 Coube a John Langshaw Austin dar um tratamento mais ordenado aos conceitos que Wittgenstein propositadamente apenas rnostrou, a começar por duas grandes classificações, que serão daqui a pouco examinadas. Antes é necessário analisar alguns pressupostos da chamada teoria dos atos defala, objeto de

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o julgamento de improcedência da ação (Karl Engisch, op. cit., p. 102- 104). A questão do ônus da prova envolve complicados problemas de ordem prática. Um deles consiste em saber a quem compete provar o fato negativo, cuja ocorrência é afirmada no processo. Atualmente, em conseqüência do reconhecimento dos chamados interesses transindividuais, característicos da sociedade pós-moderna, a legislação prevê, em certos casos, a inversão do ônus da prova em favor do coIegitimado para o exercício da ação que tem em conta a defesa dos interesses metaindividuais. Vê-se aqui a tentativa de facilitar a proteção de interesses que a sociedade pós-industrial considera relevantes.

(73) Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 291.

(74) A propósito, v. Aristóteles, Poética, Cap. 19, 1456b, in op. cit., p. 95.

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ABUSO DE DIREITO PROOESSUAL

publicação póstuma, na base de apontamentos e anotações de estudiosos (recolhidos porJ. Urmson e Marina Sbisá) que tiveram a opor tunidade de ouvir a série de conferências proferidas porAustin, em 1955, na Universidade de Harvard.75

Austin, como caudatário da tradição pragmática, critica a teoria filosófica centrada no significado semântico, pontos de vista que, mais tarde, John Searle tentará conciliar. Sua análise representa um novo paradigma na teoria do conhecimento, pois a partir dos conceitos centrais de cada uma das ciências, confrontados com seu uso na linguagem ordinária, torna-se possível esclarecer o sentido das elaborações científicas. Particularmente importantes são as contribuições da teoria dos atos de fala no campo do conhecimento jurídico. A teoria do direito está no nível da metalinguagem, pois seu objeto trabalha com a linguagem natural. É precisamente esta linguagem que constitui a realidade, de onde se pode dizer que linguagem é ação e não mera representação do real. O significado de uma sentença não pode ser estabelecido através de seus elementos cons- titutivos, vale dizer, através do nome (sentido) e do predicado (referência). De outra forma, são as condições de uso das sentenças que determinam seu significado. Assim, a verdade passa a ocupar um segundo plano no campo das ciências e da teoria do conhecimento. No Iugar dela importa considerar a eficácia do ato, que Austin conhece comofelicidade. Com isto, o próprio conceito de significado se dissolve, no que dá Iugar a uma nova concepção de linguagem, qual seja, um feixe de relações que envolvem o contexto, as con- venções de uso e a intenção dos falantes.76

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(75) O trabalho foi publicado sob o título How to do things with words, ern 1962. Há tradução brasileira, de Danilo Marcondes de Souza Filho, a quem também coube al apresentação (Quando dizer éfazer Palavras e ação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1 990).

(76) A propósito, ver as considerações feitas por Danilo Marcondes de Souza Filho na apresentação à tradução brasileira das conferências de Austin (Quando dizer éfazer. Palavras e Ação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1 990, p. 7- 1 7). Ver também Eduardo Rabossi (Actos de habla, in Marcelo Dascal — org., Filosofía del lenguaje 11. Pragmática, Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas, Editorial Trotta, 1 999,

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

O pressuposto desta reviravolta filosófica, com repercussões na esfera da teoria da ciência, está na distinçäo entre sentenças declaratil as (ou constatativas) e sentenças performativas, que Austin estabelece já na sua primeira conferência. A distinção remonta, de certa forma, a Aristóteles, que reconhece a existência de um sentido em perguntas, exclamações, ordens, desejos, autorizações, tal como também admite Wittgenstein. O próprio Charles Stevenson, como foi visto, defende a tese de que as chamadasproposições éticas cumprem um propósito, têm um objetivo, enfim, são proferidas não para relatar um fato, mas sim para despertar sentimentos ou reações. Austin diz que muitas perplexidades filosóficas surgem do erro consistente em confundir declarações fatuais com pro- ferimentos que ou são sem sentido ou então foram feitos com pro- pósitos bem diferentes. O disfarce destes proferimentos, entretan- to, nem sempre surge numa roupagem declarativa. Era de se esperar — diz ele — que os juristas, mais do que ninguém, se apercebes- sem disto.77

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Enciclopédia Iberoamericana de Filosofía, vol. 1 8, particularmente p. 53-60), José Ferrater Mora (Fundamentos de Filosofía, Madrid, Alianza Editorial, 1 987, p. 82-85), Carlos Vogt (Linguagem, Pragmática e Ideo- logici, 2. ed., São Paulo, Editora Hucitec, 1989, particularmente p. 20- 23, 50, 51 e 95-102), Eduardo Roberto Junqueira Guimarães, (Sobre alguns caminhos da pragmática, in Sobre pragmática, Uberaba, Cen- tro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba (Série Estudos), p. 15-27), Alaôr Caffé Alves (op. cit., p. 352-358) e Manfredo Araújo de Oliveira (op. cit., p. 149-169). Registre-se que a expressão sentença, aqui utilizada, não tem relação com ojulgamento de um caso. A sentença, para Austin, é uma unidade lingüística, dotada de estrutura gramatical e de um significado.

(77) J. L. Austin, op. cit., p. 2 1 -23. A frustração dessa expectativa de Austin pode ser ilustrada com o fato de que a dogmática processual ainda hoje concebe a existência de sentenças meramente declaratórias, quando é certo que há nelas um proferimento performativo (para Austin, proferimento é a emissão concreta e particular de uma sentença). A propósito dos proferimentos performativos no direito, ver também Alberto Cal samigl ia, Sobre la dognicítica juridica: presupuestos y funciones del saber jurídico, in Anales de la Cátedra Francisco Suarez, 22, Granada, 1983, p. 257.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Assim, Austin quer dizer que uma declaração de direito não é uma declaração de fato. Expressões como dôo (os meus bens a fulano, v.g.), aceito (a doação, v.g.), declaro (nulo o ato, v.g.), prome- to (devolver o preço, v.g.), dentre outros verbos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa, são operativas. Usá-las, dentro de um determinado contexto, não é descrever o ato praticado, mas sim realizá-lo (daí o neologismo performativo, do inglês to perform). E de uma ação não se diz que é verdadeira ou falsa, mas sim feliz ou infeliz, conforme essa ação seja ou não eficaz. Afelicidade dos proferimentos performativos é explorada por Austin na segunda, terceira, quarta e quinta conferências.78 Na base desse conceito o autor sugere inclusive um novo modelo para a teoria da nulidade dos atos jurídicos. A questão, sem maior interesse no campo do abuso processual, será examinada apenas com o propósito de melhor compreender o paradigma austiniano.

Para que um proferimentos performativo seja feliz há de se observar certas condições assim enunciadas: a) existência de determinado procedimento convencionalmente aceito ou de determinado ritual, envolvendo palavras; b) as pessoas e circunstâncias, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento invocado; c) o procedimento deve ser executado de maneira correta e completa por todas as pessoas nele envolvidas; d) a pessoa que participa do procedimento, buscando influir na atitude ou na conduta de outro participante, deve fazê-Io de maneira sincera, e mais, deve realmente conduzir-se desta maneira subseqüentemente. Se qualquer destas regras for transgredida, o proferimento será malogrado, infeliz. Nos casos a e b, a burla às condições implica nulidade do ato. No direito romano, como foi visto no segundo capítulo (seção 2.2), qualquer infração formal implicava nulidade insanável (condição a). Outros- sim, uma sentença proferida por juiz incompetente ou um ato prati- cado sem mandato judicial, se não ratificado pela parte, é nulo (condição b). Nestes casos, o ato não se concretiza, não surte efeitos, muito embora possa haver resultados ou efeitos no campo fenomênico.79

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(78) idem, p. 29-56.

(79) Austin dá o exemplo do bígamo que, a despeito do nome, não se casa duas vezes, haja vista que o novo casamento é nulo (op. cit., p. 32).

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

A burla à condiçäo c, de outra forma, não interfere com a concretização do ato, do qual não se pode dizer que seja nulo, mas apenas não-consumado, vazio.

O interessante desta classificação, no campo processual, consiste em que o relato vale como prova (tem força legal) não pelo que foi dito mas porque a testemunha, ao assumir o compromisso de dizer a verdade — um substituto do juramento, de origem remotíssima — está praticando uma ação, vale dizer um ato processual. Mais do que a descrição de um fato, a testemunha está agindo, interferindo na construção de um objeto que não é aquele mesmo do mundo fenomênico. Por isso, como insiste Austin, não há o menor sentido em cogitar da verdade ou da falsidade destes atos, que apenas podem ser felizes ou infelizes, caso observem ou não as condições que há pouco foram sucintamente expostas. Quando se diz prometo dizer a verdade, sem a intenção de cumprir a promessa, é certo que houve a promessa, mas o ato foi vazio, na expressão de Austin, porque insincero, proferido sem seriedade. Não se trata de ato nulo, mas malogrado, um caso de infelicidade que o autor trata por abuso, para diferenciá-lo dos casos de desacerto, onde o ato infeliz é nulo. Fal- sa promessa, feita por má-fé, deslealdade, não é um proferimento falso, porque a ação de prometer existe. Não se diz que a instrução do processo é falsa ou que a sentença fundada em prática proces- sual abusiva o seja. A expressão “falso”, no contexto das provas, têm um âmbito ético e institucional que não se confunde com a exatidão entre o relato e a realidade ou entre o relato e o que se tem no pensamento. Como diz Austin, bastará ao mentiroso voltar atrás no seu testemunho, dando as razões de seu deslize.80

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(80) J. L. Austin, op. cit., p. 22 e 26-35. A distinçao entrefato bruto efato institucional será feita mais tarde por Searle (a propósito, v. Jesds lgnácio Martínez García, op. cit., p. 25 e 26). Austin, nas conferências 4 e 5, tratará de explicar, entretanto, que há alguns pontos de contato entre proferimentos performativos felizes e sentenças declarativas verdadeiras. Assim é que ao dizer prometo estou realmente pro- metendo. Em outras palavra, é verdadeiro, e não falso, que estou fazendo. Ademais, é verdadeiro, e não falso, que aquelas condições a, b e c foram satisfeitas.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Ao lado dos performativos explícitos (primeira pessoa do sin- gular do presente do indicativo da voz ativa) estão OS performativos implícitos. Ao dizer faça, está-se ordenando que alguém realize alguma coisa. Mas é possível também que se esteja dando um conselho a esta pessoa, o que não se confunde com uma ordem. Estarei lá amanhã não necessariamente é uma promessa. Estas infelicidades podem resultar da falta de observância de qualquer das condições enunciadas em a, b e c, conforme classificação vista parágrafos atrás. Os exemplos servem, segundo Austin, para demonstrar que a classificação por ele proposta não é exaustiva e que os critérios nela adotados não são estanques, de sorte que admitem sobreposições e zonas de imprecisão. Deve-se evitar a todo custo a simplificação excessiva. Aliás, como foi visto na seção 4.2, coube a von Wright o mérito de ter ressaltado a importância do contexto em que as expres- sões são utilizadas, quando se trata de entender o conceito de nor- ma jurídica, que está fundado no uso e não nas regras gramaticais.

Mas os exemplos acima mencionados, segundo Austin, servem igualmente para demonstrar o quão precária é a distinção entre performativos e constatativos (ou declarativos) na base de um critério puramente gramatical ou lexicográfico. Assim, o emprego da segunda e terceira pessoas, na voz passiva, também se presta a enun- ciados operativos, a exemplo da expedição de autorizações (“está a parte autorizada a deixar o lar conjugal”) ou da realização de advertências (“adverte-se o executado de que a prática configura ato atentatório à dignidade da justiça”). Outrossim, o modo verbal é indiferente porque, ao lado do indicativo, pode-se usar o imperati-vo para ordenar que alguém faça alguma coisa. O tempo verbal tampouco importa, pois além do presente, admitem-se, nas decisões judiciais, construções como “a parte foi desleal” no lugar de “consigno que a parte foi desleal”. Importante também é o contexto. Assim, quando o juiz pergunta à parte, cujo comportamento se mostra inconveniente, “o senhor poderia se retirar?”, está claro que não espera uma resposta. No lugar disto, tem a expectativa de que a parte, em respeito àquela ordem, deixe o recinto.81

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(81) J. L. Austin, op. cit., p. 57-63. Na sua sexta conferência, o autor susteflta que os perforinativos explícitos resultam de “proferimentos mais

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Austin, na scxta e sétima conferências, buscou ainda diversos critérios para salvar a distinção entre performativos e constatativos, com a qual iniciou suas preleções. Mas como não resultassem precisos, acabou concluindo que as diferenças são mesmo artificiais, pois têm em conta só as proposições e não a situação em que estas são empregadas. Ocorreu-lhe, a partir de diversas tentativas frustradas, que necessário seria analisar a totalidade da ação lingüística, em todas as suas dimensões,fonética (emissão de ruídos),fática (conformidade às regras da gramática) e rética (aquilo que é dito), conceitos que passa a aprofundar na sua oitava conferência. A partir destas noções, Austin deixa clara a insuficiência do modelo referencial, pois sentenças como haverá uma sanção, conquanto possam ser entendidas sem maiores problemas, tanto podem ter o sentido de uma declaração como de uma advertência ou de uma ordem. E isto porque, ao dizer algo (ato locucionário), aquele que diz também está fazendo alguma coisa (ato ilocucionário), ou seja, declarando um fato, advertindo, dando uma ordem. Importa, assim, entender o sentido em que a fala está sendo usada nesta ou naquela ocasião.82

Em outras palavras, no nível locucionário, a língua apresenta- se como produção de sons pertencentes a um certo vocabulário, cuja organização se faz segundo regras da gramática, aos quais se atribuem um certo sentido e uma certa referência. Mas é preciso reconhecer que a língua também cumpre outras funções, outros atos. Quando o juiz manda riscar palavras nos autos, aplicando a regra do artigo 15, caput, do cPc, tal ordem pode realizar ações como

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primários, muitos dos quais deram lugar a performativos implícitos. Eu o farei, por exemplo, é anterior a Prometo que o farei. Aquele caráter vago e ambíguo da Iinguagem primitiva pode ter suas vantagens, mas a sofisticação e o desenvolvimento de formas e procedimentos sociais, diz Austin, exige maior clareza (op. cit., p. 69 e 70). Diga-se ainda que nem todas as declarações são descrições. Por isso, Austin prefere a expressão constatativo, no lugar de descritivo (op. cit., p. 23 e 1 16).


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