Início da nota de rodapé
(54) Charles L. Stevenson, E1 signijïcado emotivo de los términos éticos in A. J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 269-273. Particularmente, quanto à passagem re- produzida no final do parágrafo, ver p. 275.
(55) ldem, p. 274.
(56) Gualberto Lucas Sosa, Abuso de derechos procesales, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janei- ro, Forense, 2.000, p. 45.
Fim da nota de rodapé
Página 275
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
tativa de convencer o interlocutor processual.57 Pode suceder que o juiz não se impressione com a argumentação da parte, naquilo que diz respeito às conseqüências do abuso processual que um litigante imputa ao outro, precisamente porque a conduta abusiva não teria o condão de alterar os rumos do processo. Nestes casos, como foi visto há pouco, doutrina ejurisprudência não reconhecem prática de abuso do direito.
Ao lado do uso descritivo das palavras, está o uso dinâmico, que se reconhece nas interjeições que expressam sentimentos, na poesia que embevece, criando um estado de ânimo, e na oratória, que estimula ações e atitudes, funções que não se excluem. Quando o juiz diz a uma das partes, que teria agido de maneira temerária, Por certo, o senhor não incorrerá novamente nesse erro, pode estar fazendo uma predição (uso descritivo), ou uma sugestão, a fim de estimulá-la e, em conseqüência, impedi-la de cometer o mesmo erro (uso dinâmico). Esta classificação tem em conta o propósito
Início da nota de rodapé
(57) O juiz pergunta à parte, que presta depoimento pessoal: em que mo- mento o senhor mentiu? Hoje, ao dizer que não se envolveu nos fatos, ou no processo anterior, quando disse categoricamente que sabia de toda a trama?. Está claro aqui o emprego da falácia conhecida como per- gunta complexa, pois o magistrado está partindo do pressuposto de que a parte em algum momento mentiu. Presente também está a falácia con- sistente em confundir tipos diversos de incompatibilidade de enuncia- dos, quais sejam contraditórios e contrários. No caso de enunciados contraditórios, a verdade de um deles implica a falsidade do outro e a falsidade de um deles acarreta a verdade do outro. Trata-se de p ou nãop , tertium non datur. Cuidando-se de enunciados contrários, mostra- se impossível a verdade de ambos, embora possível a falsidade simultânea. Versões diferentes sobre o mesmo fato, como sucede na hipótese em exame, nem sempre implicam contraditoriedade. Saber de toda a trama não necessariamente implica envolvimento nos fatos. A am- bigüidade e a vagueza das palavras, somadas à carga emotiva, instau- ram, no campo dos signos providos de conteúdo semântico, controvér- sias que não podem ser resolvidas, comojá se disse, na base de códigos binários, resultantes da aplicação dos princípios racionais (identidade; contradição; terceiro excluído). Dependendo do contexto, e considerada a relação de hierarquia entre as partes e o juiz, poder-se-ia cogitar também de um argumentum ad baculum.
Fim da nota de rodapé
Página 276
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de quem fala e não necessariamente o significado da palavra, que pode se manter inalterado apesar da variedade de experiências que acompanham o uso do signo. Entretanto, há uma classe de signifi- cado que tem uma relação íntima com o uso dinâmico, a saber, o signijïcado emotivo, já reconhecido por Ogden e Richards, autores de um livro clássico sobre a teoria do significado.58 Charles Stevenson, partindo da elaboração destes lingüistas, sustenta que o significa- do emotivo é uma tendência de produzir reações afetivas nas pes- soas, tendência esta relacionada à história de uso da palavra.59
Início da nota de rodapé
(58) No Iivro de C. K. Ogden e I. A. Richards (The Meaning ofMeaning, 5. ed., NovaYork, Harcourt, Brace & World, Inc., 1938) os autores desenvolvem o chamado triângulo semiótico. O pensamento (também conhecido como referência, idéia, conceito) está no vértice superior do triângulo, ao passo que o símbolo (signo, palavra) ocupa, na base da figura geométrica, o ângulo esquerdo. O ângulo direito está reservado ao objeto (coisa). Este clássico diagrama busca demonstrar a relação causal entre os diferentes elementos do significado. No livro, os autores desen- volvem um estudo sobre a influência da linguagem no pensamento e na ciência do simbolismo, estabelecendo a distinção, comum aos neoempiristas, entre significado cognoscitivo e significado emotivo das palavras. A função cognoscitiva ou simbólica compreende a simbolização da referência da palavra à coisa e sua comunicação ao ouvinte. A função emotiva, que encontra na poesia a sua forma suprema, compreende a expressão das emoções, das atitudes, dos humores, das intenções de quem fala, bem como sua comunicação ao ouvinte. A propósito daelabo- ração de Ogden e Richards, v. Nicolás Abbagnano, Historia de la Filosofia, tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón S. A., 1978, p. 684, Adam Schaff, op. cit., p. 222-230, Enrico Pattaro, op. cit., p. 79, Umberto Eco, Tratado Geralde Semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1 980 (Coleção Estudos, vol. 73), p. 50 e 51, Umberto Eco, O signo, 3. ed., Lisboa, Presença, 1985, p. 21-26, e Decio Pignatari, Informação. Lin- guagem. Interpretação, 4. ed., São Paulo, Perspectiva, Coleção Deba- tes, 1970,p.30e31.
(59) Charles Stevenson, op. cit., p. 276-278. O autor esclarece também que certas palavras, em razão de seu significado emotivo, são mais apropriadas para determinados tipos de uso dinâmico, como é o caso de democracia, na esfera da oratória, e de amor, na esfera dos sentimentos e da poesia. O Código Civil de 1916, nos seus 1.807 artigos, utiliza-se uma única vez da palavra amor (art. 1 .338), não reproduzida no Código Ci vil atual (art. 868).
Fim da nota de rodapé
Página 277
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Quanto mais acentuado o significado emotivo da palavra, menos provável se mostra que as pessoas a utilizem de um modo puramente descritivo.60 E o que ocorre com a palavra abuso, que remete à intromissão, mau uso, injustiça etc. A teoria do abuso do direito, tanto de viés subjetivista como objetivista, revela não só a desaprovação desta ou daquela conduta processual, como também o objetivo de influenciar a conduta das partes. Daí porque não basta a ela- boração do conceito, como previsto na norma, a pura idealidade, no pressuposto de que as pessoas passem a observar a regra legal pelo simples fato de ela existir. Há, inegavelmente, uma certa mítica da lei, em razão das associações existentes em torno deste símbolo. Todavia, para além da idéia, é necessário reconhecer, comojá fazia o segundo Wittgenstein, a importância do uso, das práticas sociais, na fixação do significado. Isto remete — como vem-se acentuando a todo momento — a uma questão epistemológica, pois ao mesmo tempo em que a teoria do direito interfere na produção social, deixa-se influenciar por ela.
É inegável que, quando o estudioso do direito desenvolve seus complexos argumentativos (que a dogmáticajurídica conhece como teoria), apresentando juízos de valor como se fossem juízos descritivos, busca em verdade estabelecer um certo consenso em torno de determinados significados, que passam a ser vistos como se fossem a expressão da realidade mesma. Os estudos desenvolvidos a propósito da relação entre direito e linguagem têm apontado para o caráter veladamente ideológico das chamadas definições reais. Em outras palavras, o intérprete, ao recorrer às definições reais de abuso, buscando como que um sentido indisputável, propõe em termos de essência aquilo que reputa importante de um ponto de vista prático.61
Início da nota de rodapé
(60) Idern, p. 278.
(61) A propósito desse caráter ideológico das definições reais, v. Luis Alberto Warat, A definição jurídica — suas técnicas, texto programado, Porto Alegre, Atrium, 1977, p. 18. De um ponto de vista funcional, v. Lelio Lantella, op. cit., p. 244-253. Como escreve Alaôr Caffé Alves, a norma jurídica não quer conhecer o mundo das ações humanas e sim modificá-lo (op. cit., p. 194).
Fim da nota de rodapé
Página 278
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Fechando o seu círculo teórico, Charles Stevenson volta à discussão acerca dos requisitos necessários ao reconhecimento do sentido mais importante dos iuízos éticos. Quanto ao primeiro requisito, distingue entre desacordos de crença e desacordos de interesse.62 As partes podem estar certas das conseqüências da omissão da verdade no processojudicial. Mas ainda assim, é possível que uma delas reconheça esta prática como boa e a outra como má. Ou seja, não há entre elas desacordo de crença e sim desacordo de interesses, fruto de uma particular cosmovisão, de uma determinada mundividência. Isto interfere com o terceiro requisito, mencionado por Charles Stevenson no começo do seu trabalho. O desacordo de crenças pode ser resolvido na base do método empírico. Basta verificar os fatos. Supondo que as partes divergentes a respeito da existência de conseqüências da omissão da verdade no processo, cuidar-se-ia de observar a realidade. Contudo, o desacordo de interesses não comporta o emprego de qualquer método racional.63
A discussão travada na doutrina e najurisprudência, como vista nos capítulos iniciais do presente trabalho, a propósito da existência de limites à atuação das partes no processo, revela mais pro- priamente um desacordo de interesses, que pode ser identificado nas dicotomias processo autoritário versus processo científico; processo inquisitivo versus processo dispositivo; verdade formal versus verdade real. Todos reconhecem que a omissão da verdade pode interferir nos rumos da prestação jurisdicional. Quanto a isto não há divergência. Entretanto, há quem sustente que não existem razões para exigir dos litigantes comportamentos distintos daqueles existentes em outros setores da vida social. O processo, sob essa ótica, encarna a luta pelo direito, refletindo as mesmas tensões existentes no resto da sociedade. Os verdadeiros protagonistas dos lití- gios são os cidadãos, não os tribunais, pelo que se tem de deixar as
Início da nota de rodapé
(62) idern, p. 281 a 285.
(63) Idem, ibidern.
(64) A propósito destas questões, v. o segundo capítulo 2, seção 2.4.
Fim da nota de rodapé
Página 279
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
partes livres para desafogar suas ansiedades e angústias.65 Está-se aqui diante de um desacordo de interesses.
Bem se vê, desta forma, que os termos e enunciados éticos não se prestam à verificação científica. Nesse terreno, a questão da verdade, de um ponto de vista cognoscitivo, não se coloca. Mas ainda que não se possa cogitar de um método para a solução do desacordo de interesses, é possível falar em um modo de promover o acordo, que depende do alcance emocional das palavras, isto é, do significado emotivo, de sua força retórica, de uma metáfora apropriada, de um bom tom de voz, da intensidade dos gestos etc.66 Este aspecto interfere com o segundo requisito mencionado por Charles Stevenson no início de seu trabalho. A mudança de atitude diante do reconhecimento de uma determinada qualidade, de um determinado valor, predispõe a pessoa à ação, vale dizer, a conduzir-se em conformidade com aquilo que passou a ver como certo, como bom.
Muitas vezes, desacordos de interesses (atitudes) são apresen- tados como se fossem desacordo de crenças (juízos). Genaro Carrió, examinando a pseudodisputa travada em torno da questão consistente em saber se ojuiz cria direito, chega à conclusão de que não se trata de um juízo descritivo, mas sim valorativo, cuja resposta depende das diversas concepções quc se possa ter acerca da função jurisdicional e do sistema jurídico.67 No caso do chamado abuso do direito, passa-se o mesmo. O paradoxo proposto por Planiol é a mais clara demonstração de que toda controvérsia em tomo da possibilidade de
Início da nota de rodapé
(65) Francisco Ramos Méndez, ¿Abuso de derecho en elproceso?, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p. 6.
(66) Charles Stevenson, Ethics and Language, New Haven, Conn, Yale University Press, 1944, p. 138, apud Nicolás Abbagnano, Historia de Ia Filosofía, tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón S.A., p. 682 e 683. No mesmo sentido, Charles Stevenson, op. cit., p. 284 e 285.
(67) Genaro Carrió, Notas sobre derecho y lenguaje, 4. ed., Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1990, p. 105-1 14. Esse trabalho também se encontra reproduzido, sob o título igiudici creano diritto — esame di unapolernica giuridica, in Uberto Scarpelli (org.), Diritto e Analisi del linguaggio, Edjzjon di Comunità, Milão, 1976.
Fim da nota de rodapé
Página 280
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
exercer abusivamente um direito mal esconde um desacordo de interesses (atitudes) em torno do estatuto teórico do direito, que longe de operar com enunciados descritivos, interfere na realidade, deixando-se também influenciar por ela. Mas claro está que a operacionalidade das teorias jurídicas reside precisamente em não se mostrar como complexo argumentativo. Isto revela uma faceta ideológica que cumpre, no campo do direito, determinadas funções sociais. Comojá se adiantou, há uma série de falácias formais e materiais que visam à legitimação do discurso jurídico como instância imparcial na solução dos conflitos. O encobrimento da atitude permite ao teórico, reconhecendo a subjetividade da posição sustentada, apresentá-la como se fosse expressão do fato real.68
Início da nota de rodapé
(68) Assim, a classificação binária, lícito e ilícito, revela uma falácia meta- física, pois pressupõe um universojurídico povoado de entidades com existência própria. A esfera do permitido, entretanto, acaba denunciando o caráter idealista desta formulação, pois ao mostrar que existe um terceiro modo deôntico, abre espaço para a discussão dos limites do sistema jurídico em contraste com o sistema social (a propósito, veja- se o que foi dito na seção 4.1, particularmente a nota 17). Ao lado da falácia metafísica, acham-se a construçãoforçada do gênero e diferença e afalácia metodológica do recurso à metáfora. A tentativa de elaborar o conceito de abuso do direito como espécie do gênero ilícito, na base da semelhança e de uma diferença específica, herança da lógica clássica, desconsidera o aspecto cultural das construções jurídicas, tal qual como foi visto no primeiro capítulo (seção 1.4). E significativo o poder das metáforas no campo do direito, as quais, ao buscar uma aproximação com o real, acabam por empreender uma reconstrução do objeto, sob aparência de simples substituição das palavras, da mera comparação. O objetivo, entretanto, é prático, operacional (Lantella, op. cit., p. 220, 263-265, 275 e 292; ver ainda Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 35 1). A respeito da comparação entre o processo judicial e o jogo, vale o que foi dito no segundo capítulo (seção 2.4). Eduardo Angel Russo crítica, contudo, essa analogia, pois a teoria do jogo aponta para um modelo matemático, onde nenhuma variável externa pode incidir no desenvol vimento e no resultado. O trapaceiro é colocado para fora do jogo. Os jogadores não agem em colusão para beneficiar terceiro, estranho ao jogo. O objetivo dos jogadores é ganhar. Por último, observa que as regras dojogo permanecem inalteradas durante a disputa. No proces- so judicial, de outro modo, as trapaças muitas vezes fazem parte das
Fim da nota de rodapé
Página 281
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
De tudo que foi dito, resulta claro que a compreensão de uma teoria do abuso dos direitos processuais demanda um modelo epistemológico um pouco mais amplo, que ultrapasse as rígidas mol- duras de uma ciência supostamente descritiva. A chamada investigação pura, mormente no campo das humanidades, entrou em crise no pós-guerra e nos anos sessenta viu-se confrontada com as reivindicações de envolvimento na solução dos problemas econômi- cos e sociais. As exigências do desenvolvimento tecnológico e a crescente transformação da ciência em força produtiva puseram em xeque a própria validade da distinção entre investigação básica e aplicada, passando a exigir novos paradigmas. Nessa ordem de idéias, foi preciso repensar a racionalidade cognitiva das ciências, ruptura epistemológica que se mostra ainda mais significativa quando se está tratando do direito, dividido entre uma racionalidade
Início da nota de rodapé
regras (a respeito, ver seção 2.4). Nem sempre as partes visam a ganhar. Movem-nas, em certas circunstâncias, um ideal dejustiça ou afã de vingança, pelo que não importa o próprio fracasso, contanto que se consiga prejudicar o outro. Muitas vezes, também, prefere-se a solução menos vantajosa do ponto de vista econômico, em nome da rápida solução do litígio. E possível cogitar, outrossim, da modificação das regras no curso do processo, tal como sucede com a reforma das normas proces- suais, que incide de pronto, alcançando o processo em curso, ou com a alteração do direito material, que pode interferir na estratégia das partes. Assim — acrescenta o autor — à incerteza estratégica própria de todos os jogos, soma-se, no caso do proceso judicial, uma incerteza nor- mativa, que decorre também dos problemas de interpretação da lei, dos conflitos entre normas e porque não dizer, da discricionariedade judicial, segundo assinalava Frank Jerome. Diga-se ainda que o fim do pro- cesso não necessariamente coincide com o fim do jogo, pois há de se considerar a liquidação do julgado, sua execução, a prescrição, a abolitio criminis, a retroatividade da Iei penal mais benigna etc. Por último, importa considerar que os teóricos do direito também realizam suas Jogadas quando aparentam apenas descrever o fenômeno jurídico de fora, com o que, consciente ou inconscientemente, influem no comportamento dos outros jogadores (Eduardo Angel Russo, Derecho y la teoria delosjuegos, in JoséAlcebíades de Oliveirajr. (org.), Opoderdas metóforas — homenagem aos 35 anos de docência de LuisAlberto Warat, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 256-261).
Fim da nota de rodapé
Página 282
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
coguinitivo-instrumental e uma racionalidade moral-prática.69 Não há condições ainda de avançar no campo desta transição paradigmática,
Início da nota de rodapé
(69) Boaventura de Sousa Santos, Da Idéia de Universidade à Universida- de de idéias, in Revista Crítica de Ciências Sociais, vols. 27 e 28, Coimbra,junho de 1989, p. 25, 27, 51 e 52. Esse pensador português, ao tratar da dicotomia racionalidade cognitivo-instrumental e racionalidade moral-prática, está-se referindo mais exatamente ao campo das ciências sociais. Entretanto, entende-se que estas categorias também se aplicam à esfera do direito, sobretudo no contexto das chamadas sociedades modernizantes, que coincide com o pós-guerra, com o chamado welfare state, período no qual a teoria do abuso do direito encontrou largo desenvolvimento, como foi visto no primeiro capítulo. A respeito desta epistemologia crítica, que substitui a ética da neutralidade científica pela ética da responsabilidade social do cientista, ver os trabalhos de Hilton Japiassu, Introdução ao pensamento epistemológico, 3. ed., Rio de Janeiro, FranciscoAlves, 1979, e O mito da neutralidade cientifica, 2. ed., Rio de Janeiro, Imago Ltda., 1981. Sobre o conceito de paradigma no âmbito das ciências, ver Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 1982, Coleção Debates, vol. 1 1 5. Nessa obra, surgida no final da década de sessenta, Kuhn critica o modelo da ciência universal e desinteressada, desenvolvido pelo cientificismo positivista. Confronta a produção científica com o ambien- te social que nela se reflete. A ciência não cresce necessariamente de maneira acumulativa e contínua. A ciência caminha por saltos qualitativos, de forma que a descoberta das verdades dá-se através de um processo de normalidade e crise, onde se alternam períodos de consolidação e substituição de axiomas, hipóteses, princípios, categorias e interpretações, chamadosparadignias. Enquanto a elaboração científica não é reconhecida pela comunidade dos cientistas, está-se diante de um estágio de pré-ciência, em um momento de construção do paradigma, que, uma vez aceito na base da unanimidade, instaura um período de ciência normal, madura. Contudo, existem momentos em que os paradigmas, incapazes de dar uma explicação para fatos novos, entram em crise, exaurindo-se. Paralelamente, outros paradigmas vão surgindo 110 horizonte das ciências, com o que se iniciam as chamadas revoluções cientijìcas, que só se consolidam quando um novo consenso se estabe lece em torno de outro paradigma, dando lugar a um novo período de ciência normal. Kuhn deixa claro, assim, que as alterações de rumo no campo científico não são resultado da ruptura de uma lógica inteffla dos padrões científicos. A escolha entre os paradigmas que começam a
Fim da nota de rodapé
Página 283
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
mas já é possível reconhecer que a preocupação dos filósofos com o uso da linguagem (isto a partir de Wittgenstein), ao colocar em crise o modelo representativo da teoria do significado, aponta para as necessárias relações entre o discurso teórico e a prática cotidiana. Esta reviravolta filosófica, com repercussões sobretudo no campo da teoria da ciência, permitirá melhor compreender o caráter praxeológico das elaborações jurídicas, particularmente das formulações relativas ao abuso dos direitos processuais.
4.4 A linguagem e a construço da realidade
Os processualistas nunca levaram a questão da verdade tão a sério quanto o fizeram os filósofos. E certo que as discussões acerca da imanência ou da transcendência da verdade, que orientam, respectivamente, o idealismo e o realismo, tiveram algumas repercussões na polêmica entre subjetivistas e objetivistas, como foi visto no segundo capítulo, particularmente na seção 2.2. Porém, Iogo os
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
emergir no estágio pré-cientffico não está fundada em supostos crité- rios universais e comunais, a exemplo do critério de falsificabilidade, proposto por Popper. A história mostra que não há critérios lógicos ou metodológicos no discurso científico. Na realidade, o cientista está mais preocupado em preservar paradigmas do que propriamente em falsificá-los. Como observou Wittg9nstein, as proposições em si mesmas não guardam nenhum sentido. E necessário ver como funcionam. Por isso, é importante verificar o que os cientistas fazem e procurar entender até que ponto o contexto dajustificação passa a interferir no contexto da descoberta. Enfim, alterando-se as condições sociais, as atitudes dian- te dos fatos, altera-se o campo científico. O modelo dos paradigmas, desenvolvido por Kuhn, permite entender que essa interdependência entre sujeito e objeto também tem repercussões nos diversos níveis do conhecimento jurídico (direito/ dogmática jurídical teoria do direito). E disso exemplo a interferência recíproca entre os complexos argumentativos desenvolvidos pela doutrina jurídica e a prática judicial. Vale dizer, a teoria influi na prática e a prática é incorporada pela teoria. O confronto entre diversos paradigmas conduz a um processo de persuasão que envoive argumento de autoridade, argumento de força e outras estratégias de convencimento, as quais têm em conta fatores sociais, Políticos, econômicos e culturais. A verdade da ciência é mediada pela llnguagem que, por sua vez, é um produto cultural.
Fim da nota de rodapé
Página 284
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
doutrinadores perceberam que a dogmática processual, envolvida com a solução dos conflitos, longe de buscar a essência do conhecj mento, haveria sim de mostrar (no sentido wittgensteiniano) como o conceito de verdade funciona. Trata-se, pois, de jogos de linguagem diferentes. No mundo da filosofla não se há de cogitar de dogmas, de pontos de partidas inquestionáveis, ao passo que no mundo doprocessojudicial algumas regras já estão postas e outras surgem no desenrolar do jogo.
Dostları ilə paylaş: |