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que as diversasformas de vida ou de cultura exigem uma compreensão gramatical adequada a cada um dos contextos sociais. Quem quiser entender a significação, por exemplo, do sistema de canalização de água em uma casa terá de ver que uso é dado a esse sistema. Wittgenstein, como engenheiro que era, não se opunha ao cálculo matemático, desde que inserido no jogo de linguagem apropriado. Fora disto, importava considerar a matemática aplicada, demonstrar não só que os cálculos envolvidos eram formalmente impecáveis, mas também que cumpriam uma tarefa, acima e além de sua própria elaboração formal.42 Coube a von Wright, discípulo de Wittgenstein e um dos responsáveis pela publicação póstuma de suas Investigações Filosóficas, o mérito de ter ressaltado a importância do contexto em que as expressões são utilizadas, quando se trata de entender o conceito de norma jurídica, que não está funda- do em elementos gramaticais, mas no uso comunitário.43
O lógico finlandês von Wright reconhece três tipos de normas principais (a) e três tipos de normas secundárias (b). Das três primeiras espécies são as regras (a.a), a exemplo daquelas desenvolvidas pela Gramática e das que estabelecem os movimentos de um jogo; as diretrizes (a.b.), que dispõem acerca das técnicas e meios empregados com vista a uma determinada finalidade, a exemplo das orientações contidas em um manual de instalação; as prescrições (a.c), que são as ordens, proibições ou permissões dadas pela autoridade que promulga a norma e impõe sanções. Ao lado destas espécies, estão as normas secundárias (b), que têm aspectos em comum com aqueles tipos principais. São elas as normas ideais (b.a), que estão entre as regras e as diretrizes, pois ao mesmo tempo em que estabelecem um padrão, um modelo dentro de uma determinada classe de objetos, orientam o caminho a seguir para alcançar uma
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(42) Estas comparações são feitas por Allan Janik e Stephen Toulmin. A primeira delas parte das idéias do arquiteto Adolf Loos, intelectual da geração vienense que influenciou o pragmatismo das Investigações de Wittgenstein (op. cit., p. 300-307).
(43) A propósito da exposição que segue, v. Georg Henrik von Wright, Norma y acción — una investigación lógica, Madrid, Tecnos, 1974, p. 63- 92e 109-121.
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situação diferenciada dentro de uma determinada classe; os costumes (b.b.), hábitos orientados por certas pressões sociais, que têm pontos em comum com as prescrições, mas que, à diferença delas, não emanam de qualquer autoridade com poderes para impor sanção. Assemelham-se também às regras, pois os costumes diferen- tes permitem distinguir os grupos sociais; as normas morais (b.c), dispersas nos diversos agrupamentos sociais, sem possibilidade de uma definição precisa, e que têm pontos de contato com as regras, porque definem uma determinada instituição (as promessas religiosas, v.g.). Algumas das normas morais encontram fundamento no costume, a exemplo da monogamia.
Acrescenta Wright que os operadores deônticos obrigatório, proibido e permitido são interdefiníveis e que as prescrições ora podem assumir a forma de enunciados imperativos, ora a forma de enunciados condicionais. Com base nessas noções, Wright passa a demonstrar que as normas jurídicas muitas vezes estão ocultas por uma gramática superficial. Só mesmo o exame das semelhança e do parentesco das formas e modos verbais utilizados permite reconhecê-Ias. Assim é que as orações imperativas não necessariamente se identificam com a formulação de normas. É o caso de uma prece ou imprecação (Venha a nós o vosso Reino), de um conselho ou de uma advertência (Não faça isto). Por outro lado, nem todas as normas são formuladas no modo imperativo ou na forma condicional. E o caso das permissões (ainda que se possa falar da obrigação, imposta a terceiros, de respeitá-las). Há permissões, outrossim, que são formuladas em termos imperativos. A luz verde, dirigida ao pedestre, diz atravesse agora. Porém, no uso comunitário, que é o que importa considerar segundo Wittgenstein (Investigações, § 241), seu significado é pode atravessar agora.
Acrescente-se que as diretrizes muitas vezes são também formuladas de maneira imperativa ou condicional. Isto implica reconhecer a possibilidade de usos não-normativos de expressões como você deve, você tem. Ademais, os funtores deônticos dão lugar a formulações muito mais ricas que as sentenças imperativas, pois além da obrigação e da proibição contam com a instância da permissão, categoria deôntica que sugere uma série de questões no
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âmbito da teoria jurídica, igualmente exploradas por Wrigth.5 As normas jurídicas também podem ser formuladas com emprego do modo verbal indicativo, a exemplo da regra do artigo 15, parágrafo Único, do Código de Processo Civil (Quando as expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra), ou do artigo 129 (Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o iuiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes.).
Enfim, abstraindo de um maior aprofundamento no campo da lógica deôntica, que excederia as pretensões desta sumária exposição, pode-se dizer que o jogo de linguagem das normas jurídicas não é a lógica das sentenças indicativas nem das sentenças imperativas, nem tampouco das sentenças condicionais ou hipotéticas. E isto porque o significado da norma não está preso a elementos gra- maticais, mas relacionado ao uso, ao emprego da expressão norma- tiva, dentro de um determinado contexto histórico e social.45 Isto
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(44) A propósito, v. a distinção entre permissãofraca e permissão forte, que interfere com a questão do direito subjetivo (G.H. von Wright, op. cit., p. 100-107). Em última análise, o espaço dapermissão também interfere com o tema do abuso do direito, pois o que se discute são os limites do ordenamento jurídico.
(45) Neste sentido, a questão do racionamento de energia elétrica no País é ilustrativa. O que está no centro da regulação feita pela Medida Provisó- ria 2. 1 52, de 1 0.06.200 1 (muito embora a norma não faça esta referência) é o abuso do direito do consumidor diante de uma crise dos recursos hídricos, perspectiva que acaba coiidindo com a Lei 8.078/90, cuja ótica é precisamente inversa (defender o consumidor contra o abuso do for- necedor). Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (ADC 9-6 — DF, j. 28.06.2001, Tribunal Pleno, rel. Néri da Silveira, maioria de votos), à vista do grau de institucionalização do Código de Defesa do Consumidor e sem condições de argumentar no campo da estrita constitucionaIidade, diante da norma dos artigos 5 .°, inciso XXXII, 1 70, inciso V, 1 75, incisos 11 e IV, da Constituição Federal, preferiu manter-se no campo da efetividade da norma (uma decisão contrária ao Executivo poderia comprometer o plano de racionamento, com sérias conseqüências sociais, o que o povo brasileiro parece entender, tanto assim que os jornais
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explica porque se buscou apontar, no primeiro e segundo capítulos, a maneira como a chamada teoria do abuso do direito funciona, de que forma os juristas e operadores do direito procuram conciliar a verdade como imperativo ético com a verdade como imperativo prático. Esta tensão dialética, que alimenta as discussões em torno do abuso dos direitos processuais, revela-se no segundo Wittgenstein como um falso dilema, uma polêmica sem sentido, exatamente por- que não se pode buscar o significado de expressões deslocadas do uso, fora dapraxis social. Nessa mesma perspectiva, a polêmica entre subjetivistas e objetivistas, desenvolvida nas duas primeiras seções do segundo capftulo, também se revela destituída de sentido, pois para saber o que alguém diz não é necessário investigar o que tem em mente. Basta ver como as partes empregam as palavras nos di- versos contextos do processo, que é uma das diversasformas de vida.
4.3 Razão teórica versus razão prática
Como foi visto, o positivismo lógico coloca os enunciados descritivos em posição privilegiada, porquanto somente a eles se pode aplicar o conceito de verdade. Do ponto de vista do positivismo metodológico, ou também chamado conceitual, ainda que se pudesse conceber o direito como ciência dos valores, certo é que ao cien- tista não seria dado mais do que descrever a norma, cujo sentido objetivo independe das condições psicológicas e das condições sociais que possam ter orientado sua edição. A propósito, como já se disse anteriormente, o pressuposto de Kelsen, comum a todo neopositivismo, é o caráter descritivo da ciência, que não se coaduna com o aspecto prático ou emocional dos juízos de valor.46
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noticiam a redução no consumo de energia elétrica em praticamente to- dos os Estados membros). Outrossim, a decisão da suprema corte, ao deferir o pedido de medida cautelar deduzido nos termos do art. 21 da Lei 9.868/99, utilizou-se também de um padrão axiológico que contra põe os critérios dejustiça comutativa ejustiça distributiva, distinção feita por Aristóteles no Livro V da Etica a Nicômaco (distribuição dos ônus na proporção do consumo de cada um dos consumidores).
(46) Ver, neste sentido, a análise de Nicolás Abbagnano, Historia de la Filosofía, tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón, S. A., 1978,
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Entretanto, a dualidadefato e valor à luz da exigência da objetividade científica, acabou ganhando novos contornos, que foram traçados pelo próprio positivismo lógico. Para Schlick, incumbe à ética, integrante das ciências sociais, a descrição de fatos, vale dizer , a investigação acerca das condições em que os conceitos bom e mal, por exemplo, são realmente utilizados, e não a produção de valores. A ética busca apenas o conhecimento e não a expressão de sentimentos, desejos, esperanças etc... Fugindo àperspectivakantiana, Schlick defende a tese de que a ética não justifica uma atitude mental, uma ação, não lhes atribui um valor moral, mas apenas descreve sob que circunstâncias, sob quais regras atitudes e ações são efeti- vamente avaliadas como boas. A validade de uma valoração encontra fundamento em normas mais elevadas, as quais, por sua vez, são extraídas dos fatos, da consciência e da natureza da vida humana, regras últimas que são princípios morais. A ética não é, pois, uma ciência normativa, e ncm tampouco uma ciência que descreve nor- mas (como é o caso do direito, sob a perspectiva kelseniana), mas uma ciência causal, que indaga da razão pela qual o homem reco- nhece certas condutas como boas ou más. A descrição ética, além da teoria da norma (que determina o conteúdo dos conceitos bem e mal), tem em conta os fundamentos de validade da norma moral, que transcendem os princípios morais para alcançar as causas psicológicas das atitudes e ações.47
O Círculo de Viena não se interessou muito pela ética, limitan- do-se a desqualificar os juízos de valor do ponto de vista de uma ciência descritiva. Como foi visto (seção 4.1), Carnap dizia tratar- se de imperativos de forma gramatical desviada ou de imperati- vos disfarçados. Na concepção do positivismo conceitual de Kelsen, as normas jurídicas, como formuladas pelo cientista do
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p. 685 e 686. Ver também Carios Santiago Nino, Introducción al análisis del derecho, Buenos Aires, Editorial Astrea, 1 984, p. 37-43, Norberto Bobbjo, Contribución a la teoria del derecho, Valencia, Fernando Torres Editor, S.A., 1980 (Colección Derecho y elEstado), p. 105-110 e 1 19-124 e Enrico Pattaro, op. cit., p. 67-82.
(47) Moritz Schlick, ¿Quepretende la ética?, in A.J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 251-268.
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direito, não são imperativos ou ordens, masjuízos hipotéticos. Graças a esta elaboração, que encontrou seqüência e aprofundamento na teoria egológica de Cossio, cogitou-se da possibilidade de uma lógicajurídica aplicada não à norma mesma, que é imperativa, mas aos enunciados que a descrevem, às proposições jurídicas.48
Com efeito, as tentativas de adequação dos funtores deônticos (obrigatório, proibido, permitidofazer e permitido nãofazer) à estrutura dos enunciados apofânticos, próprios da lógica elementar, revelaram alguns paradoxos. E isto porque a validade é uma categoria que não se insere nas relações lógicas, como bem o demonstrou Kelsen nas correspondências trocadas com Ulrich Klug.49 A aplicação dos juízos universais da lógica aristotélica às normas mesmas, juízos imperativos que não podem ser verdadeiros ou falsos, somente seria possível se houvesse um conceito em condições de desempenhar, no campo da lógica deôntica, o mesmo papel que
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(48) Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p. 110-116. A respeito destas elaborações, ver a análise desen- volvida por Antônio Luís Machado Neto, Teoria da ciênciajurídica, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 140-146.
(49) Hans Kelsen, Normasjurídicas e análise lógica (correspondência trocada entre Hans Kelsen e Ulrich Klug), Rio de Janeiro, Forense, 1984. Mais particularmente a págs. 60-69, Kelsen refuta a posição defendida por Klug, no sentido de que duas normas seriam contraditórias quando não pudessem ser simultaneamente válidas, dizendo que a verdade de uma afirmação está no campo do pensamento, ao passo que a validade de uma norma está no campo da vontade. A vontade é o imperativo, o preceptivo, enquanto a verdade pertence à esfera do indicativo, do descritivo. Querer e conhecer (ou pensar) são duas coisas distintas. O conhecer precede o querer do qual a norma é o significado, não lhe sendo imanente, como supõe o jusnaturalismo. Só Deus pode querer enquanto conhece. A existência da norma (validade) é deversercorrelato auma vontade. Assim, como não há analogia entre verdade de um enunciado e validade de uma norma, um conflito de normas não pode ser visto como uma contradição lógica. E tanto não o é que o ordenamento jurídico dispõe sobre regras para a solução do conflito, que se dá quer através da derrogação de uma ou de ambas as normas, quer da perda de eficácia. O conflito não pode ser resolvido pela ciência do direito (conhecimento), mas apenas pelo ato de vontade do Iegislador.
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está reservado à verdade na esfera da lógica formal. Esta tentativa também se mostrou frustrada, pois, no limite, acabava por reduzir o campo da validade ao campo da eficácia da norma. Em outras pala- vras, a existência da norma estaria condicionada ao seu cumprimento irrestrito por parte de todos os endereçados. A própria experiência demonstra, entretanto, que as coisas não se passam bem assim e é esta, precisamente, a crítica que se pode fazer às diversas formas de sociologismoiurídico.50 Estas mesmas dificuldades se reproduzem,
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(50) Uma das tentativas, empreendidas pela lógica deôntica, de desenvolver enunciados e argumentos nas mesmas bases dos enunciados apofânticos, a partir dos operadores obrigatório, proibido epermitido, pode ser resumida, a grosso modo, da seguinte maneira: S é P (universal atirmativa) corresponde a Todo S está obrigado a P; S é não P (uni- versal negativa) corresponde a Todo S está proibido de P; Algum S é P (particular afirmativa) corresponde a Alguns S podem fazer P; Alguns S não sãoP (particular negativa) corresponde a Alguns S não podem fazer P. A verdade dos primeiros enunciados categóricos corresponderia a satisfatoriedade dos segundos, conceito que designa a condição de realização dos termos sujeito e predicado, os quais, por sua vez, referem-se a classes de objetos. Sabe-se que o enunciado S é P não implica a existência de elementos na classe S, pois é perfeitamente Iícito fazer referência a uma classe que não tenha elementos, enfim a uma classe vazia. Parafraseando Wesley Salmon (op. cit., p. 55), pode ser verdadeiro o enunciado A classe de notas de cem reais em meu bolso é uma fortunp, ainda que esta classe seja vazia. Isto também se aplica à universal negativa, pois dizer Nenhum S é P é o mesmo que dizer Todo s é não P. Disto decorre que, assim como um enunciado cate- górico é verdadeiro se e somente se não existir qualquer elemento da classe em que se realize somente o sujeito (ou seja, realizando-se o sujeito, tem-se de realizar também o predicado), uma norma jurídica que obriga é satisfatória se e somente se não existir qualquer pessoa, integrante da classe dos destinatários da norma, que deixe de realizar a conduta descrita na norma. De igual modo, uma normajurídica que proíbe é satisfatória se não existir qualquer pessoa, integrante da classe dos destinatários da norma, que realize a conduta descrita na norma. Em qualquer dos casos, pois, se a classe dos destinatários da norma for vazia, a norma é sempre satisfatória. A satisfatoriedade, assim, consiste na ausência de qualquer ação ou abstenção que implique o descumprimento da norma (PauI Snyder, Modal logic and its apllications, New York, van Mortrand Reinhols Company, p. 75,193 e 220).
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do ponto de vista do positivismo conceitual, no nível da teoria da norma, pois a proposiçãojurídica, para Kelsen, também é um dever ser, ainda que de sentido descritivo.51
Não cabe enfrentar, considerados os propósitos da presente investigação, os desafios que essas questões lógicas sugerem, mas apenas apontar para as limitações desse ângulo de análise, cujas dificuldades deixam entrever problemas de natureza epistemológica e metodológica. Como vem-se tratando de demonstrar, a chamada teoria do abuso do direito exprime de maneira significativa todos estes embaraços. Não se pode conceber a existência de um sistema fechado, que opera na base de códigos binários do tipo lícito/ilícito, proibido/não proibido, e ao mesmo tempo dinâmico. Eo contato com o sistema social que aponta os limites, as lacunas e os con- flitos do sistema jurídico. Mas, paralelamente, é este mesmo contato que garante a unidade e a consistência do sistema. Os paradoxos, a exemplo daquele apontado por Planiol, revelam que grande parte das categorias jurídicas somente pode ser concebida no contexto de uma lógica dinâmica, o que abre espaço para o aspecto cultural do direito.
Dessa perspectiva, acima desenvolvida, há de se considerar que o direito tem existência real, finalidade e valores próprios. Como qualquer instituição social, ele se apropria de maneira seletiva da realidade dos fatos, reconstruindo-os na base de estereótipos e ficções, para devolvê-los, como fatos institucionalizados, ao meio social. Daí porque também não se pode cair no extremo oposto ao formalismo jurídico, que é o realismo ingênuo, pois o juiz, autoridade competente, aprecia osfatos provados — de acordo com um procedimento também previsto na norma — e não o fato mesmo, como fenômeno social. Isto explica determinadas concessões às exigências da verdade, feitas pela teoria do abuso do direito em nome de uma instrumentalidade processual, como foi visto no segundo capítulo (seções 2.2 e 2.4). Assim, a parte só é apenada, ou somente suporta determinado ônus pela prática da trapaça, quando o seu
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(51) Hans Kelsen, Thoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, I979,p. 116.
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comportamento tiver influenciado a decisão da causa.52 No mais, não há abuso. Tem-se entendido, igualmente, que o dever de lealda- de e boa-fé, que engloba todas as figuras do artigo 14 do CPC, não impõe ao litigante a obrigação de deduzir todos os elementos des- favoráveis a ele próprio e nem todos os que sejam favoráveis ao adversário.53
Diga-se, ainda a propósito destas questões epistemológicas, que embora os processualistas insistam em buscar o fundamento da teoria do abuso do direito nos princípios morais, claro está que o apelo a certos standards mais vale como estratégia retórica do que propriamente como fundamentação. E, neste particular, há de se lem- brar a distinção feita, no final do segundo capítulo, entre argumentação, adequada ao campo das ciências culturais, e demonstração, que tem curso no campo das ciências ideais, físicas e naturais. Como foi visto, coube a Wittgenstein revelar que o indizível — do que são exemplo os valores — é muito mais importante do que aquilo que pode ser dito. Charles Stevenson também defende a tese neoempirista do caráter não-racional e sim emotivo dos valores morais. Os enunciados éticos nada descrevem. No entanto, cumprem determinadas funções, pois a par de exprimir a aprovação ou desaprovação daquele que fala, são um convite para que os ouvintes venham com- partilhar desta atitude do emissor.
Em um artigo da revista Mind, publicado em 1937, que antecede a edição de sua clássica obra, Ethics and Language, Charles
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(52) Sebastián Soler, Derecho Penal Argentino, Tipografia Editora Argentina, Buenos Aires, tomo Iv, p. 301, apud Eduardo Oteiza, Abuso de los derechos procesales en América Latina, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos Direitos Processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p.28e29.
(53) Humberto Theodoro Jr., Abuso do direito processual no ordenamento jurídico brasileiro, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 101. Eduardo Couture, como visto no segundo capítulo, entende de maneira diversa. Segundo o processualista uruguaio, que se baseia na distinção entre saber e querer, nada impede que a parte diga tudo aquilo que sabe para depois tentar convencer ojuiz do acerto de seu direito, ou seja, daquilo que quer (Eduardo J. Couture, op. cit., p. 246 e 247).
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Stevenson começa por reconhecer a vagueza e ambigüidade de conceitos como bom, na base das definições de Hobbes e de Hume, que servem de pretexto para uma nova formulação. O sentido mais importante de bom pressupõe três requisitos: a) o desacordo acerca do que é ser bom; b) uma mudança de atitude diante do reco- nhecimento da qualidade bom, que passaria a exercer, assim, um certo magnetismo sobre aquele que fala (ao reconhecer que certo homem é bom, a pessoa terá uma tendência a ajudá-lo); c) o valor bom é algo que pode ser verificado de outras formas e não somente através do método científico. A seguir, o autor diz que sempre há um aspecto descritivo nos juízos éticos. Todavia, sua função mais importante não é descrever fatos, mas sim exercer influência sobre as pessoas. Neste sentido — diz Charles Stevenson — os termos éticos são instrumentos utilizados na complicada interação e ajusta- mento dos interesses humanos.54
Tomando de empréstimo alguns exemplos de Charles Stevenson,55 na tentativa de adaptá-Ios ao campo do processo judicial, é possível dizer que, quando ojuiz afirma que tais e quais condutas constituem abuso do direito, não só as está desaprovando como também influenciando o comportamento das partes. O mesmo vale para a relação entre as partes e também para arelação entre as partes e o juiz, quando 05 litigantes, neste último caso, procuram convencê-lo de que o adversário está agindo mal, na esperança de que o julgador também compartilhe da desaprovação da conduta. Daí porque doutrina e jurisprudência consideram que a prática de abuso processual tem de ser analisada caso a caso.56 Desnecessário dizer que a argumen- taçãojurídica é instrumento fundamental nessa dinâmica de persua- são, que muitas vezes recorre a falácias formais e materiais, na ten-
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