Os editores mais antigos tinham o seu tempo ocupado com os manuscritos
dos escritores editados por eles, e por uma enchente de conferências,
redacção de contratos, festas de autógrafos, vida social, etc. Os editores
mais novos não tinham prestígio para publicar manuscritos promissores.
Além do mais, a vida em Nova Iorque, e o hábito de beber-se dois ou três
martinis antes do almoço, quebrava qualquer desejo de ter manuscritos de
autores desconhecidos. David Shawcross dizia que editar era o único negócio
em todo o mundo que nada fazia para perpetuar-se. Todas as casas editoras
tinham na sua história vários casos de perda de oportunidade de publicar
algum novo autor importante, devido, principalmente, à pura estupidez dos
seus editores.
No montão de manuscritos que iam parar às casas editoras, havia sempre
um livro publicável ou um bom autor necessitado dum ”empurrãozinho”.
Por isso, todos os anos ele fazia uma viagem até à América e procurava-os.
Numa década, Shawcross tinha descoberto um bom número de novos autores
americanos, inclusive o sensacional autor negro James Morton Linsey, que
se tornou uma importante figura da literatura.
O manuscrito de Abraham Cady estava na mesa dum editor, no dia em
que David Shawcross o visitou. Tinha sido trazido por um agente que o tinha
recebido recomendado pelo Virginia Pilot, onde Abe trabalhava como editor
de aviação. O livro já tinha sido rejeitado sete vezes.
Naquela noite, no Hotel Algonquin, Shawcross acomodou uma série de
travesseiros às suas costas, ajeitou a lâmpada, e dispôs um grande número de
charutos na mesa. Colocou os óculos no nariz e equilibrou um manuscrito, de
cor azul, nos joelhos. Enquanto lia, a cinza caía em cima de tudo, desastradamente,
pois Shawcross era um fumador distraído, que deixava atrás de si
o rasto do seu vício, tendo causado certa vez um pequeno incêndio, ao deitar
um fósforo aceso para o cesto dos papéis. Eram quatro horas da manhã quando
ele acabou de ler o manuscrito do romance Os Irmãos, de Abraham Cady. E
havia lágrimas nos seus olhos.
À entrada no Hotel Algonquin, o célebre antro de escritores e actores,
Abe respirou fundo. Quando pediu o número do quarto do Sr. Shawcross, a
sua voz tremia.
Abe bateu à porta do 408.
- Entre, por favor. - Um inglês bem vestido, gordo e corado, tirou o
casaco e pendurou-o. - Mas é quase uma criança - disse, enquanto se sentava
numa cadeira de espaldar alto, defronte da mesa onde estava o manuscrito
todo espalhado. Folheou página por página, deixando cair alguma cinza e
sacudindo-a, e depois olhou para o rapaz que estava colado ao sofá. Tirou os
óculos num gesto deliberado.
- Haveria um milhão de escritores para cada escritor deste mundo, se todos
não tivessem tanto amor pelas suas próprias palavras - disse ele. - Bem,
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em minha opinião o que fez aqui revela talento, mas é preciso trabalhar sobre
este mesmo talento.
- Eu vim para ouvir a sua opinião, Sr. Shawcross. Vou tentar não ser
teimoso, aliás nem sei se o sou.
Shawcross sorriu. Via-se que Cady tinha vontade.
- Nós vamos trabalhar juntos alguns dias. O resto será consigo.
- Obrigado, senhor. Caso seja preciso, devo conseguir licença no jornal.
- Meu jovem Cady, vou avisá-lo de que já tentei isto muitas vezes e só
raramente tenho sido bem sucedido. A maioria dos escritores ressente-se com
a crítica e os outros, os que não se importam, não possuem a capacidade de
compreender e transmitir o que sentem, de forma a que seja publicável. É
tudo muito, muito difícil.
- É melhor o senhor acreditar que eu vou ser capaz -disse Abe.
- Muito bem. Eu reservei-lhe um quarto aqui em frente. Faça as suas
malas e quando voltar vamos trabalhar.
Foi uma grande experiência para Abraham Cady. David Shawcross provou
porque era um dos melhores editores do mundo. Não queria escrever
servindo-se do talento de Cady; queria fazer com que Cady utilizasse todo o
seu próprio talento. A maioria dos autores nunca consegue a chave-mestra da
narração. Fazer o herói subir a uma árvore, e cortar o ramo que o sustém.
Terminar um capítulo, no momento exacto de criar suspense. Exagerar o
estilo, é o ferrete de todos os novos autores. Resumir... dizer em duas linhas,
o que poderia render vários capítulos. É louvável que se transmita uma
mensagem, mas não se deve deixar que ela interfira no desenvolvimento da
narração.
E há o truque principal, que poucos romancistas possuem. O escritor tem
de saber o que é que o último capítulo vai contar, e deve procurar manter
sempre em vista este objectivo. Muitos começam com uma boa história, mas
ao fim dos primeiros capítulos perdem-se, por não saberem afinal, onde fica o
alto do morro.
Ao fim de três dias, Abraham Cady tinha ouvido com atenção e posto
questões, sem raiva. Voltou então a Norfolk e começou a reescrever. Isto,
disse-lhe Shawcross, era o que separava os autores daqueles que o pretendiam
ser. Reescrever e reescrever.
Quando um jovem abre as suas velas no mar da literatura ele pouco sabe
acerca dos ventos, das marés, das enchentes e das tempestades. E está só.
Muitas perguntas há, que só podem ser respondidas pela perseverança. Abe
atravessou isto tudo novamente, a incrível solidão, a exaustão e os raros
instantes de contentamento. E, finalmente, o seu livro estava escrito.
- Abe - disse o pai pelo telefone. - Chegou um telegrama para ti.
- Leia-o, pai.
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-Está bem. Diz assim: ”Manuscrito recebido e lido. Muito bem. Terei
prazer em publicá-lo imediatamente. Meus cumprimentos e parabéns.
Assinado. David Shawcross.”
Os Irmãos, de Abraham Cady, teve uma excelente aceitação em Inglaterra.
O velho Shawcross tinha mais uma vez provado do que era capaz. Era
uma história simples, o autor não tinha muitos refinamentos literários, mas
tocava no coração. O romance dizia que a traição do Oeste, à Espanha
legalista, teria como consequência uma grande guerra. O sangue de milhões
de ingleses, franceses e americanos seria o preço da obscenidade diplomática.
Na América, Os Irmãos foi editado por uma firma que, inicialmente, o
tinha rejeitado (por não conter nada de importante) e recebeu uma aclamação
ainda maior do que em Inglaterra, por ter sido publicado nas vésperas da
II Grande Guerra.
Capítulo quarto
”Desde os acontecimentos de Munique, que o meu pai tentou por todas
as formas tirar os parentes que ainda estavam na Polónia, mas não o
conseguiu. Além do seu próprio pai e dos dois irmãos, ainda havia uma
quantidade de tios, tias e primos. Então a Alemanha atacou a Polónia. Foi um
pesadelo. Quando a Rússia tomou a parte oriental da Polónia, onde ficava a
cidade de Prodno, nós ficámos mais aliviados por algum tempo. Mas essa
esperança acabou, quando os alemães atacaram a Rússia e Prodno caiu nas
suas mãos.
”A atitude do meu pai sobre o fascismo mudou. A morte de Ben e o
receio pela sua família fizeram dele um militante. Eu sabia que seria horrível
para eles quando eu decidisse ir para a guerra, mas já não podia esperar mais.
”No Outono de 1941 alistei-me na Real Força Aérea Canadiana, para
poder ir para a Inglaterra e juntar-me ao Esquadrão das Águias, de voluntários
americanos. Tal como o esquadrão Lacalle, de Ben, este era um grupo
levado dos diabos. Havia o Blakeslee, o Gentile, o Chesley Peterson e uma
porção doutros que fizeram nome como pilotos de guerra. O interessante é
que muitos deles tinham sido expulsos do Corpo Aéreo do Exército Americano,
por incapacidade para voar.
”O pai protestou um pouco dizendo que a América dentro em pouco
estaria na guerra; portanto, para quê sair propositadamente à procura de
barulho? Com a minha mãe foi pior. Ela tinha medo de acabar por perder os
seus dois filhos. Mas afinal cederam. O meu pai confessou que se sentia
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orgulhoso, e a minha mãe recomendou-me coisas deste género: “Tem cuidado
e não queiras ser um herói.”
“Ao beijá-los, à despedida, quando apanhei o comboio para Toronto, eu
estava com bastante medo. Alguns meses depois de ter começado o treino de
piloto de Spitfire, a América foi atacada em Pearl Harbor.”
19 de Agosto de 1942
Sete mil canadianos e ingleses, dos Comandos, espalharam-se na praia
francesa de Dieppe, numa missão de reconhecimento da capacidade das defesas
costeiras alemãs.
Os engenheiros, que caminhavam depois da infantaria, alcançaram e
anularam alguns dos grandes canhões alemães, mas a operação encontrou
logo sérias dificuldades. Um dos flancos foi atacado por uma esquadrilha
alemã e, no centro, os tanques canadianos ficaram presos à muralha do mar.
O contra-ataque alemão transformou a missão de reconhecimento num
desastre completo.
No céu, uma nuvem de Spitfires e Messerschmitts uivava numa luta sem
tréguas, enquanto mais abaixo, os outros aviões aliados voavam rasante, a
procurar reduzir o desastre na praia. Entre eles, estavam os Águias Americanos
com o seu mais jovem piloto, o rapaz de 21 anos, Abraham Cady, na
sua quinta missão.
Quando as munições e a gasolina dos aviões estavam a chegar ao fim, eles
retornavam à Inglaterra para se reabastecerem. Depois, voltavam à acção.
Abe voltava pela terceira vez a Dieppe, no dia em que a força aérea tentava,
desesperadamente, deter o contra-ataque alemão.
Voando a baixa altura, ele atacava sem cessar uma companhia alemã que
avançava pelos bosques. Com o sistema de comunicações muito avariado e o
esquadrão espalhado por todo o céu, era impossível avisar acerca das dificuldades
dos companheiros. Agora era cada um por si.
Abe sobrevoou uma ponte e limpou-a dos inimigos, e então um trio de
Messerschmitts saindo de dentro duma nuvem desabou sobre ele. Abe pendeu
para um lado, evadindo-se, e quando pensava que tinha conseguido
salvar-se, o seu avião começou a estremecer violentamente devido ao impacto
duma rajada de metralhadora. Os controlos quase arrancaram o seu braço e
ele sentiu o avião descer em folha-morta. Abe tentou fazê-lo ganhar altura,
mas ele desequilibrava-se como um brinquedo de criança, num dia de ventania.
“Jesus Cristo numa porcaria de cruz! O meu rabo está estoirado. Pular ?
Diabo, isso não, sobre a água, não... Vou virar para a Inglaterra. Senhor,
dá-me 30 minutos.”
Abe atirou-se sobre o canal da Mancha, voando a umas poucas dezenas de
metros da água, numa corrida para a Inglaterra. Quinze minutos para aterrar,
dez...
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; -Zenith, Zenith, aqui o Cachorro Dois, no alerta vermelho. estou
estoirado.
- Alô, Cachorro Dois! Aqui Zenith. Quais as suas intenções ?
”Filho da mãe!”
Um Messerschmitt apareceu atrás de Abe. Usando toda a força, ele
voltou o nariz do seu avião para cima e fez com que, deliberadamente, o motor
morresse. O espantado alemão não pôde imitar a manobra e passou por
baixo dele muito rente. Abe mergulhou, a apertar os gatilhos.
- Eu apanhei-o, eu apanhei-o!
”Aguenta! Ganhei a parada, graças a Deus... A costa inglesa, meu
Deus. Não consigo conservar a minha altitude. Devagar, meu amor, devagar,
está a estoirar-me os braços.”
Alcançada a terra, deu uma guinada de 90 graus.
- Alô, Cachorro Dois! Aqui Drewerry. Agora nós estamos a vê-lo. O
conselho é saltar.
- Não posso, estou baixo demais para saltar. Tenho de aterrar.
- Livre para descer.
Em Drewerry as sirenas soavam activamente. Carros de bombeiros, uma
ambulância e um esquadrão de salvamento puseram-se em movimento junto
da pista, enquanto o pássaro ferido tombava.
”Menino, eu não gosto deste ângulo. Não gosto nada. Vamos, meu
amor, paralelo à pista. Vamos, minha menina. Agora, firme!”
Trezentos, duzentos, desligar o motor, deslizar, deslizar.
- Olha como voa o garoto!
“ Vamos, terra, deixa que eu te sinta. Vamos, terra... Jesus! O estafermo
da alavanca quebrou!”
Abe puxou a alavanca e o avião deslizou de barriga. O Spitfire derrapou
pela pista soltando faíscas. No último instante, desviou-se dos alojamentos e
disparou em direcção ao bosque, estatelando-se de encontro às árvores. As
sirenas soaram e correram para ele. Abe levantou a cobertura e saltou para a
asa. Então, depois dum lapso de silêncio, uma explosão terrível foi seguida
pelas chamas ondulantes.
Capítulo quinto .
”Ó meu Deus! Eu sei que morri! Jesus! Não posso ver! Não posso
mexer-me! A minha cabeça está confusa!”
- Socorro! -gritou Abe.
- Tenente Cady! -Na escuridão, uma voz de mulher fez-se ouvir.
Pode ouvir-me?
- Socorro! Onde estou, o que aconteceu comigo? - gritou ele.
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- Tenente Cady - repetiu a voz. - Se está a ouvir-me, diga por favor.
- Estou - soluçou ele.
- Sou a enfermeira Grace e o senhor está no Hospital da RAF, perto de
Bath. Está muito ferido.
- Estou cego. Ó meu Deus! Estou cego!
- Tente controlar-se para que possamos falar.
- Segure-me para eu saber que está aí.
Ele fez tudo para controlar-se.
- O senhor foi submetido a uma operação muito delicada - disse a
enfermeira Grace - e está envolto em ligaduras. Não se assuste, por não poder
ver nem mover-se. Deixe que eu chame o médico e ele explicar-lhe-á
tudo.
- Por favor, não demore muito.
- Volto num minuto. Fique calmo.
Ele respirou profundamente, a tremer de medo. O seu coração bateu
apressado quando ouviu passos a vir na sua direcção.
- Acordou, não foi? - perguntou uma autoritária voz inglesa. - Eu sou
o Dr. Finchly.
- Diga-me, doutor, diga-me se estou cego.
- Não - respondeu o médico. - Demos-lhe uma grande dose de anestésico
e por isso deve sentir-se meio confuso. Está a compreender-me?
- Sim, estou um pouco tonto, mas percebo o que diz.
- Então, muito bem - disse Finchly, sentando-se na beira da cama.
Você perdeu a vista direita, mas nós vamos salvar-lhe a outra.
- O senhor tem a certeza?
- Sim, estamos mesmo certos disso.
- O que aconteceu?
- Deixe-me explicar-lhe em breves palavras. O seu avião explodiu
quando embateu nas árvores. Estava a tentar afastar-se dele quando se deu a
explosão, e tapou o rosto com as mãos para o proteger.
- Eu lembro-me disso.
- As suas mãos ficaram muito feridas. Queimaduras de terceiro grau.
Sabe, existem quatro tendões em cada mão, como fitas de borracha, para
cada dedo. Eles parecem ter ficado em mau estado. Se as queimaduras não
cicatrizarem devidamente, nós teremos de fazer uma operação plástica.
Se os tendões estiverem em mau estado, faremos uma plástica. Entende o
que estou a dizer?
- Sim, senhor.
- De qualquer modo, nós estaremos aptos a restaurar-lhe totalmente as
mãos. Pode ser que leve tempo, mas seremos bem sucedidos.
- E o que é que diz sobre os meus olhos? - murmurou ele.
- Com a explosão, alguns diminutos fragmentos bateram nos seus olhos,
e perfuraram a córnea. A córnea é uma membrana muito fina que cobre os
olhos. Bem, cada olho está cheio duma substância parecida com a albumina
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do ovo e que o enche, assim como o ar enche um pneu. A sua vista direita foi
muito perfurada e o fluido saiu. Todo o globo ocular encolheu. Fizemos uma
implantação da córnea. Dissecámos a membrana superior da sua pálpebra e
cobrimos o olho com ela, cosendo-a nas pontas da pálpebra. Os pontos são
mais finos do que um fio de cabelo humano.
- Quando é que sei se posso ver?
- Bem, eu posso prometer-lhe que vai ver com a vista esquerda. Mas há
dois problemas que terá de enfrentar. Pode haver uma formação de embolismo
gorduroso devido aos estragos nas suas mãos e isso poderá subir até
aos olhos e destruir os tecidos. Também está a sofrer um forte abalo devido ao
choque, e isto afecta a visão normal. Vamos deixar que veja um pouco por
dia, mas só enquanto mudamos as ligaduras.
- OK - disse Abe. - Vou ficar quieto... Obrigado, doutor.
- Não tem de quê. O seu editor, o Sr. Shawcross, está à espera lá fora, há
mais de três dias.
- Está bem - disse Abe.
-Então, Abe - disse Shawcross -, contaram-me que fez um bonito
para poder voltar e depois para conseguir aterrar, sem destruir os alojamentos.
- Ora, eu sou um piloto dos diabos.
- Será que posso fumar, doutor? - perguntou o editor.
- Claro.
Abe gostava do cheiro do charuto de Shawcross. Fazia com que se lembrasse
daqueles dias em Nova Iorque, quando trabalharam, dia e noite, no
manuscrito.
- Os meus pais sabem disto?
-Eu induzi a não os informarem, até que pudesse escrever-lhes pessoalmente.
- Graças, Jesus, eu estrepei-me realmente.
- Estrepou-se? - perguntou o Dr. Finchly.
- É um típico modo de falar americano. Quer dizer que ele se meteu em
boa - explicou Shawcross.
- Oh, sim, certamente.
Queridos mãe e pai:
Não devem assustar-se por não ser eu mesmo a escrever esta carta, O motivo
de eu não poder escrever é que tive um pequeno acidente e queimei as
mãos.
Mas deixe que lhes diga que estou muito bem de saúde, num hospital
maravilhoso, e não sofro nada. Até a comida aqui é boa.
Tive uma dificuldadezita em aterrar, foi tudo. Acho que não posso voar
novamente, porque eles são verdadeiramente maníacos sobre as condições de
saúde.
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Há aqui uma menina muito simpática que me escreve as cartas e ela vem
dia-sim, dia-não.
Não quero que se preocupem comigo. Nem por um minuto.
Abraços à Sophie e a todos.
O seu filho devotado,
, Abe
Capítulo sexto
“Paciência.
“Se ouvir esta palavra mais uma vez, abro os olhos. Paciência. É o que me
dizem vinte vezes ao dia. Paciência. Fico deitado de barriga para cima,
congelado, na escuridão. Quando acaba o efeito das drogas, a dor nas minhas
mãos é insuportável. Invento jogos. Jogo basebol, movimento por movimento.
Sou o lançador dos Red Sox. Corro no campo, atiro, bato, desvio-me
dos adversários que correm para mim. Faço fintas. Sou o melhor entre
os melhores. Este jogo vai ficar na História.
“Penso em todas as mulheres com quem já dormi. Sou ainda muito novo,
portanto uma dúzia já é um bocado. Só que não me lembro do nome da
maioria delas.
”Penso em Ben. Meu Deus, como sinto saudades dele. Que felizardo que
eu sou. Queria três coisas na vida: jogar basebol, voar e escrever. Duas coisas
não posso nunca mais fazê-las. E como vou poder escrever, sem os dedos?
“Pelo menos, aqui o pessoal é boa rapaziada. Tratam de mim como se eu
fosse uma boneca de porcelana. Tudo o que eu faço, tem de ser de forma
complicada. Guiam-me até à casa-de-banho e sentam-me na sanita, eu posso
virar-me para fazer o que tenho a fazer, mas depois alguém tem de vir limpar-me.
Não posso nem fazer pontaria para urinar. Tenho de me sentar como
uma mulher. É completamente humilhante.
“Todos os dias eles tiram-me da minha jaula de múmia, por uns minutos.
A minha vista sã está sempre pegada. Quando consigo focalizar alguma coisa,
eles já estão a ligar-me todo, outra vez. Repito para mim mesmo que podia ser
pior. Cada dia que passa a minha vista melhora e já estou a poder mexer as
mãos um pouco.
David Shawcross vem de Londres, uma ou duas vezes por semana. A
sua mulher, Lorraine, traz-me sempre um embrulho com comer. É igual à
minha mãe. Sei que isto custa umas quantas senhas de racionamento, e passo
a vida a dizer-lhe que aqui a paparoca é melhor do que no palácio.
”Como eu gosto de sentir o cheiro daquele maldito charuto. Shawcross
quase que não trabalha mais como editor. Está agora com o Governo, num
programa de intercâmbio de livros com os russos. As suas histórias sobre o
comportamento paranóico do pessoal da Embaixada russa, são geniais.
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”Os meus colegas visitam-me de vez em quando. É uma enorme viagem
para eles. O Esquadrão dos Águias foi transferido da RAF para a Força Aérea
americana. Não sei o que sou agora. De qualquer forma, não tenho utilidade
para ninguém.
”O mês passa. Paciência, dizem-me. Jesus, como odeio esta palavra.
Brevemente vão começar a fazer a operação plástica.
”Entretanto, aconteceu uma coisa que faz os dias não parecerem tão
longos. O seu nome é Samantha Linstead, e o seu pai é um squire, dono duma
velha fazenda nas colinas do Mindip, perto de Bath. Samantha tem vinte anos
e é assistente da Cruz Vermelha. No princípio ela vinha em serviço. Para
escrever cartas e auxiliar-me no banho. Nós começámos a conversar
diariamente, e então ela trouxe o gira-discos, com alguns discos, e um rádio.
Ela fica bastante tempo no meu quarto, dando-me o comer, a segurar no meu
cigarro, a ler para mim.
“Será que uma pessoa se pode apaixonar por uma voz ?
“Eu nunca a vi. Ela chega sempre depois do meu tratamento. Só conheço
a sua voz e passo o tempo todo a imaginar como será ela. Ela disse-me que é
igual a toda a gente.
“Ao fim duma semana, eu comecei a poder andar um pouco e ela ajudava-me.
Nessa altura, ela começou a segurar-me, e agora segura-me cada vez
mais.”
- Acende-me um cigarro, Sam - disse Abe.
Samantha sentou-se perto da cama e segurou com cuidado no cigarro,
enquanto Abe chupava. Quando acabou o cigarro, ela meteu a mão na
abertura do pijama dele e começou a acariciar-lhe o peito, muito ao de leve.
- Sam, eu estive a pensar. Talvez seja melhor não vires ver-me mais. A
mão dela afastou-se, subitamente. - Não gosto que tenham pena de mim.
- Pensas que é por isso que eu venho aqui ?
- Noite e dia eu fico deitado, no escuro, e penso coisas estranhas. Estou
a começar a levar tudo a sério. Tu és uma pessoa formidável e não posso
transformar-te numa vítima das minhas fantasias.
- Abe. Será que não percebes como é bom para mim estar junto a ti?
Pode ser que quando me vires não me ligues mais, mas por enquanto eu não
quero que nada mude entre nós. Não vais livrar-te de mim com tanta facilidade,
e, além do mais, não estás em condições de fazer o que quer que seja a
este respeito.
O carro de Samantha atravessou o portão da entrada de Linstead Hall. Os
pneus rangeram sobre o cascalho e o carro parou em frente a uma pequena
casa senhorial, duns 200 anos.
- Mamã... papá, este é o Abe. Não pode ver-se muito dele, mas pelos
retratos vê-se que até é bonitão.
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