Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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“Você nunca ouviu falar da Vaca louca?”, ela respondeu. “Meu amor, meu úbere está ferido com o puxão diário dos humanos. Sou usada como torneira para dar leite de manhã à noite. Eu não posso nem querer uma coisa como ser montada por ― bem, não importa. Mas, pior ainda, meus filhos foram engordados com leite e abatidos para virarem vitela. Eu ouvia seus gritos lá no matadouro, os humanos nem se importaram de me afastar do alcance dos gritos!” Aqui, ela virou sua cabeça para a parede, e as Ovelhas vieram cada uma por um de seus lados, pressionando como um par vivo de calorosos suportes de livros junto a seus flancos mais baixos e a barriga.

Elphaba disse: “Eu não poderia ficar mais sentida nem mais envergo­nhada. Olha, eu estava trabalhando com o Doutor Dillamond ― você já ouviu falar dele? ― em Shiz, tempos atrás. Eu me dirigi ao próprio Mágico para protestar contra o que estava acontecendo...”.

“Oh, o Mágico não se importa com os de nossa espécie”, disse a Vaca, depois que tinha recuperado a sua compostura. “Eu não sinto vontade de conversar mais. Todo mundo está do seu lado enquanto precisa de você. A Eminente Nessarose provavelmente nos trouxe com o objetivo de nos enfiar em alguma procissão cerimonial religiosa. Meus flancos sedosos sempre ficam enfeitados com guirlandas ou coisas do gênero. E, depois, sabemos bem o que acontece.”

“Agora você deve estar enganada a esse respeito”, disse a Bruxa. “Disso eu discordo. Nessarose é uma unionista rigorosa. Os unionistas não praticam sacrifício de sangue...”

“Os tempos mudam”, disse a Vaca. “E ela tem uma população de se­guidores nervosos e mal-educados para apaziguar. O que, diga, por favor, funciona melhor que a carnificina ritual?”

“Mas, como foi que isso pôde chegar a esse ponto?”, disse a Bruxa. “Su­pondo que você esteja dizendo a verdade? Este é um estado rural. Vocês deveriam estar bem estabelecidas aqui.”

“Animais presos têm tempo de sobra para desenvolver teorias”, disse a Vaca. “Ouvi mais de uma criatura inteligente traçar uma ligação entre a ascensão do tiktokismo e a erosão do trabalho Animal tradicional. Nós não éramos bestas de carga, mas éramos bons trabalhadores confiáveis. Se nos tornamos dispensáveis como força de trabalho, era apenas questão de tempo para que nos tornássemos socialmente dispensáveis também. De qualquer modo, essa é uma teoria. Meu próprio modo de sentir me diz que há um verdadeiro mal surgindo no horizonte. O Mágico ergue o estandarte, e a sociedade segue o padrão como um bando de ovelhas. Perdão pela referência caluniosa”, ela disse, balançando a cabeça para suas companheiras de cercado. “Foi um deslize.”

Elphaba escancarou a porta do cercado. “Venham, vocês estão livres”, ela disse. “O que fazer disso é questão que só diz respeito a vocês. Se vocês ficarem, será problema de vocês.”

“É problema nosso se sairmos daqui, também. Você acha que uma Bru­xa que enfeitiça um machado para retalhar um ser humano se deteria diante um par de Ovelhas e uma velha Vaca aborrecida?”

“Mas esta pode ser a sua única chance!”, Elphaba gritou.

A Vaca saiu, e as Ovelhas a seguiram. “Nós voltaremos”, ela disse. “Esse é um exercício para a sua educação, não para a nossa. Grave minhas palavras, minha alcatra vai ser servida como raridade nos seus mais finos pratos de jantar de porcelana da Casa de Dixxi antes que o ano termine.” Ela mugiu uma última observação ― “Eu espero que vocês engasguem” ― e, com a cauda espantando as moscas, rebolando, ela se afastou.

6
“Uma embaixatriz do Glikkus, querida”, Nessarose disse, quando El­phaba pediu que marcassem uma reunião. “Realmente, não posso mandá-la embora. Ela veio para discutir pactos de defesa mútua em caso de o Glikkus se separar de Oz a seguir. Ela acha que há agentes secretos rastreando a sua família, e ela precisa partir em sua viagem de retorno hoje à noite. Mas nós jantaremos juntas, como nos velhos tempos? Você, eu e minha criada?”

Elphaba não teve escolha a não ser protelar mais uma tarde. Ela loca­lizou Frex e o persuadiu a sair a passeio para mais além dos lagos ornamen­tais e dos gramados primorosos, lá nos limites de Solos de Colwen, onde começavam as florestas. Ele caminhava de maneira tão rija, tão lenta, que era uma tortura; ela era uma caminhante de passos largos. Mas manteve-se controlada.

“O que você acha de sua irmã?”, ele lhe perguntou. “Depois de todos esses anos? Muito mudada?”

“Ela sempre foi autoconfiante, a seu modo”, Elfinha disse, com reserva.

“Eu nunca achei isso, e continuo não achando”, Frex disse. “Mas eu acho que ela fez uma boa coisa, e tem ficado melhor.”

“Por que você me pediu para vir aqui, realmente, papai?”, Elphaba disse. “Eu não tenho muito tempo a perder, você sabe. Você deve ser franco.”

“Você seria uma Eminência mais esperta que Nessinha”, ele disse. “E é seu direito congênito. Sim, eu sei que as leis estritas da herança do título não eram importantes para a sua mãe. Apenas acho que o povo da terra de Munchkin se sairia melhor com você no leme. Nessa é ― devota demais, se tal coisa existe. Devota demais para ser uma figura central na vida pública, de qualquer modo.”

“Esse deve ser o único aspecto em que eu puxei à minha mãe”, Elphaba disse, “mas uma posição herdada não é de interesse para mim, e não chega a me pesar o fato de ser a Eminência por direito. Há muito tempo abdiquei dessa posição na família. Nessarose tem todo o direito de abdicar da sua, e então Shell pode ser localizado para substituí-la. Ou, melhor ainda, essa tra­dição estúpida pode muito bem ser abolida, e vamos deixar os munchkineses governarem-se sozinhos até morrer.”

“Ninguém insinuou que um líder não seja tão bode expiatório quanto um humilde peão”, disse Frex. “Em todo caso, é possível. Mas eu estou falando de liderança, não de hierarquia e privilégio. Estou falando sobre a natureza dos tempos em que vivemos, e do trabalho que precisa ser feito. Fabala, você sempre foi a irmã mais capaz. Shell é um palhaço maluco, atualmente brin­cando de agente secreto, e Nessinha é uma garotinha melindrosa...”

“Oh, por favor”, ela disse, com desgosto. “Não é hora de superar isso?”

“Ela não superou”, ele disse, magoado. “Você a vê envolvida nos braços de um amante? Você a vê parindo seus próprios filhos, engajando-se na vida de um modo que faça sentido? Ela se esconde por trás de sua devoção do mesmo modo que um terrorista se esconde atrás de seus ideais...” Ele a viu reagir mal a essa frase, e parou.

“Eu conheci terroristas capazes de amar”, ela disse tranqüilamente, “e eu conheci boas monjas, solteironas e sem filhos, fazendo caridade para pessoas destruídas.”

“Você já viu Nessa ter alguma ligação adulta com alguém que não o Deus Inominável?”

“Olhe só quem fala”, ela disse. “Você teve sua mulher e seus filhos, mas eles ficaram em segundo lugar na ordem de prioridades quando surgiram os quadlings para ser convertidos.”

“Eu fiz o que tinha de ser feito”, ele disse rigidamente. “Não ouvirei sermões de minha própria filha.”

“Bem, também não ouvirei sermões seus sobre meus perpétuos deveres para com Nessinha. Eu dei a ela minha infância, eu a ajudei quando foi para Shiz. Ela fez sua vida do modo que queria, e ainda tem escolha e vontade livre até agora. E o mesmo pode-se dizer de seus seguidores, que podem depô-la e cortar a sua cabeça se suas preces forem um obstáculo no caminho deles.”

“Ela não é uma mulher poderosa”, Frex disse tristemente. Elfinha olhou­-o de esguelha, e pela primeira vez o viu como um fraco ― o tipo de velho que Irji, se sobrevivesse, se tornaria. Constantemente esperneando à margem dos acontecimentos, reagindo em vez de agindo, lamentando o passado e rezando pelo futuro em vez de se atirar com ânimo ao presente.

“Como foi que ela ficou assim?”, ela perguntou, tentando ser bondosa. “Tinha dois bons pais.”

Ele não respondeu a isso.

Eles continuaram caminhando e saíram das florestas pela margem de um campo de milho. Um par de colonos estava consertando uma cerca e erguendo um espantalho. “Tarde, Irmão Frexpar”, eles disseram, retirando seus bonés. Olharam meio de esguelha para Elphaba. Quando ela e seu pai retomaram a conversa fora do alcance de seus ouvidos, ela disse: “Eles estavam usando um pequeno talismã ou alguma coisa em suas túnicas, você notou? Parecia uma pequena boneca de palha ou coisa semelhante.”

“Oh, sim, o homem de palha”. Ele suspirou. “Outro costume pagão que havia desaparecido quase por completo, e então foi revivido durante a Grande Seca. Trabalhadores da roça ignorantes usam um homem de palha como um talismã contra as pestes da colheita: seca, corvos, insetos, podridão. Houve uma tradição de sacrifício humano em torno desse assunto.” Ele parou para tomar fôlego e enxugar o seu rosto. “Nosso amigo de família, Coração de Tartaruga, o quadling ― ele foi assassinado bem aqui em Solos de Colwen, no dia em que Nessarose nasceu. Um anão itinerante e um enorme relógio de entretenimento mecânico estavam fazendo apresentações naquele ano, e oferecendo uma válvula de escape para as mais feias tendências humanas. Chegamos bem na hora em que Coração de Tartaruga estava sendo captu­rado. Nunca me perdoarei por não ter notado o que estava para acontecer ― mas sua mãe estava em trabalho de parto, e nós havíamos saído da cidade. Eu não estava pensando claro o bastante sobre coisa nenhuma.”

Elphaba já tinha ouvido falar de tudo isso ― ou de algo parecido. “Você estava apaixonado por ele”, ela disse, para facilitar as coisas.

“Nós dois estávamos, nós o compartilhávamos”, disse Frex. “Sua mãe e eu. Foi há muito tempo e eu não sei mais por quê; eu não acho que na época soubesse tampouco. Eu não amei ninguém desde que sua mãe morreu, exceto, claro, meus filhos.”

“Que brutal história de sacrifícios”, ela disse. “Eu estava conversando com uma Vaca que acha que será sacrificada. Isso é possível?”

“Quanto mais civilizados ficamos, mais horrendos se tornam nossos entretenimentos”, disse Frex.

“E isso nunca mudará, ou não? Eu me lembro da etimologia da palavra Oz, ao menos como foi explicada numa aula de nossa Diretora, Madame Morrible. Ela disse que os acadêmicos se inclinavam a localizar a raiz do termo no cognato gillikinês oos, que embute uma carga de significados re­lacionados a crescimento, desenvolvimento, poder, geração. Até ooze, com seu substantivo companheiro distante vírus, julga-se que pertence à mesma família. Quanto mais velha fico, mais acertada essa derivação me parece.”

“E, no entanto, o poeta da Ozíada chama isto de ‘Terra do verde aban­dono, terra da relva infindável.’ ”

“Poetas são tão responsáveis pela construção de um império quanto quaisquer outros trabalhadores.”

“Às vezes, sinto que daria qualquer coisa para ir-me embora daqui, mas tremo ao pensar numa viagem através das areias letais.”

“Isso é apenas uma lenda”, disse Elfinha. “Papai, você me ensinou que as areias não são mais letais que esses campos. Isso me faz lembrar outra teoria, a de que Oz estaria relacionada à palavra oásis. O que os povos nômades do norte pensavam de Gillikin, num tempo além da imaginação, quando Oz foi descoberta e fundada. Agora olhe, Papai, você não precisa fugir para tão longe. O Vinkus é praticamente um outro país. Por que você não volta comigo?”

“Eu adoraria, meu bem”, ele disse. “Mas, como poderia abandonar Nes­sarose? Eu nunca conseguiria.”

“Mesmo que ela não seja filha sua, mas do Coração de Tartaruga?”, ela disse, ferindo por estar ferida.

“Especialmente por isso”, ele respondeu.

E Elphaba entendeu que, por não saber ao certo se Nessarose fora ge­rada por ele ou por Coração de Tartaruga, Frex decidira de algum modo subconsciente que ela era filha dos dois. Nessarose era a prova de sua breve união ― sua e, obviamente, de Melena também. Não importava quão inváli­da Nessarose fosse; ela seria sempre, sempre mais que Elphaba. Ela sempre significaria mais.

Elphaba e Nessarose estavam no quarto de dormir de Nessarose. Uma criada servia um pouco de sopa feita de estômago de vaca. Elfinha, que não era normalmente enjoada, não conseguiu comê-la. A criada elegantemente colocou pequenas porções na boca de Nessinha com uma colher.

“Não vou fazer rodeios”, Nessarose disse. “Eu gostaria que você se unisse a mim aqui como uma irmã-em-armas, para liderar meu círculo de conse­lheiros e me substituir em minha ausência se eu viajar.”

“Eu não sou querida na terra de Munchkin, pelo que vi até aqui”, disse Elphaba. “O povo é cruel e impressionado por hipocrisias, a pompa do lugar é opressiva, e eu acredito firmemente que você está sentada num barril de pólvora.”

“Mais razão para você ficar e me ajudar”, disse Nessarose. “Não fomos ambas criadas com a expectativa de uma vida de trabalho?”

“Seus sapatos a tornaram forte”, disse Elfinha. “Eu não sabia que sapatos podiam fazer isso. Eu não acho que você precisa de mim. Mas não perca esses sapatos.” Ela pensou: Seus sapatos lhe dão um equilíbrio antinatural. Você fica parecida com uma serpente erguida a partir da cauda.

“É verdade que você se lembra como eles eram?”

“Sim, mas eu sei que Glinda os aprimorou com uma palavra mágica, ou coisa do gênero.”

“Oh, aquela Glinda! Que tipo!” Nessinha engoliu e sorriu. “Bem, você pode ficar com meus sapatos, minha querida ― passando sobre meu cadáver. Eu reescreverei meu testamento e os legarei para você. Embora eu mal possa imaginar o que eles fariam por você. Eles não me deram novos braços. Talvez sapatos encantados não consigam mudar a cor de sua pele, mas farão você tão atraente que isso nem chegará a ter importância.”

“Eu já estou velha demais para ser tão atraente.”

“Ué, você ainda está na aurora da vida, e eu também!”, disse Nessarose, rindo. “Conte-me se você tem algum namorado numa iurta ou tenda ou bar­raca ou o que quer que possa ser chamado de casa lá no Vinkus. Vamos lá.”

“Eu tenho cismado com uma coisa, desde que vi você fazer aquele feitiço nesta manhã”, Elfinha disse. “O feitiço no machado.”

“Oh, certo. Batatas pequenas, quero aquela.”

“Você por acaso se lembra daquela ocasião em Shiz quando Madame Morrible disse que estava nos enfeitiçando? E que não poderíamos conversar umas com as outras sobre isso?”

“Vá em frente. Parece familiar. Ela era tão sinistra, não era? Uma mestra em tirania.”

“Ela disse que tinha nos escolhido ― eu, você e Glinda ― para ser Adeptas. Para ser agentes de alguém lá do alto. Para ser feiticeiras e, não tenho certeza, cúmplices secretas. Ela prometeu que teríamos uma posição elevada e atuante. Ela nos fez pensar que não poderíamos nunca discutir isso entre nós.”

“Oh, sim, aquilo. Eu lembro mesmo. Que bruxa ela era.”

“Bem, você acha que há alguma verdade nisso? Você acha que ela tinha o poder de nos obrigar ao silêncio? De nos tornar poderosas feiticeiras?”

“Ela tinha o poder de nos assustar até perder o juízo, mas nós éramos jovens e muito estúpidas, se bem me lembro.”

“Eu tive a impressão, naquela ocasião, que ela estava em conluio com o Mágico, e que ela mandou a sua coisa tiquetaqueante ― Grommetik, o nome acabou de me voltar, a memória não é mesmo uma coisa estranha? ― matar o Doutor Dillamond.”

“Você vê demônios armados com facas atrás de qualquer cadeira, você sempre foi assim”, Nessarose disse. “Eu não acho que Madame Morrible ti­vesse qualquer poder real. Ela era uma mulher manipuladora, mas seu poder era muito limitado, e, em nossa ingenuidade, nós a víamos como uma vilã. Ela era apenas cheia de si.”

“Estou pensando. Tentei dizer alguma coisa sobre o acontecimento de­pois. Nós todas não desmaiamos?”

“Nós éramos inocentes e horrivelmente sugestionáveis, Elfinha.”

“E Glinda casou-se com o dinheiro, como Madame Morrible disse. Sir Chuffrey ainda está vivo?”

“Se aquilo pode ser chamado de vida, sim. E Glinda é uma feiticeira, não há dúvida quanto a isso. Mas Madame Morrible estava apenas fazendo prognósticos sobre nós; ela viu nossos talentos, o que era previsível em se tratando de uma educadora, e aconselhou-nos sobre como aproveitá-los da melhor maneira possível. O que há de tão surpreendente nisso?”

“Ela tentou nos aliciar para o serviço secreto de algum mestre desco­nhecido. Eu não estou inventando isso, Nessinha.”

“Ela sabia como chegar a você, obviamente, apelando para seu senso de conspiração. Eu não me lembro dessa sedução absurda.”

Elphaba caiu em silêncio. Talvez Nessinha estivesse certa. E, no entanto, aqui estavam elas, uma dúzia de anos depois: duas Bruxas, de um certo modo. E Glinda uma feiticeira de utilidade pública. Era o suficiente para fazer El­finha voltar para Kiamo Ko e queimar aquele Livro das Sombras, e queimar a vassoura também, devido a isso.

“Ela sempre lembrou uma carpa para Glinda”, disse Nessarose. “Você lá pode ficar assustada com um peixe, depois de todos esses anos?”

“Uma vez eu vi num livro o desenho de um monstro do lago, ou um monstro do mar, se você acredita em oceanos”, disse Elfinha. “Eu não posso ter certeza de que monstros existem, mas eu preferiria passar minha vida em dúvida do que ser convencida pela experiência real.”

“Você disse a mesmíssima coisa sobre o Deus Inominável uma vez”, disse Nessarose, surdamente.

“Oh, por favor, não vá começar com isso.”

“Uma alma é coisa valiosa demais para ser ignorada, Elfinha.”

“Bem, não é ótimo que eu não tenha nenhuma, então? Assim, não há nem desordem nem rebuliço.”

“Você tem uma alma. Todo mundo tem.”

“E quanto à Vaca que você permutou hoje, e as Ovelhas?”

“Eu não estou falando de ordens inferiores.”

“Esse tipo de conversa me ofende, Nessinha. Eu libertei aqueles Ani­mais hoje, você sabe.”

Nessarose deu de ombros. “Você tem alguns direitos aqui em Solos de Colwen. Eu não vou sair por aí proibindo suas missões com pequenos animais.”

“Disseram coisas bem horríveis sobre como os Animais estão sendo tratados aqui. Pensei que era apenas na Cidade Esmeralda e em Gillikin; de algum modo, achei que a Terra de Munchkin, sendo mais rural, teria mais senso comum.”

“Sabe?”, disse Nessinha, dando sinal para que a criada limpasse a sua boca com um guardanapo, “uma vez, num ofício de oração, eu conheci um soldado. Ele havia perdido um membro numa campanha contra alguns rebel­des quadlings. Ele dizia que toda manhã batia no coto que restara no lugar onde ficava seu braço. Seu sangue tinia, e daí a poucos minutos surgia uma sensação de formigamento, e, assim, ele desenvolveu uma espécie de membro fantasma. Não foi de imediato, e nem de forma física: o que ele recuperou foi um senso do que ele havia sentido. A coisa chegava ao cotovelo, e então a sua memória, sua memória corporal, dos membros em espaço tridimensio­nal, se expandia, finalmente, descendo até seus dedos. Assim que o membro fantasma era colocado em seu lugar, isto é, mentalmente, ele podia encarar o dia como um homem aleijado. Além disso, ele conseguira um maior equi­líbrio físico.”

Elphaba, sentindo-se mais e mais uma verdadeira Bruxa, olhava para a sua irmã, esperando pelo desfecho.

“Eu tentei por uns tempos. Por meses, na verdade. A Babá massageou minhas pequenas saliências no lugar. Depois de muito trabalho da parte da coitada, eu comecei a desenvolver apenas o começo de uma impressão de como seria ter braços. Isso nunca foi muito longe, até que Glinda encantou estes sapatos. Agora ― eu não sei por que, talvez sejam muito apertados e minha circulação reclame ―, depois de ficar com eles por uma hora, possuo braços fantasmas. Pela primeira vez em minha vida. Só não posso sentir os dedos por completo.”

“Membros fantasmas”, disse Elfinha. “Bem, fico feliz por você.”

“Sabe? Se você se esbofeteasse, espiritualmente falando”, disse Nessaro­se, “poderia desenvolver uma alma fantasma, ou alguma coisa que se parecesse com uma. É um bom guia interno, uma alma. Acho que você poderia até reconhecer que não seria um fantasma de todo ― seria uma alma real.”

“Isso basta, Nessinha”, disse Elphaba. “Eu não quero discutir minhas experiências espirituais com você.”

“Por que você não fica aqui comigo, entra para meu grupo, e a batiza­mos?”, disse Nessarose, calorosamente.

“A água é profundamente dolorida para mim, como você bem sabe, e não vou discutir isso novamente. Eu não posso fazer aliança com nada que seja Inominável. É uma falsidade.”

“Você está se condenando a uma vida de tristeza”, Nessarose disse.

“Bem, com isso eu já me acostumei, e assim ao menos não há nada que possa surgir de imprevisto e me surpreender.” Elfinha abaixou o guardana­po. “Eu não posso ficar aqui, Nessinha. Não posso ajudar você. Eu tenho responsabilidades com minha própria vida no Vinkus, o qual você mostrou ter pouquíssimo interesse em conhecer. Oh, tudo bem, eu sei, uma revolu­ção ocorreu e você virou uma nova primeira-ministra ou coisa parecida, e, de todo mundo, você é quem mais tem direito a estar distraída. Ou você aceita o fardo da liderança ou deixa a coisa de lado, mas nos dois casos veja isso como uma escolha consciente, e não como um acidente da história, um martírio por descuido. Eu me preocupo por você, mas eu não posso ficar e ser seu faz-tudo.”

“Eu fui desajeitada e sincera. Não exija que eu me lembre de como ser fraternal num tempo tão curto...”

“Você teve Shell com quem praticar nesses anos todos”, Elphaba disse, severamente.

“É só isso, você se levanta e vai embora?” Nessarose se levantou também, daquele modo sinuoso, excêntrico, que era o seu. “Depois de doze anos de separação, temos três, quatro dias de reencontro e fica por isso mesmo?”

“Cuide-se bem”, Elfinha disse, e beijou a sua irmã nas duas faces. “Eu sei que você será uma boa Eminência pelo tempo que quiser ser.”

“Eu rezarei por sua alma”, prometeu Nessarose.

“E eu esperarei por seus sapatos”, Elfinha respondeu.

No seu caminho de saída, Elfinha pensou em ir dizer adeus a seu pai, e então decidiu que não o faria. Ela dissera a ele tudo que poderia revelar de si mesma. Eles tinham-na assediado, ao modo claustrofóbico e afetuoso comum nas famílias, e ela não queria mais saber disso.


7
Tomando a rota do norte por sobre os Madeleines, ela percebeu que pas­saria pelo Lago Chorge. Decidiu fazer uma parada lá, a meio caminho de casa, estimulada por notar que estava realmente feliz por ter sido obrigada a voltar. Ela contornou a margem do lago, procurando pelo Capricho dos Pinhais, mas não pôde distinguir o lugar entre as muitas vilas do balneário que tinham se espalhado desde aquela visita que fizera em sua juventude.

Mas não era a terra visível o que ela realmente via. Era o mundo em sua amplidão. As características que ele parecia ter, o modo como se referia a si mesmo. Como é que Nessarose podia crer no Deus Inominável? Por trás de cada aspecto do mundo o que há é um outro aspecto do mundo. Num certo sentido, não era isso que o Doutor Dillamond pesquisara quando vivo? Ele imaginara uma nova criação verdadeira do mundo, defensável por provas e experiências; ele descobrira como localizá-la. Mas, ela não era uma visionária. Por trás do papel marmorizado azul e branco do lago, por trás da diluída seda do céu, Elphaba não via nada.

Nada sobre a crua matéria da vida: a estrutura muscular das asas dos anjos, a ação dos pequenos vasos capilares requerida para lançar um olhar fixo. Nem sobre os pegajosos temas do firmamento: nada sobre o bem, se o Deus Inominável seria de fato bom. Nada sobre o mal, também.

Pois, quem estava sob controle de quem, realmente? E isso poderia chegar a ser sabido? Cada agente trabalhava em cumplicidade e antagonis­mo ― como o frio e o sol juntos criando uma mortal lança de gelo... Seria o Mágico um charlatão, uma fraude, um déspota dotado de poderes apenas humanos e falíveis? Será que ele controlava as Adeptas ― Nessarose e Glinda, e uma terceira não nomeada, que certamente não era ela ― ou isso era apenas uma coisa que Madame Morrible atribuía a ele, para mitigar seu ego óbvio, seu apetite pela aparência do poder?


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