História do brasil moderno ernesto geisel



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Esses dois anos e meio no Uruguai foram um período muito agradável na minha vida. Os brasileiros eram bem tratados, fizemos amigos. Fiquei lá com minha mulher, os dois filhos e uma amiga da Lucy, uma dama de companhia que a ajudava com as crianças.

Certa ocasião, o adido da Aeronáutica dos Estados Unidos, que tinha um avião à sua disposição, nos convidou para um pas- seio. Fomos, todos os adidos com as senhoras, a Bariloche, na Ar- gentina. Depois de Bariloche sobrevoamos a cordilheira dos Andes, até Mendoza. Estivemos em Buenos Aires, antes de retornarmos a Montevidéu. Passamos uns 10 ou 15 dias nessa viagem.

Era a primeira vez que o senhor fazía um passeio assim, de la- zer?

Era. Outra ocasião, vim ao Brasil na comitiva do presidente uruguaio em visita oficial ao nosso país. Com ele também vinha o comandante do Exército uruguaio. Foi nessa época que o general Ál- cio faleceu. Fui ao seu enterro.

Fiquei no Uruguai até fevereiro de 1950. Voltei já como tenen- te-coronel e fui servir no Estado-Maior das Forças Armadas como adjunto da 3ª Seção, de operaçôes. O chefe do Emfa era o general Salvador César Obino, que tinha sido meu comandante em Porto #



Alegre. Era um distinto general, muito bom homem, muito correto, muito simples. Quando o general Obino saiu, entrou o general Góes. Aí Getúlio já tinha sido eleito presidente, e Góes tinha ido a Canossa para se reconciliar com ele.

No Emfa não se discutia política mas, de um modo geral, não queríamos a eleição de Getúlio. Pois ele não tinha sido posto para fora do governo por nós?

Getúlio estava associado ao nacionalismo, e havia uma ala mili- tar atuante no Clube Militar que era muito nacionalista.

Sim, sobretudo a ala do general Newton Estillac Leal, que foi então o primeiro-ministro da Guerra do Getúlio. Mas eu não partici- pava dos conflitos de idéias e de posiçôes no Clube Militar. Só fui atuar nas eleições do Clube anos depois. Naquela época era assedia- do pelos meus colegas, mas não participava. Achava que aquilo tu- do era bobagem, sem finalidade objetiva, e que o pessoal estava se envolvendo em campanhas que constituíam um desvirtuamento da função militar. A campanha "O petróleo é nosso", por exemplo, era um desvirtuamento. É claro que o Exército tinha interesse em resol- ver o problema do abastecimento nacional de petróleo, mas não era razão para uma campanha radical, ainda mais uma campanha em que havia envolvimento com políticos.

Votei no general Cordeiro para a presidência do Clube Militar em 1950. Mais tarde, as chapas do Clube passaram a ter uma colo- ração: a da esquerda, comunizante, era amarela, e a outra era azul. Um dos que trabalhavam muito pela chapa azul era o João Figueire- do. Participei depois da campanha em que Castelo foi candidato con- tra Joaquim Justino Alves Bastos. Fui inclusive escrutinador. Passei uma noite contando votos. Cada voto que contava a favor do Caste- lo, um oficial comunista impugnava. Foi uma noite inteira de briga, para apurar duas urnas. No fim nós perdemos.38 Mas eu não me apaixonava por isso. Havia muitos oficiais que também não se envol-

38 A eleição para a presidência do Clube Militar em 1950. marcada pela discussão so- bre o petróleo, foi vencida pela chapa nacionalista. encabeçada pelos generais Newton Estillac Leal e Júlio Caetano Horta Barbosa, que derrotou a chapa dos generais Osval- do Cordeiro de Farias e Emílio Ribas Júnior. Desta última fazia parte. entre outros, o então coronel Humberto Castelo Branco, que anos depois, em 1958, concorreu à pre- sidência do Clube, sendo derrotado pelo general Justino Alves Bastos. #

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viam. Essas disputas em geral eram travadas por grupos radicais servindo no Rio de Janeiro. Grande parte do Exército, entretanto, não estava no Rio. Havia uma grande guarnição militar no Rio Gran- de do Sul e outras mais reduzidas, com efetivos menores, em todos os estados. Essas questões repercutiam nos estados, mas com inten- sidade bem menor. Na capital, a disputa era mais acesa.

Enquanto isso, eu vivia muito mais o problema do Estado- Maior das Forças Armadas. Ali também havia influência comunista. Chefiava uma seção do Estado-Maior o Hercolino Cascardo, que era capitão-de-mar-e-guerra. Era um revolucionário de 24, da revolta do encouraçado São Paulo, e fora interventor do Rio Grande do Norte em substituição ao Aluísio Moura que, como já disse, foi exonerado após minha desavença com ele. Hercolino era um homem da esquer- da, francamente da esquerda. Usava a técnica da obstrução, procu- rando invalidar todas as proposiçôes elaboradas pelas demais se- çôes. Trazia a auréola de grande revolucionário. Acabou sendo exo- nerado do Estado-Maior, em virtude do seu procedimento.

Quando Góes Monteiro assumiu a chefia do Emfa, parece que o se- nhor o acompanhou numa viagem à Argentina. Como foi isso?

O Brasil fez um acordo militar com os Estados Unidos, e os argentinos queriam, por nosso intermédio, conseguir algo semelhan- te. Começaram a insistir, por meio do Luzardo, que era nosso em- baixador em Buenos Aires, e Getúlio acabou mandando o Góes em missão para conversar com os generais argentinos. Eu era tenente- coronel, oficial do Estado-Maior, e fui com ele. Na viagem, éramos Góes com a senhora, eu e dois ajudantes-de-ordem. Passamos vá- rios dias em Buenos Aires recebendo homenagens, Góes conversan- do muito, mas não resolvendo nada objetivamente com os argenti- nos, apenas tranqüilizando-os. Quando chegamos lá, puseram um médico à disposição dele. O médico foi examinar o coração do Góes e ficou preocupadíssimo, achou que ele poderia morrer a qualquer momento. Andávamos, por isso, com muito cuidado durante a via- gem. Visitamos Evita, que já estava muito doente, com leucemia. Pe- rón mantinha-se ainda exuberante no poder.

Durante a Segunda Guerra Mundial Perón foi germanófilo. Fi- cou neutro no conflito. Havia, da nossa parte, uma preocupação com a atitude da Argentina, que passou a ser considerada um possí- vel inimigo potencial na América do Sul. Mas depois da guerra os #



argentinos ficaram mais ligados a nós, de certa forma por causa do Getúlio e da atuação do embaixador Luzardo. Alega-se, mas isso nunca ficou comprovado, que Getúlio, antes da sua eleição, havia as- sumido altos compromissos com Perón.

Tive nessa viagem, que foi de navio, longas conversas com Góes sobre os homens e as coisas do Brasil. Góes era uma figura polêmica, mas se preocupava muito com a profissionalização do Exército. Não sei se ele era dispersivo ou o que era, porque na reali- dade não conseguia levar a bom termo o que idealizava. Talvez por- que a rotina fosse muito grande e a displicência fosse geral.

O quefazia o Emfa nesse período?

Tratava de questões de segurança, organização, eficiência e em- prego das Forças Armadas. E, principalmente, da coordenação des- sas forças, o que era muito importante porque, não existindo um Mi- nistério da Defesa, mas três ministérios, cada um cuidando de si sem maior vinculação com os outros, era necessário a interferência de um órgão capaz de assegurar, através do planejamento, a conjuga- ção de esforços. O Conselho de Segurança Nacional também tratava dos problemas de segurança, tendo em vista a participação dos mi- nistérios civis. Procurava coordenar a participação dos ministérios civis nas questões de segurança nacional, dentro do conceito de guerra total: da guerra que não é apenas das Forças Armadas, mas de toda a nação. Essa noção de guerra total foi uma conseqüência da Primeira Guerra. Foi quando as guerras deixaram de ser essen- cialmente das Forças Armadas e passaram a envolver toda a nação.

Qual era o papel da Escola Superior de Guerra naformulação da doutrina de segurança nacional?

A Escola Superior de Guerra foi criada quando o general Obi- no era chefe do Estado-Maior e eu ainda estava no Uruguai. Foi es- colhido para organizá-la o general Osvaldo Cordeiro de Farias, que foi o seu primeiro comandante.39 A ESG resultou desse conceito de guerra total.

39 A Escola Superior de Guerra foi criada em outubro de 1948. Seu primeiro coman- dante foi Cordeiro de Farias, de 1949 a 1952. #



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Na organização da Escola e do seu programa de trabalho, tive-

mos a colaboração e a influência americanas. No início, a Escola

contava com alguns oficiais americanos que funcionavam como assis-

tentes. Matriculavam-se militares e civis, todos devidamente selecio-

nados. Os civis eram voluntários, mas aceitos pela sua qualificação

profissional, pelas funçôes que exerciam na vida nacional, na indús-

tria, no comércio ou no próprio governo, inclusive no Itamarati. Rea-

lizava-se ali um intercâmbio entre militares e civis, e eram aborda-

das múltiplas questões, não tanto de estratégia militar, mas da vida

nacional, da preparação do país para enfrentar uma guerra, do de-

senvolvimento, da mobilização, dos transportes etc. Esses assuntos

todos eram ventilados através de conferências com debates e traba-

lhos de grupo.

Fui matriculado na ESG em 1952. Fazíamos o curso, mas tam-

bém pertencíamos ao corpo permanente da Escola. No corpo perma-

nente serviam oficiais da Marinha, da Aeronáutica e do Exército. Do

Exército, nessa ocasião, estavam lá entre outros Muricy, Golbery-

foi quando eu me reencontrei com ele -, Mamede e Rodrigo Otávio.

Discutimos muitos problemas para formular os programas, as apos-

tilas, para organizar as conferências etc. Havia diversos conferencis-

tas selecionados, tanto civis como militares. San Tiago Dantas era

um deles. Normalmente trabalhávamos em equipe, e havia discus-

sões acaloradas, principalmente com Rodrigo Otávio. Geralmente,

Golbery Mamede e eu tínhamos um ponto de vista comum, mas Ro-

drigo Otávio divergia. Então discutíamos e dificilmente chegávamos

a um acordo.

No fim do ano estava previsto um exercício, no conjunto da tur-

ma, sobre segurança nacional, que se prolongaria por vários dias.

Nosso comandante já era o Juarez. Cabia a nós, do corpo permanen-

te, organizar as bases desse trabalho. Era um exercício que envolvia

planejamento. Eu e Golbery de um lado, e Rodrigo Otávio de outro,

passamos toda uma noite discutindo. Tínhamos duas soluções, a nos-

sa e a dele. Não houve maneira de chegarmos a um acordo. No dia

seguinte de manhâ, quando o Juarez chegou na Escola e nos inda-

gou sobre o trabalho, informei-o sobre a nossa divergência. Disse-lhe

que tínhamos um projeto, e Rodrigo Otávio outro. Não havia muito

tempo disponível, porque daí a uma hora o tema devia ser apresenta-

do ao conjunto de estagiários. Juarez decidiu pela nossa proposição.

O exercício foi realizado durante toda a semana e foi muito provei-

toso.

Acho que a ESG foi importante porque conseguiu transmitir pa- ra uma boa parte do setor civil, mais responsável, informações e es- tudos sobre o problema da segurança do país, mostrando que aque- le náo era um problema só dos militares, mas de toda a nação. Os militares são responsáveis em parte pela segurança nacional, mas nu- ma eventualidade de guerra, de ameaça à segurança do país, sua ação é limitada. É a maioria da nação que vai dar os meios, os re- cursos etc. para defender o país. Havia a noção no Brasil, e talvez ainda haja na cabeça de muita gente, de que a guerra é um proble- ma só dos militares. No entanto, a guerra é também um problema dos políticos, dos economistas e das demais forças vivas da nação. Assim como se mobiliza o pessoal para ir para a guerra, para ser soldado, há mobilização civil no setor de indústrias, no setor de pro- dução agrícola etc. A mobilização é de todos, para assegurar a vida nacional e permitir fazer a guerra e vencê-la. A ESG procurou, e acredito que em boa parte conseguiu, conscientizar e mostrar a cer- tos setores civis que, assim como os militares se preparam para a guerra, como profissionais da guerra, da luta em si, os civis também têm que pensar nesse problema. Se é que querem, como devem, se preocupar com a segurança do país. Há muitos temas, não propria- mente militares, mas ligados às áreas civis, que envolvem ou inte- gram o problema da guerra, que eram ventilados na ESG. Procurava- se conscientizar a elite civil de que ela tinha que começar a pensar nessas coisas, porque víamos a perspectiva da guerra dos Estados Unidos com a União Soviética, na qual o Brasil certamente ficaria en- volvido.

A ESG foi a instituição formuladora de uma doutrina de segu- rança nacional, realizando uma integração doutrinária entre o meio militar e o meio civil. Não tinha nada a ver com os problemas emer- gentes, principalmente políticos, que estavam acontecendo no país. Dentro da ESG, nas conferências e nos debates, essas coisas nunca foram discutidas. Se a gestão do Getúlio estava certa ou errada, se Getúlio devia ficar ou não devia ficar, se devia ser deposto, nenhum desses assuntos de política interna entrava ali. Mas é natural que à margem do curso, nas conversas, se debatessem muitos problemas, muitas questões. Discutiu-se muito a orientação do governo Getúlio, a eventualidade da candidatura do Juscelino. E formavam-se grupos e idéias em torno dessas questões e de outras da conjuntura e dos problemas nacionais. #

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Em fevereiro de 1954,foi divulgado o "Manifesto dos coronéis", que representou uma estocada séria no governo de Getúlio.40 Es- se documento saiu da ESG?

Esse manifesto não era da ESG propriamente. Oficiais da Es- cola Superior de Guerra estavam envolvidos, mas o manifesto era um assunto de que muitos outros oficiais do Exército também parti- ciparam. Era uma crítica ao governo pela indiferença com que eram tratados os problemas militares, pelo estado de decadência de mui- tas unidades militares do ponto de vista material e de organização. Era uma crítica geral às autoridades superiores, principalmente do Exército. Era esse o sentido do manifesto. Foi redigido por um gru- po de oficiais, entre eles Golbery e Mamede. Ademar de Queirós, muito meu amigo, era um dos líderes. Quase todos os oficiais da Es- cola assinaram. Eu declarei que não assinaria. Disse: "Não assino, porque acho que isso é um ato de insubordinação. É um ato de in- disciplina do qual não participo. Vocês podem ter toda razão, pode estar tudo muito certo, mas eu não assino". E também ficamos nis- so. Não discutimos. Eu respeitava a posição deles, como eles respei- tavam a minha. Nessa matéria, sempre fui, dentro do Exército, mui- to independente. Nunca fui de grupo. Sempre procurei me manter independente e com as minhas normas de procedimento.

Mas o fato é que essa história levou à saída do Jango do Mi- nistério do Trabalho, e à saída do Espírito Santo Cardoso do Minis- tério do Exército.

Nos anos 50já se chamava a ESG de "Sorbonne"?

Essa foi mais uma expressão pejorativa dos que não sabiam o que era a Escola e não gostavam dela. Apelidaram o corpo perma- nente como o grupo da Sorbonne: "uns homens metidos a besta, a serem sabidos". Mas o que é a Sorbonne? Na verdade a Sorbonne é apenas uma universidade como outra qualquer. Ela apenas tem maior tradição, pois existe desde a Idade Média.

40 Em 8 de fevereiro de 1954, um memorial assinado por 42 coronéis e 39 tenentes- coronéis foi encaminhado ao ministro da Guerra, general Ciro do Espírito Santo Car- doso, em protesto contra a exigüidade dos recursos destinados ao Exército e a pro- posta do ministro do Trabalho, João Goulart, de aumentar em 100% o salário míni- mo. Em conseqüência do episódio os dois ministros foram exonerados. #

Dentro da doutrina da ESG, como fica a relação dos militares com a política?

Os militares devem ficar fora da política partidária, mas não da política geral. O Exército deve estar sempre preparado para po- der fazer a guerra. Isto é, um Exército deve ter armamento adequa- do, suprimento e demais meios necessários. Tem que estar prepara- do na formação dos seus oficiais. A eficiência militar é importantís- sima, mas não depende só do Exército. Se o governo não der recursos, o Exército, assim como a Marinha e a Aeronáutica, isto é, as Forças Armadas, não terão os meios necessários para condu- zir a guerra e alcançar a vitória. E há coisas que às vezes têm que ser providas com bastante antecedência para o treinamento e forma- ção de pessoal, inclusive para a mobilização. O Exército, em tem- pos de guerra, terá que se expandir e crescer utilizando as reservas formadas durante a paz. O que se procura também é conscientizar o meio civil do que ele é obrigado a fazer, ou terá que fazer, para poder enfrentar as vicissitudes de uma guerra através da força mi- litar.

No entanto, o militar não deixa de ser um cidadão e, indivi- dualmente, tem o direito de ter pensamento político. Não deve, é cla- ro, prevalecer-se da força que a nação lhe confiou para atender sua posição política, que é necessariamente individual. Contudo, em oca- siões de crise, quando o país está ameaçado por graves dissensôes internas, fomentadas por dirigentes políticos que se desviam de seu encargo de conduzir o país à realização das aspirações nacionais e utilizam o poder para satisfazer seus interesses e ambições pessoais e de seus apaniguados, a nação fica em perigo, e os militares, em conjunto, poderão ter que atuar com suas forças para afastar drasti- camente o perigo manifesto.

Quanto ao fato de muitos políticos baterem na porta do quar- tel, devo dizer que isso sempre existiu. Vocês não conhecem a his- tória do Castelo? Quando os políticos começavam a aliciar, a son- dar os militares, ele vinha com a história das "vivandeiras batendo nos portões dos quartéis". As vivandeiras eram as mulheres que acompanhavam o Exército na Guerra do Paraguai, eram as lavadei- ras, as que viviam ali por perto da tropa. Castelo dizia que os polí- ticos eram as vivandeiras porque toda vez que o político começa a se exacerbar nas suas ambições ele logo imagina a revolução. E a #

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revolução é feita pelas Forças Armadas. Por isso ele vai bater na porta do quartel, vai procurar seduzir o militar. Neste momento em que estamos aqui conversando, há muitos dizendo: "Temos que dar um golpe! Temos que derrubar o presidente! Temos que voltar à ditadura militar!" E não é só o Bolsonaro, não! Tem mui- ta gente no meio civil que está pensando assim. Quantos vêm falar comigo, me amolar com esse negócio: "Quando é que o Exército vai dar o golpe? O senhor tem que agir, é preciso voltar!" São as vivandeiras ! 41

O que é mais forte: a pressão dos civis batendo nas portas dos quartéis ou a aspiração de alguns militares querendo liderar politi- camente o país?

Já houve épocas em que os militares queriam liderar o país. Na época em que os generais permaneciam muito tempo na função, eles se tornavam um pouco caudilhos. Cordeiro foi um. Góes foi ou- tro. Denys e Zenóbio também. Lott seguiu o mesmo caminho, mas seduzido pelo grupo comunista que estava com ele. Isso de certo modo acabou, porque o general Castelo, quando foi presidente, fez uma lei que limita o tempo de permanência do general no Exército. Vejam, por exemplo. o caso do Cordeiro. O Cordeiro foi general com trinta e tantos anos. Acho que não tinha 40 anos. Ficou como gene- ral mais de 20 anos. O Góes, na Revolução de 30, era tenente-coro- nel. Terminou a revolução, foi promovido a coronel, no dia seguinte a general-de-brigada, e um ano depois a general-de-divisão! De tenen- te-coronel a general-de-divisão, que então era o último posto da car- reira, foi um percurso meteórico, feito em dois, três anos. Ele aí foi ficando no Exército, sempre tendo funções de chefia: chefe do Es- tado-Maior, ministro do Exército, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Com muita influência, esses generais começavam a ter maior vinculação com os políticos, e possivelmente aí se geravam ambições de lado a lado. Acho que hoje em dia pode haver um ou outro caso, mas a influência dos políticos é maior que a dos mili- tares.

41 Este trecho do depoimento foi concedido em 28 de julho de 1993, durante o gover- no Itamar Franco. Jair Bolsonaro, ex-militar, era deputado federal pelo RJ. #

Entre nós, no Brasil, a vinculação dos militares com a políti- ca é tradicional. Isso vem da nossa formação, acho que vem até do Brasil Colônia. O que houve no Império? Quantos políticos quise- ram ser militares, através da Guarda Nacional? Quantos generais foram políticos? O que era o Barbacena, que perdeu a guerra con- tra a Argentina na batalha do Passo do Rosário? E, depois, quan- tos militares participaram do problema do 7 de abril, da deposi- ção de Pedro I? E do problema da maioridade? O que foi o proble- ma do Osório de um lado, Caxias de outro? O que foi o problema do Deodoro, comandante de armas no Rio Grande do Sul, brigan- do com o chefe federalista Gaspar Silveira Martins? Sempre houve militares envolvidos na política, e isso continuou com a República: por exemplo, o problema do Hermes da Fonseca na campanha civi- lista do Rui Barbosa. É sempre a política entrando no Exército. Isso é mais ou menos tradicional. Tenho a impressão de que, à me- dida que o país se desenvolve, essa interferência vai diminuindo. Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar. Mas o que há de militar no Congresso? Acho que não há mais ninguém. Minha opinião é que, à medida que o tempo passa, essa ingerência vai diluindo e desa- parecendo. Tem raízes históricas, mas agora, com a evolução, vai acabar.

Mas também sempre houve uma certa prevenção dos militares contra os políticos.

Sim, no Império os políticos eram os "casacas". Um dos pro- blemas sérios que houve neste país foi a Guerra do Paraguai. O Exército se exauriu nessa guerra de cinco anos. Quando voltou foi menosprezado, relegado, tiraram-lhe os recursos e se criaram as questões militares. Os políticos se metendo com os militares, pu- nindo etc. Aí há um outro problema com graves repercussões. No tempo do Império, a força armada preferida, aristocrática, e que ti- nha todas as atenções, era a nossa Marinha. O neto do imperador foi para a Marinha. Eram os nobres. E o Exército, coitado, era me- nosprezado, não tinha nada, esfarrapado. Na República, o Exército tomou conta, com Deodoro e Floriano. E a Marinha se ressentiu. A Marinha sempre manifestou receio da criação de um Ministério da Defesa, no pressuposto da preponderância do Exército. Procurou- #



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se melhorar essa situação, inclusive, com a criação do Estado- Maior das Forças Armadas,42 fazendo rodízio na sua chefia. Ora o chefe é um oficial do Exército, ora um da Marinha, ora um da Ae- ronáutica.

Na nossa história, se quisermos nos aprofundar, encontrare- mos as raízes de alguns fenômenos contemporâneos. A pesquisa ade- quada sempre encontrará uma causa pertinente.

O senhor foi promovido a coronel no tempo da ESG?

Sim. Em abril de 1953 fui promovido a coronel. Eu tinha que ter dois anos de comando como oficial superior para poder prosse- guir na carreira, para poder pensar em algum dia chegar a general. Como major não consegui que me dessem comando, como tenente- coronel tampouco. Resolvi então sair da ESG e conseguir o coman- do de um corpo de tropa. Fui designado para comandar um grupo de artilharia que ficava no Leblon. Era o 8º Grupo de Artilharia de Costa Motorizada.

O senhor estava portanto comandando o 8º GACM durante a crise que levou ao suicídio de Getúlio. Como o senhor via a situação?

Víamos a situação se agravando dia a dia. Vivíamos no regime de prontidão, mas o Grupo não saiu do quartel, pois não houve qualquer movimentação de tropa, a não ser a de rotina. Embora es- tivesse perfeitamente informado do que ocorria, desde o atentado ao Lacerda,43 até as apurações da autoria do crime no inquérito do Ga- leão, não tive participação em nada. Nos quartéis, muitos eram con- tra Getúlio, e a influência do Lacerda era grande. Lacerda ia para a


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