História do brasil moderno ernesto geisel



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Meu governo mudou um pouco o perfil nessa matéria. Uma das teses que parecem muito simpáticas diz: vamos tirar dos ricos para distribuir. Mas isso não pode ser assim. O rico, pelo fato de ser rico, não é condenável. O rico é condenável pela má aplicação que faz da sua fortuna. Entretanto, se aplicar os seus recursos para desenvolver o país, para criar empregos, seja numa indústria, seja no comércio, na agricultura, seja no que for, ele é muito bem-vindo. Mas no Brasil o que vigora é isso: vamos acabar com os ricos para melhorar as condições dos pobres. Aliás, no Brasil os ricos são pou- cos. A quantidade de riqueza disponível em função da população é ínfima, não dá para nada. Se tomarem o dinheiro dos ricos para dis- #

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tribuí-lo entre os pobres, no sentido de estabelecer um equilíbrio de recursos, todos vão ser pobres. Então, não é por aí que o problema se resolve. O problema se resolve assegurando-se o desenvolvimento do país.

Se o Brasil se desenvolver, se houver empregos, se os empre- gos forem progressivamente mais qualificados e se o empregado ga- nhar mais, se houver maior número de indústrias, maior atividade agrícola, maior atividade na pecuária e assim por diante, elevare- mos o nível econômico da população e, progressivamente, melhorare- mos sua situação. Um equilíbrio perfeito, a ponto de acabar com os ricos, talvez possa suceder num país comunista, mas num país capi- talista, não. O que se deve fazer é melhorar as condições das clas- ses mais pobres. E aí entra a ação do governo. Porque o particular, o rico, provavelmente, por si só, não vai fazer isso. O rico vai em- pregar o seu dinheiro na montagem de um banco ou de uma indús- tria, de um projeto agropecuário etc.

Eu condenaria o rico que fica com o seu dinheiro entesourado e vai gozar a vida com possíveis amantes. Esse não vale nada. Mas o rico que toma o seu dinheiro e aplica, eu aplaudo. Um exemplo é esse produtor de soja, Olacir de Morais. Ele era empreiteiro e deve ter ganho muito dinheiro. É dono do Banco Itamarati. Tem grandes fazendas em Mato Grosso, onde planta soja, e agora está querendo construir uma estrada de ferro para melhorar o escoamento da pro- dução de Mato Grosso. É um homem que do ponto de vista da ri- queza é excelente. Usa o dinheiro para desenvolver o país, é um em- preendedor. O próprio Antônio Ermírio de Morais que, como já ana- lisei aqui, tem aspectos censuráveis, é empreendedor.

Nesse problema de melhor distribuição de renda, não se pode esperar que tudo possa ser feito adequadamente pelo governo. É um processo progressivo, e só à medida que se eleva o nível da po- pulação é que se pode realmente evoluir.

O senhor lembra que, no governo Médici, Delfim Neto dizia: "va- mos deixar crescer o bolo para depois dividir"? O que o senhor pensa disso?

Quando e onde ele vai dividir? A divisão tem que se fazer na formação do bolo, dividir depois é uma utopia. Uma vez o bolo for- mado, quem ficou com ele vai reagir para não dividir. É possível que nessa concepção Delfim talvez não tenha se explicado direito. #
Não dá para pensar em fazer o bolo primeiro para depois dividi-lo. O que o governo tem que fazer é criar condições que estimulem o homem de dinheiro a investir. Hoje em dia, infelizmente, ele vai in- vestir em banco. Não estou dizendo que os bancos náo sejam neces- sários, mas sim que não o são na quantidade que temos. O negócio é tão bom que já há uma quantidade enorme de bancos estrangei- ros no país. Agora vejam: pelos dados do Ipea a situação no meu go- verno melhorou um pouco. Seria bom que houvesse continuidade. E será que houve continuidade? Acho que não.

Como o senhor vê o problema da distribuição da terra no país?

Nosso problema em matéria de distribuição de terras é muito complexo. A tendência da Igreja é distribuir terras para os agriculto- res no regime de pequena propriedade. Mas a maneira como eles es- tão considerando esse problema é uma utopia. Dar, simplesmente, a terra ao agricultor não é suficiente. É necessário assentá-lo com sua família, é preciso dar-lhe casa para morar. Ele necessita de semen- tes, ferramentas e muitas outras coisas. Precisa ter vaca para produ- zir leite, precisa ter a subsistência assegurada durante pelo menos um ano até que possa colher a primeira safra. Esse é o problema do assentamento, e para resolvê-lo, além da terra, tem que haver muito dispêndio de recursos, inclusive financeiros.

Além disso, deve-se considerar que o problema da pequena propriedade, por si, náo é uma solução adequada. O que o colono da pequena propriedade vai produzir? Só se forem especialidades, produtos mais caros, como frutas, flores, hortaliças etc. Nesse caso ele terá que estar próximo do grande centro para vendê-los, o que dificilmente ocorre. Senão, o que ele vai produzir em pequena pro- priedade? Soja, milho, feijão, arroz? Presentemente, o regime nessas culturas é o da máquina e o da especialização. É preciso ter maio- res extensões de terra para usar a máquina, para ter agrônomos e silos, para ter toda essa infra-estrutura. O agricultor deve dispor de sementes selecionadas, adubos, inseticidas e germicidas. A agricultu- ra tornou-se um problema complexo.

Não é o regime de pequena propriedade que vai resolver o pro- blema. O problema não tem essa simplicidade: o Incra vai lá, desa- propria e redistribui a terra. Isso não vai resolver nada, e essa é a história do fracasso da reforma agrária. O que acontece é que o sem- #

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terra recebe seu pedaço de terra e no fim de algum tempo passa adi- ante. Vende, vai embora e vai criar o problema em outro lugar.

A reforma agrária sempre foi uma questão muito ideologizada. Quando se dIz que a pequena propriedade não resolve, não se cor- re o risco de favorecer o latifúndio improdutivo?

Sou contra o latifúndio improdutivo, acho que deve ser expro- priado, deve ser liquidado. Não é aceitável que se possa ter uma propriedade e ficar sem fazer nada, esperando a valorização da ter- ra para então ganhar dinheiro. Sou completamente contra isso. Mas a reforma agrária é um problema muito oneroso para que seja resol- vido adequadamente. No meu governo foram feitos alguns assenta- mentos, mas não sei o que nessas áreas finalmente se produziu. O regime da pequena propriedade só pode subsistir se houver um grande sentimento de cooperação. A solução só pode vir através da cooperativa. No Brasil, entretanto, a cooperativa tem sido um fra- casso, salvo poucas exceçôes, e isso porque a maioria das nossas cooperativas vira ladroeira. Acaba na mão do gerente, que usa a coo- perativa em proveito próprio. Na minha terra, em Bento Gonçalves, quando eu era menino, faziam-se cooperativas de plantadores de uva. No fim de algum tempo, fracassavam. As cooperativas de trigo no Rio Grande do Sul também fracassaram pelo mesmo motivo. No Paraná e em Santa Catarina foi a mesma coisa. Talvez possamos mudar essa tendência para o roubo, e assim, algum dia, usufruir os benefícios da pequena propriedade.

E o que se faz, então, com esse povo que é expulso da terra, que não tem terra, não tem comida?

Tem-se que atender, mas não é dando apenas um pedaço de terra. É preciso retalhar uma grande propriedade improdutiva e aí assentar essa gente, organizar um adequado sistema cooperativista e educar. E quando o homem da cooperativa roubar, é preciso pô-lo na cadeia. Mas aqui não se pune, porque o deputado interfere, quer o voto da cooperativa... Uma cooperativa que teve grande êxito, resol- vendo muitos problemas dos agricultores, mas que infelizmente en- trou em concordata, ameaçada de falência, foi a Cotia, dos japoneses em São Paulo. Foi uma excelente organização. Assentou os colonos ja- poneses, distribuiu sementes selecionadas, adubos. Comprava toda a #


produção e colocava os produtos. E resolvia uma série de problemas

dos colonos. No ano passado, não sei o que houve, se por má admi-

nistração, ou por roubo, ou maus negócios, esteve por falir. Mas foi uma grande cooperativa, com a organização dos japoneses. Creio que a solução do problema é o cooperativismo expurga-

do. Há um trabalho na agricultura, particularmente no cerrado de

Minas Gerais, decorrente de um projeto executado pelo nosso Minis- tério da Agricultura, com a cooperação financeira do Japão. É o Pro- jeto Campo, iniciado no meu governo. Trouxeram-se agricultores do Rio Grande do Sul, descendentes de alemães e italianos. Todos os recursos necessários foram dados a esses colonos: casas, máquinas e gado, sob a forma de financiamento a longo prazo. E organizou-se

a adequada cooperativa. Isso foi feito em vários núcleos. Cada nú-

cleo tem sua escola, recebe visitas periódicas de agrônomos para ori-

entação. Há fornecimento de adubo, de sementes selecionadas etc. É um programa de colonização dirigido que deu resultado e que pros- segue com a organização de novos núcleos análogos, na medida da disponibilidade financeira, que em grande parte é atendida pelos ja- poneses, nos termos do convênio firmado entre o Brasil e o Japão.

Como seu governo lidou com o problema dos índios? Não concordo com a infiltração da Igreja, principalmente a es- trangeira, em áreas indígenas em nosso país, notadamente na Ama-

zônia. Havia, por exemplo, uma missão indígena no Pará que gozava

de grande imunidade. Tinha aviões próprios e movimentava pessoas

para dentro e para fora do país, sem qualquer controle, sem se sub- meter à fiscalização. Diziam que estavam fazendo o levantamento de idiomas indígenas da região, uma gramática da língua indígena, pro- curavam dar à sua atuação caráter científico, quando havia suspei- tas de que, na realidade, praticavam contrabando.Quando terminou o prazo da concessão que usufruíam, não concedi prorrogação e pro- videnciei sua saída do país. Mais tarde, no governo Figueiredo, eles conseguiram voltar. Pelo Estatuto do Índio - uma lei feita por cientistas e antropó- logos no governo Médici -, os indígenas têm o direito de preservar os seus padrões de vida e, assim, não nos cabe civilizá-los. Entre es- ses padrões, o mais importante talvez seja a religião, com suas cren- ças e mitos. Ora, é isso o que a Igreja católica, ou a luterana, que- #



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rem modificar, inclusive com a consideração de que sem o batismo não se entra no céu. Não concordo com isso.

A questão do índio, entre nós, é muito explorada. Dizem, por exemplo, que quando Cabral aqui chegou, havia no Brasil 5 milhôes de índios. Não sei quem fez esse recenseamento, nem que outra ba- se surgiu para essa avaliação. A Argentina não tem mais índios, a não ser pequenos contingentes na fronteira com a Bolívia. O Uruguai também não tem. No Paraguai os índios guaranis estão civilizados. Nós temos índios no Rio Grande do Sul inteiramente aculturados, mas que dispôem de reservas e as arrendam para os agricultores plantarem milho, soja etc. Enquanto ganham dinheiro, se embria- gam e roubam. Temos índios no Paraná, e até mesmo no Rio de Janeiro, que são reconhecidos e dispõem de uma reserva. E há ín- dios no restante do Brasil, não só no Mato Grosso e na Amazônia, mas também em estados como a Bahia, Alagoas, Maranhão, Goiás etc., todos exigindo reservas territoriais. E essas reservas, devidamen- te demarcadas, devem ser muito grandes, porque o índio, de acordo com seus padrões culturais, vive da caça e da pesca e, para alimen- tar toda a tribo, necessita de uma base territorial dilatada. O resulta- do dessa teoria é que o índio que já não é mais tão selvagem, que está em contato com a civilização e é parcialmente aculturado, explo- ra a floresta, extrai madeira, principalmente mogno, e vende no exte- rior, fazendo uma fortuna que lhe permite ter avião e automóvel im- portado. Ou então deixa que o homem civilizado faça garimpagem de ouro ou de pedras preciosas nas terras da sua reserva em troca de dinheiro, bebidas alcoólicas, entorpecentes etc. O problema do ín- dio no Brasil está malposto com a legislação que temos. E, nele, in- devidamente, interferem a Igreja e outras organizações internacio- nais, com menosprezo pela nossa soberania.

No seu governo surgiu a proposta de emancipação dos índios, ou seja, de reduzir o número dos que seriam caracterizados como índios. O senhor concorda com isso?

Isso está previsto na lei específica feita no tempo do Médici. A emancipação do índio, entretanto, é muito difícil. Há índios que fre- qüentaram a universidade no Rio e em Brasília, terminaram seus cursos e voltaram para a tribo e aí começaram a insuflar os outros índios contra o governo. Chegamos ao absurdo demagógico de politi- zar um índio, que não é emancipado, e fazer dele deputado: o depu- #
tado federal Juruna. Eu não sou contra o índio. Acho que o índio deve ser bem tratado, viver decentemente, sem ser obrigado a se ci- vilizar. Se ele quiser se civilizar, devemos criar condições de assimi- lação. Contudo, devemos considerar esse problema como exclusiva- mente nosso, dos brasileiros, e não admitir interferências externas. O americano matou quase todos os seus índios e agora é o grande campeão na defesa dos índios em outros países. O que é lamentável e incompreensível é que as autoridades e os cientistas brasileiros concorram para isso.

O que o senhor acha da reserva Ianomami?

Parece-me grande demais, um exagero demagógico. É uma área rica em minérios, que estimula a cobiça do homem, inclusive o estrangeiro. Nossa fronteira com a Venezuela está demarcada, mas não caracterizada. Na demarcação são colocados marcos nos pontos principais, nas montanhas etc., ao longo da fronteira, mas entre um marco e outro há geralmente uma grande extensão, da ordem de 20 a 50 quilômetros ou mais, em que não se sabe exatamente por on- de passa a fronteira. Falta a colocação de marcos intermediários. Assim, nosso garimpeiro poderá, inadvertidamente, invadir a Vene- zuela, ou os garimpeiros da Venezuela poderão invadir o Brasil. E aí começa a fraude e por vezes a chacina contra os índios, além das desagradáveis questões diplomáticas. Isso porque a fronteira é mor- ta, nâo tem vida, é desabitada, ao contrário, por exemplo, da nossa fronteira com o Uruguai. Aí, nas cabeceiras dos rios limítrofes - o Jaguarão e o Guaraí -, há uma série de marcos delimitando a divi- sa entre os dois países, e mesmo entre as cidades de Livramento e Rivera há uma avenida internacional.

Torno a repetir que não sou contra o índio, nem preconizo a sua emancipação forçada. Sou contra a maneira pela qual o proble- ma é encarado, seja pela Igreja, seja pelo governo, seja pelos antro- pólogos. Não pretendo ser o dono da verdade, mas penso um pouco diferente. #

20 - Política externa e pragmatismo

responsável

A política externa de seu governo ficou conhecida com o nome de "pragmatismo responsável". Como ela foi concebida?

O pragmatismo responsável resultou de conversas com o mi- nistro Silveira. Ele era nosso embaixador na Argentina havia alguns anos quando fui escolhido para a presidência. Demorei, como já dis- se, na escolha do ministro das Relações Exteriores. Depois de exami- nar vários nomes, detive-me no do Silveira. Verifiquei seu passado e pedi que viesse ao Brasil. Conversei então com ele e concluí que suas idéias sobre política exterior, em grande parte, coincidiam com as minhas.

Eu achava, e vi isso nos governos anteriores, inclusive no do Médici, que o Ministério das Relações Exteriores procurava fazer boa figura, aparecer e prestar serviços aos Estados Unidos. O ministro das Relações Exteriores do Médici, Gibson Barbosa, esteve na Euro- pa, andou pelo Oriente Médio e apareceu como querendo trabalhar para harmonizar os árabes e os israelenses. Deu entrevistas a respei- to, e eu achava que aquilo era uma tolice. Que credencial tinha o Bra- sil no mundo internacional para promover a conciliação entre esses dois povos? O Brasil não tinha projeção nem poder para tanto. Era #

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um problema de vaidade, de interesse em aparecer, mas totalmente fora da realidade. Eu achava que a nossa política externa tinha que ser realista e, tanto quanto possível, independente. Andávamos dema- siadamente a reboque dos Estados Unidos. Sei que a política ameri- cana nos levava a isso, mas tínhamos que ter um pouco mais de so- berania, um pouco mais de independência, e não sermos subservien- tes em relação aos Estados Unidos. Tínhamos que viver e tratar com os Estados Unidos, tanto quanto possível, de igual para igual, embo- ra eles fossem muito mais fortes, muito mais poderosos do que nós. Tínhamos que conversar e dizer as coisas como elas são, tínhamos que ser realistas no tratamento dos nossos interesses, querendo reci- procidade. Nossa política tinha que ser pragmática, mas também res- ponsável. O que fizéssemos tinha que ser feito com convicção e no in- teresse do Brasil, sem dubiedades.

A mudança na politica externa de seu governo em relação à dos governos militares anteriores estava ligada, portanto, à posição do Brasil diante dos Estados Unidos?

Sim. No governo Castelo, a política exterior foi muito ligada aos Estados Unidos. O embaixador americano na época, Lincoln Gordon, era muito a favor do governo brasileiro e mantinha óti- mas relaçôes com Castelo. Com Costa e Silva, a situação não se al- terou. Depois, já no governo Médici e no começo do meu governo, o embaixador Crimmins era contra nós. Enviava notícias desfavorá- veis para os Estados Unidos, notícias tendenciosas. Em vez de tra- balhar para harmonizar interesses, criava divergências e desenten- dimentos. Mas ainda assim, na época do Médici, os Estados Uni- dos não fizeram reclamações sobre direitos humanos, não se envolveram nessa questão. Havia a grande euforia de "um país que ninguém segura", que ganhou o campeonato de futebol, com uma economia que ia relativamente bem. Médici não teve maiores problemas nessa área. Contudo, houve um desentendimento com a França a respeito da pesca, principalmente da lagosta, nas cos- tas brasileiras, o que levou o Médici a estender para 200 milhas o nosso mar territorial. Recordo que houve também uma tendência a romper relações diplomáticas com a Argélia, porque seu em- baixador entre nós intermediava o financiamento da subversão. Certa vez, quando eu era presidente da Petrobras, encontrei o Mé- #


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dici em Porto Alegre preocupado com esse problema e procurei de- movê-lo sob o argumento de que tínhamos interesse em comprar petróleo daquele país e em vender-lhe o nosso açúcar. Após ponde- rar a questão, e não sei se pelos meus argumentos, ele desistiu do rompimento.



A política do meu governo, com a ativa colaboração do Silvei- ra, era realista. Teve dificuldades mais graves com os Estados Uni- dos e com a Argentina, mas era uma política inteiramente a serviço do Brasil. Um problema de política exterior que eu considerava de grande interesse para o Brasil, e ainda considero, não apenas cultu- ralmente, mas principalmente no sentido econômico, era o relaciona- mento com os países do Hemisfério Norte. São os países que domi- nam o mundo, são as civilizações mais adiantadas. Somos muito amigos dos países da América do Sul, com os quais cultivamos re- lações harmoniosas, mas o problema do nosso desenvolvimento pas- sa pelo Hemisfério Norte. Procurei intensificar esse relacionamento, principalmente com a Inglaterra, a França, a Alemanha e o Japão. Não pude fazer mais coisas com os Estados Unidos por causa de exigências que foram surgindo e que me pareceram descabidas. Eles taxavam a importação de certos produtos brasileiros, embora fizes- sem apologia do comércio livre. Uma vez Kissinger esteve no Brasil e, conversando comigo, convidou-me a visitar os Estados Unidos. Respondi-lhe que poderia ir, mas só no dia em que o governo ameri- cano acabasse com essas taxações.

Até hoje, a importação de açúcar do Brasil pelos Estados Unidos é limitada por uma quota estabelecida. Os produtos de aço também são sobretaxados, sob o argumento de que aqui são subsi- diados, inclusive devido ao menor salário dos nossos operários. O nosso suco de laranja, para entrar no mercado americano, é sobre- taxado a pretexto de assim se proteger a produção local. No entan- to, os Estados Unidos querem que o Brasil reduza ou acabe com as tarifas, prejudicando as suas indústrias! Sei que são um país poderoso, que têm a arma atômica e a bomba de hidrogênio, mas não aceito essa discriminação contra o Brasil! Durante o meu go- verno houve muitos entendimentos com os Estados Unidos, alguns desagradáveis, outros positivos. De qualquer forma, nosso diálogo com eles continuou aberto. Mas minhas relações com a Inglaterra, com a França, com a Alemanha e principalmente com o Japão fo- ram muito boas. Com os árabes, desde quando presidi a Petro- #



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bras, procurei maior aproximação e passamos a ter relações mais amistosas.

Quando se fala da política externa do seu governo, enfatiza-se sempre as iniciativas diplomáticas em relação ao Terceiro Mundo. No entanto, o senhor diz que o que importava era o Hemisfério Norte.

Isso pode parecer uma incoerência. Mas na questão do Tercei- ro Mundo, dos subdesenvolvidos, o Brasil não se filiou a qualquer organização correlata. Comparecíamos às reuniões e conferências, éramos a favor das reivindicações desses países, até porque tam- bém éramos um país subdesenvolvido, embora numa situação econô- mica, social e política em evolução, mas não assumíamos qualquer compromisso. Eles tinham a nossa simpatia, mas não nos engajáva- mos. Os nossos interesses, de fato, estavam no Hemisfério Norte. Os países do Hemisfério Sul, em termos de tecnologia, de financia- mento, de equipamento, nada tinham que pudéssemos aproveitar. Seria uma posição egoísta? Talvez. Mas evidentemente, em primeiro lugar, estavam os nossos interesses.

Teríamos uma política de solidariedade para com o Terceiro Mun- do e de preferência econômica pelo Norte?

Sim. Considerando o nosso desenvolvimento econômico e so- cial, tínhamos que aprender muita coisa com o Norte. Mas mesmo nessa solidariedade com o Terceiro Mundo o Brasil nunca se empe- nhou a fundo. Para nos engajarmos a fundo, tínhamos que endos- sar as reivindicações dos subdesenvolvidos e sair pelo mundo fazen- do campanha. Não convinha ao Brasil fazer isso. A solidariedade foi uma posição mais diplomática. A diplomacia é muito sutil. Nem sempre concordei com os diplomatas.

De qualquerforma o senhor não deu atenção apenas ao Hemisfé- rio Norte, mas também à África, ao Oriente Médio...

Sim, à África ocidental, que é nossa fronteira marítima. E ao Médio Oriente, por causa do suprimento de petróleo e do mercado para os nossos produtos, principalmente alimentos. Dei também par- ticular atenção aos nossos vizinhos da América do Sul. #


Uma medida de impacto, tomada no inicio de seu governo, foi o reatamento de relações com a China. Do ponto de vista das rela- ções internacionais, a China tinha algumas posições semelhantes às do Brasil. Por exemplo, também defendia o mar de 200 mi- lhas, não tinha assinado o Tratado de Não-Proliferação Nuclear... Isso foi levado em consideração para o reatamento das relações, ou pesaram apenas razões comerciais?

Eram razões estritamente comerciais. Mas a China também se portava em relação a nós, em outras áreas, como um país amisto- so. E a mesma distensão que procurávamos fazer no ambiente inter- no também queríamos fazer no exterior. O reatamento das relações estava de acordo com o pragmatismo responsável.

Como foram os entendimentos para o Acordo Nuclear Brasil-Ale- manha? Por que a Alemanhafoi escolhida para um acordo desse tipo?

Muitas pessoas podem imaginar que eu tivesse simpatia pela Alemanha porque sou descendente de alemães. Mas isso é uma boba- gem. Nós nos orientamos para a Alemanha porque considerávamos que, se ao longo do tempo iríamos construir usinas nucleares, tínha- mos que ter o ciclo completo da produção da fonte energética, isto é, tínhamos que produzir o urânio enriquecido. E os Estados Unidos sempre foram contrários a isso, sempre quiseram que o Brasil ficasse preso a eles. Na usina Angra I, que já estava em construção, o supri- mento da fonte energética, o urânio enriquecido, tinha que vir dos Es- tados Unidos. Eles cobrariam o preço que quisessem ou forneceriam a seu arbítrio, segundo suas disponibilidades. Era uma dependência inadmissível para a nossa soberania. A França produz o urânio enri- quecido, o Japão também, mas o único país que se dispôs a transfe- rir tecnologia para o Brasil foi a Alemanha. A França não quis, nem a Inglaterra, nem os Estados Unidos. Fez-se então o acordo com a Ale- manha, incluindo o projeto das usinas e a tecnologia para enriquecer o urânio. Essa é em grandes linhas a gênese do Acordo Nuclear.


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