História de um coração roubado
Cláudio de Sá Capuano
No último dia de aula do curso primário, o menino teve a mai-
or decepção de sua vida. Roubaram-lhe o livro O coração. A obra,
do italiano Amicis, que falava justamente da vida escolar de alunos
de sua idade, tinha sido um presente do pai, que deixara na folha de
rosto uma dedicatória. Entretanto, pior que ter perdido o livro que
tanto cobiçara e amara foi descobrir que ele se encontrava sob a
pasta de Plínio, o melhor aluno da classe, aquele que, como alguns
dos personagens do livro, era justamente o melhor dentre todos os
alunos, o perfeito, o modelo a ser seguido.
Este é o enredo de uma crônica chamada “O coração rouba-
do”, composta pelo escritor brasileiro Marcos Rey. Em um texto
breve e denso, o autor narra o que uma forte decepção pôde fazer
com a visão de mundo de um menino que ainda sabia crer nos ou-
tros. O roubo d’O coração foi, para ele, inúmeros outros roubos.
Além do presente paterno, que ele, por sinal, recuperou do compa-
nheiro de classe sem denunciá-lo, havia perdido também a inocên-
cia, essa sim irrecuperável, bem como a capacidade de confiar nas
pessoas, de ter alguém como modelo, de crer na humanidade enfim.
O ladrão? Tornou-se um advogado de respeito, chegou a
desembargador. Enganava a todos, menos ao narrador, que conhe-
cera seu lado mais sombrio ainda na infância. Sempre que podia,
tentava desfazer com amigos ou estranhos a imagem respeitável
que o antigo colega de classe construíra.
Quarenta anos mais tarde, em uma mudança, caído de uma estan-
te, O coração veio-lhe às mãos. Nunca mais o tinha aberto. Tamanha
fora a sua decepção, desgostara-se igualmente do livro. No entanto, os
quarenta anos que o separaram do episódio que marcaria toda a sua
vida suscitaram outros sentimentos, a saudade, a vontade de reler a
dedicatória do falecido pai. Ao abrir o livro, não a encontrou, mas na
página seguinte, numa caligrafia desconhecida, havia as palavras: “Ao
meu querido filho Plínio, com todo amor e carinho de seu pai.”
Encerrado o texto, abre-se uma reflexão. O roubo que quaren-
ta anos antes parecia tão claro, ante tão forte evidência, nada mais
fora que um erro de juízo, uma leitura mal feita de uma situação
aparentemente banal, mas que pôde transformar um menino crédu-
lo em um homem incapaz de se sensibilizar ante a virtude do outro.
Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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Podemos fantasiar, já que tudo afinal é ficção, uma vida pontuada
por julgamentos distorcidos, feitos por um leitor formado, desde a
infância, no equívoco. Podemos principalmente fantasiar a sensa-
ção que teria tido esse menino velho ao descobrir que jamais saberia
quem de fato lhe roubara o livro, tendo que enxergar em si o ato que
julgara ser do outro. Que sensação teria tido ao se dar conta de que
era ele mesmo o responsável pela maior decepção que tivera na
vida? Ele sim, o ladrão de seu o próprio coração.
Psicanálise e Nosso Tempo
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