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trais da Idade Média, cheia de poesia. Na Espanha, que criará mais tarde um poderoso teatro nacional, só é digno de nota o fragmento do Auto de ]os Reyes Magos,
do século XIII, além de notícias vagas de mistérios castelhanos e catalães.
Os mistérios alemães (31) têm mais interêsse religioso
do que literário. Quando, em 1322, se representou em Eisenach o Spiel von den zehn Jungfrauen, e o Conde Fre
derico de Turíngia, sentado entre os espectadores, ouviu que nem a intercessão da Virgem conseguira que Cristo perdoasse às "virgens loucas" da parábola evangélica,
o conde desmaiou, fulminado pela angústia religiosa, para morrer, poucos dias depois, em desespêro. No Spiel von Frau Jutten (1485), de Dietrich Schernberg, já se
antecipam sentimentos de inquietação protestante e insatisfação fáustica. O teatro religioso italiano (32), ao contrário, parece literário demais; encontra-se até
o pagão Lourenço de Médicis entre os autores. E:" uma exceção honrosa o florentino Feo Belcari (33) ; as suas "rappresentazioni", como Abramo ed Isacco, Annunziazione,
Assuntà, Giudizio, dão testemunho da religiosidade sincera dos populares, que serão os adeptos de Savonarola.
O mais rico dos teatros medievais é o francês (34). De
pois das primeiras produções, entre as quais se encontram
31) W. Stammler: Leipzig, 1925.
32) V. De Bartholomaeis: liana. Bologna, 1924.
33) Cf. "O Quattrocento% nota 27.
34) Edições: Les miracles de Notre-Dame, por G. Paris e U. Robert, 8 vols., Paris, 1876/1893; Le mystère du Vieux Testament, por J. Rothschild e E. Picot, 6 vols.,
Paris, 1878/1891; Le mystère de Ia Passion, de Arnoul Gréban, por G. Paris e G. Raynaud, Paris, 1878.
L. Petit de Juleville: Histoire du théâtre en France au Moyen Age. 4 vols. Paris, 188O/1886, ("standard work"). L. Cohen: Le théâtre en France au Moyen Age. 2 vols.
Paris, 1928/1931. (Vol. I: Le théâtre religieux; vol. II; Le théâtre profane.)
G. Frank: The Medieval French Drama. Oxford, 1954.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL
o Miracle de Théophile, de Rutebeuf, e a chamada a siou
Didot do século XIV, em língua provençal, aparecem ções enormes: os 42 Miracles de Notre-Dame, do século
XIV, enchem, na edição moderna, 8 volumes grossos, e o Mystère du Vieil Testament, do século XV, trata, nos 6 volumes da edição moderna, todos os acontecimentos
da história sacra do Velho Testamento. Finalmente, vêm obras de autores individuais: o Mystère de Ia Passion, de Arnoul Gréban, 1452; outro de Jean Michel, 1486;
e o Mystère de Saint Louis, de Pierre Gringoire, 1513. O teatro religioso francês tem pouca fôrça dramática; decompõe-se em diálogos intermináveis, às vêzes ricos
em belezas líricas, como nas cenas famosas da Paixão, entre Cristo e a Virgem. As vêzes acreditamos ouvir a voz de Villon. O elemento cômico, tão bem desenvolvido
nas farsas francesas da mesma época, está rigorosamente excluído dos mistérios. Já se prepara a separação exata do trágico e do cômico, que é de rigor no teatro
clássico francês.
Os Mistérios inglêses (35) são quase em tudo o
contrário dos franceses. O elemento humorístico é de primeira ordem, especialmente quando se trata dos pastôres, nas cenas de Natal, ou das tentativas inúteis dos
diabos de perturbar os acontecimentos da história sacra. As peças revelam notável fôrça dramática. As coleções mais importantes são os 48 "miracle plays" de York
(c. 135O/144O), as 32 peças do ciclo Wakefield (c. 145O), (também chamadas Towneley Plays, porque conservadas outrora em Tow
35) Edições: W. Marriott: A Collection of English Miracle Plays
or Mysteries, containing the Dramas froco the Chester, Coventry and Towneley Series. Basel, 1838.
Towneley Plays, ed. por G. England e A. W. Pollard, London,
1897.
E. K. Chambers: The Medieval Stage. 2.a ed. 2 vols. Oxford,
1925.
K. Young: The Drama of the Medieval Church. 2 vols. Oxford,
1933.
H. Craig: English Religious Drama ol the Midde Ages. Ox
ford, 1955.
391
Das religioese Drama des deutschen Mittelalter3. Le origini delia poesia drammatica ita
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neley Hall, Lancashire), e entre as quais se encontram as
duas famosas Shepherd:"s Plays para Natal; e os Coventry
Plays, de 1468, com as duas peças para Corpus Christi, destinadas à representação por alfaiates e tecelões. O teatro medieval apresenta-se, ao mesmo tempo, como
expressão vigorosa da religiosidade e como obra de colaboração pacífica entre tôdas as classes da sociedade.
Colaboração pacífica perturbada às vêzes pelos ciúmes entre as corporações, e limitada, em todo o caso, aos dias de festa. Ainda no século XV aparecem, a par dos
mistérios, as "Moralités" e "Morality Plays", nas quais agem, como personagens alegóricos, as virtudes e vícios personificados; e, na ocasião de apresentar os vícios,
entra logo a sátira social, acalmando-se apenas com a idéia de que, por fim, a Morte igualará a todos. A época, possuída da idéia da morte, sente-se decadente, crepuscular.
Um pedaço isolado dessa psicologia mórbida está conservado na mais singular de tôdas as peças dramáticas me
dievais: na peça holandesa Lanselot ende Sanderijn
Parece versão dramática de um romance de cavalaria; mas às avessas. Sanderijn, a amante abandonada, não é grande dama, mas uma criada, e, no entanto, capaz de sentir
e exprimir sentimentos nobres e elevados. Lanselot, o príncipe e sedutor, êste é uma alma perdida; e sabe disso. É um personagem hamletiano. Aproxima-se, para empregar
o têrmo de Huizinga, o "Outono da Idade Média".
CAPÍTULO III
O OUTONO DA IDADE MÉDIA
G G FLAMBOYANT" chamavam antigamente os teóricos
franceses da arquitetura ao estilo gótico dos países borgonho-belgas no século XV. É o estilo dos imponentes "hôtels de ville" em Bruxelas e Louvain, da igreja SaintPierre,
em Louvain, construções nas quais o ritmo orgânico e algo esquemático das paralelas e ogivas góticas se dissolve em rêde de ramificações e rendas de pedra. É um
estilo extremamente suntuoso, exibição orgulhosa de riqueza, emoldurando, como em relicários preciosos, os êxtases místicos de Roger van der Weyden, a devoção sonhadora
de Memling, as visões diabólicas de Hieronymus Bosch e, no fundo do panorama, as inúmeras miniaturas dos Livros de Horas e Breviários borgonheses e dos manuscritos
de Valério Máximo e Froissart, nas quais castelos medievais olham do cimo das colinas sôbre cidades góticas com as suas multidões apertadas de patrícios e artífices,
sôbre campos, aldeias, sementeiras, ceifa e vindima, festas de Natal e Páscoa, neve e sol, danças e fôrcas; e em cima aparecem os sinais astrológicos que regem o
ano, a vida e a morte. Em nenhum outro tempo a arte conseguiu representar um quadro tão completo de vida elegante e grosseira, exuberante e aventurosa, sensual e
mística, como a arte da época de Carlos, o Temerário, e Luís :",I.
O estudo da documentação social e dos documentos literários confirma só em parte essa impressão. Já estava em decadência a riqueza realmente imensa das cidades flamengas,
ameçadas de perder o monopólio do comércio de
35-A)
35A) Lanseloet en Sanderijn (séc. XIV).
Edição, Haag, 19O2.
J. Van Mierlo: "Het dramatisch Confliet in Lanseloet". (In:
Verslagen der KoninU Maamsche Academie, 1942.)
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OTTO MARIA CARPEAUX
fazendas. Miséria lamentável reina nos campos, devasta
dos pelas guerras, pelas epidemias e pela revolução social
que penetra através dos muros das cidades e chega a des
truir palácios e conventos. As estradas reais estão cheias
de vagabundos, lixo humano das expropriações agrárias e
das renovadas guerras civis dos feudais. A côrte de Bor
gonha é o centro do último feudalismo, de luxo e orgulho
espantoso, mas já condenado à morte pelo crescente poder
dos reis da França, pela futura monarquia absoluta. A
arte "flamboyant" é um grande sonho de evasão, destinado
a substituir a realidade terrível por epopéias de façanhas
imaginárias, por idílios de inocência pastoril, por visões místicas. A literatura da época tem o mesmo objetivo; mas
não consegue atingi-lo. Com poucas exceções - exceções extraordinárias, porém - é uma literatura pobre, e através dessa pobreza revela-se o que a arte não diz: uma
grande melancolia. Mas os homens do século XV são violentos, sensuais, desmesurados, incapazes de desespêro ou de resignação estóica; com fôrça pretendem apanhar
a vida que lhes escapa, e a sua grande obsessão é o mêdo de perdê-la para sempre: a idéia fixa do século é a morte.
O grande historiador holandês Jan Huizinga, ao qual devemos a análise dessa época(:"), definiu-a pela fórmula insubstituível: "Outono da Idade Média". Verificou
os
típicos estados de alma: o sonho do ideal de cavalaria; o sonho de uma vida pacífica e idílica; e a obsessão da morte. É um pessimismo profundo, sem fôrça de renúncia.
Perde a realidade e substitui-a por uma vida de imaginação, de brincadeiras sem finalidades. Essa atitude não foi, em nenhuma época, a da burguesia, nem de uma burguesia
decadente; e o "Outono da Idade Média" não pode ser compreendido enquanto a sua exuberância artística e pobreza literária forem interpretadas como expressões de
1) J. Huizinga: De HerjsMi van de Middeleeuwen. 3.a ed. Leiden,
1928. (Tradução alemã: 2.a ed., Muenchen, 1928; tradução espanhola: Madrid, 193O.)
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL
uma burguesia rica e insuficientemente culta. Pretendeu-se explicar assim o atraso dos países nórdicos em comparação com a culta burguesia italiana do mesmo século.
Na verdade, o "flamboyant" é expressão de uma aristocracia feudal que perdeu o fundamento do seu poder social, e que e capaz de criar um sonho fantástico, mas incapaz
de criar
um estilo literário.
O fato fundamental é a crise agrária imediatamente anterior às grandes descobertas geográficas. Com essa crise - crise de comercialização dos campos - o feudalismo
perdeu o sentido. A expressão técnica dessa mudança é a modificação da arte militar pela pólvora e o canhão (2). Qualquer mercenário ou plebeu, capaz de manejar
uma arma de fogo, é agora mais poderoso do que o senhor mais ilustre; a bravura pessoal já não adianta. A democratização de uma arte tão cruel como a da guerra significa
plebeização; a partir de então a brutalidade invadirá todos os setores da vida. Mas o prestígio militar da aristocracia está destruído, ao passo que o seu prestígio
social, embora inteiramente ilusório, se mantém de pé. A situação dos feudais é como a dos aristocratas do século XIX, que já perderam as fortunas, mas mantêm artificialmente
seu an
tigo standard de vida para não parecerem burgueses. É
"conspicuous consumption" sem dinheiro, ilusório como os móveis preciosos e os vestidos ricos no palco. A vida da
aristocracia feudal transforma-se em representação vazia.
No maior centro feudal da época, na côrte de Borgonha,
inventam o cerimonial complicado, que depois foi adotado
na côrte de Espanha e é conhecido como "etiquêta espa
nhola". No fundo existe uma consciência pessimista, ex
2) A explicação da queda do feudalismo pela evolução da arte militar é um expediente muito antigo da historiografia. Consiste num paralogismo "post hoc, ergo propter
hoc". A interpretação moderna, da técnica como arma da evolução social, in:
Ch. Oman: History of the Art oj War in the Midde Ages. London, 1928.
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primindo-se, umas vêzes, em veleidades ascéticas, e, as mais das vêzes, em sonhos de evasão, em nostalgia de uma vida
mais autêntica, seja retomando os ideais da cavalaria, seja retirando-se para uma Arcádia nos campos, longe das lutas absurdas dos torneios na côrte. O ideal cavaleiresco
tinha
duas possibilidades de expressão: o sonho de uma vida guerreira, buscando aventuras para defender, em tôdas as ocasiões, os princípios do cristianismo - é a transfigura
ção do cruzado; ou então, o guerreiro nobre, buscando aventuras amorosas para praticar os requintes da galantaria - é a transfiguração do trovador. E o sonho pastoral
substituiu a sátira medieval contra o "vilão", transfigurando o camponês rude em pastor de maneiras aristocráticas; as atividades rústicas, na poesia pastoril, estão
na
mesma relação com a vida camponesa real que o torneio na côrte com a guerra de verdade.
O meio soberano de expressão dêsses três tipos literários - o cavaleiro ideal, o galanteador ideal, o pastor ideal - é a alegoria. A alegoria do "flamboyant" tem
função diferente da alegoria medieval; não serve para in
cluir fenômenos recalcitrantes num cosmo de valores hierarquizados, mas para salvar da confusão de valores os últimos ideais. A alegoria do "flamboyant" serve para
disfarçar a realidade desagradável, para transfigurar a brutalidade em bravura, a sensualidade em amor e a pobreza em Arcádia. Só um fator da vida real não pode
ser elidido por nenhuma alegoria: a morte. Daí a obsessão fúnebre da época. Pretendem alegorizar até a morte: nas "Moralités" e "Morality Plays", a Morte personificada
tem a sua função entre as virtudes e vícios personificados. Mas essa função revela-se como papel de mandatário divino, restabelecendo a ordem na realidade confusa,
igualando todos, no final da peça. O século "flamboyant", cheio de ânsia de viver, não ousa olhar o inimigo principal, cuja sombra sinistra cai sôbre a vida inteira.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 397
O romance de cavalaria, o romance de amor sentimental, a pastoral e a visão fúnebre, tôdas essas expressões do "Outono da Idade Média" não são fenômenos isolados
da história literária. O romance de cavalaria substitui o "roman courtois"; a matéria bretã fornece elementos substanciais aos romances de Amadis, e também ao romance
sentimental-amoroso que deriva dos elementos ovidianos do "roman courtois" e da Fiammetta. A pastoral é a inversão da "sátira" contra o "vilão"; e as visões fúnebres
estão préformadas na literatura dos místicos. Também são manifestas as analo_pias do romance de cavalaria com as obras romanescas de Boccaccio, as do romance sentimental
com o erotismo de Petrarca, as da pastoral com o Ninfale Fiesolano, e as da visão fúnebre com a visão dantesca. No "Quattrocento" contemporâneo correspondem-lhes
a epopéia fantástica de Boiardo, o lirismo de Giustiniani, a Arcadia, e a predicação de Savonarola.
O Amadis de Gaula (3) tem uma história literária quase tão complicada como o seu enrêdo. O texto espanhol de
Romances de Amadis:
Amadis de Gaula, texto espanhol de Garci Rodriguez de Montalbo (15O8). Edição: Biblioteca de Autores Espanoles, vol. XL.
Lisuarte de Grecia (151O).
Palmerín de Oliva (1511). Primaleón de Grecia (1512).
Amadis de Grecia, de Feliciano da Silva (c. 153O).
Don Florisel de Niquea (c. 1532; com continuações até 1551). Platir (1533).
Palmerín de Inglaterra, texto espanhol de Miguel Ferrar (1547). Edição: Nueva Biblioteca de Autores Espanoles, vol. XI. Em língua portuguêsa: Cronica do emperador
Clarimundo (1522) de João de Barros.
Theof. Braga: História das Novelas Portuguêsas de Cavalaria.
Põrto, 1873.
M. Menéndez y Pelayo: Orígenes de Ia novela. Vol. I. Madrid,
19O5.
H. Thomas: The Romance of Amadis of Gaule. London, 1912. H. Thomas: Spanish and Portuguesa Romances of Chivalry.
Cambridge, 192O.
G. J. Entwistle: Arthurian Legend in the Literaturas of the
Svanish Península. London, 1925.
3)
#. 398 OTTO MARIA CARPEAUX
Montalbo, de 15O8, é tradução de um original português, hoje perdido, mas já conhecido no século XV, ou mesmo antes, e atribuído a Vasco de Lobeira ou João Lobeira,
sem possibilidade de se identificar bem o autor. A dúvida cria outras dúvidas no que respeita à originalidade das numerosas continuações e imitações do primeiro
Amadis; da melhor dessas obras secundárias, o Palmeirim de Inglaterra, existe, conforme o texto espanhol de Miguel Ferrar (1547), uma tradução portuguêsa de Francisco
de Morais (1567), que sugere outras dúvidas quanto a um original português perdido. Enfim, a Crônica do Imperador Clarimundo, do historiador português João de Barros,
ocupa lugar em separado, da mesma maneira que o Amadis de Grecia, de Feliciano da Silva - e o resultado é uma luta homérica entre portuguêses e espanhóis: cada uma
das duas nações ibéricas atribui a si a glória de ter criado o livro que foi, depois da Bíblia, o mais lido de todos os tempos.
Essa discussão, de grande interêsse bibliográfico, per
de até certo ponto a importância quando se procede à análise da obra, ou melhor: daquele complexo de obras. As aventuras de Amadis com Oriana, Esplendián, castelos
encantados, feiticeiros, gigantes, anões, etc., etc., intermináveis como os romances-folhetins de Dumas pai (a comparação é de Menéndez y Pelayo), revelam-se como
resultados de leituras assíduas dos romances arturianos, da matéria bretã. Artur e os cavaleiros da Távola Redonda são responsáveis pelas aventuras guerreiras; Lancelot
e Guinevere, pelo elemento erótico; e o feiticeiro Merlin, pelo elemento fantástico. Amadis representa a última fase da prosificação do "roman courtois". Há mais
outras fontes. Os romances de Carlos Magno e dos pares da França forneceram muitos elementos; e existe nos romances de Amadis até certo fundamento histórico: a vida
dos cavaleiros ocidentais na Grécia bizantina, conquistada no século XIII. O próprio estilo bombástico daquelas obras não é especificamente ibérico: o "gongorismo"
aparece, mui
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 399
tas vêzes, quando a burguesia pretende imitar costumes aristocráticos, e isso é bem do século "flamboyant". Dêste modo, o elemento:" ibérico limita-se mais ao sucesso
da:" obra, satisfazendo sonhos íntimos da alma espanhola, representando para sempre certos ideais que nem Cervantes conseguiu extirpar. Se espanhóis e portuguêses
continuam a brigar pela glória de ter criado o Amadis, temos aí a última aventura do grande cavaleiro andante; evidentemente, a obra não pode ser tão enfadonha como
a posteridade acredita.:" Por certo o Amadis é hoje ilegível; mas quem já experimentou lê-lo? Estamos todos sob a impressão do julgamento de Cervantes, cujo ponto
de vista talvez não seja o nosso. É até possível afirmar que a maior, apologia do Amadis foi escrita pelo próprio Cervantes;, não pode morrer de todo um livro que
foi a leitura preferida de Dom Quixote. A última testemunha a favor de Amadis é Unamuno.
Com efeito, Amadis de Gaula não morreu; continua as suas aventuras com cavaleiros inimigos, feiticeiros e fadas, em castelos encantados e viagens perigosas, e continua
tudo isso no romance policial, que é um Amadis adaptado a exigências modernas pela composição mais concisa e o estilo mais sóbrio, por assim dizer, técnico. A literatura
inglêsa já possui, há quatro séculos, um Amadis mais sóbrio, mais novela do que romance, no sentido espanhol e
inglês dessas palavras. Por isso, a Morte d:"Arthur, de Ma
lory (4), nunca encontrou um Cervantes inimigo, e conti
nua até hoje admirada e lida como a primeira grande obra
4) Sir Thomas Malory, c. 1395-1471.
Morte d:"Arthur (impresso em 1485 por Caxton).
Edição do livro editado por Caxton, por A. W. Pollard, 2 vols.,
London, 19OO; edição do manuscrito original por E. Vinaver,
Oxford, 1947.
G. L. Kittredge: Who Was Sir Thomas Malory? Cambridge,
Mass., 1897.
W. H. Schofield: Chivalry in English Literatura. London, 1912.
E. Vinaver: Sir Thomas Malory. Oxford, 1929.
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do romance inglês. É uma combinação das aventuras de
Lancelot e Guinevere com a Demanda do Santo Graal, com
a morte patética de Artur no fundo do panorama. Aos
inglêses, a obra foi sempre cara, pelo idealismo patriótico
que a distingue, distinção muito grande na época das ter
ríveis guerras civis, que no século XV dilaceraram a In
glaterra. Por isso, muita gente se espantou quando a per
sonalidade de Sir Thomas Malory foi melhor identificada:
era um nobre que costumava assaltar as pessoas nas estra
das reais. Mas só assim se explica a particularidade da
obra, entre evasionismo de passadista e estilo sóbrio, técnico, contando sem eufemismos e sem os falsos psicologismos sentimentais que os imitadores românticos no
século XIX acrescentaram. É uma obra bem inglêsa.
Como modêlo do romance de cavalaria da espécie erótica e sentimental aparece a Fiammetta, de Boccaccio: é o "missing link" entre o ovidianismo medieval e o erotismo
espiritualista da Vita Nuova, e, por outro lado, o wertherianismo, o sentimentalismo erótico do Cárcel de amor. Papel mediador também exerceu a novela erótica do
grande humanista Enea Silvio Piccolomini, mais tarde Papa Pio II (5) : a Historia de duobus amantibus narra fatos que realmente aconteceram, disfarçando-se pouco
os nomes dos personagens históricos; essa circunstância situa a novela entre a écloga virgiliana, que gosta de pseudônimos fàcilmente decifráveis, e o romance da
paixão irresistivel. Dêste modo, a novela latina do humanista acrescentou ao ovidianismo um pouco daquela melancolia virgiliana que é, por sua vez, precursora do
sentimentalismo moderno.
5) Enea Silvio Piccolomin (Papa Pio II) , 14O5-1464.
Historia de doubus amantibus Euryalo et Lucretia (1444).
W. Boulting: Aeneas Silvius, Pius Ii. Orator, Man of Letters, Statesman, and Pope. London, 19O8. C. M. Ady: Pius II, the Humanist Pope. London, 1913.
HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 4O1
O Cárcel de amor, de Diego de San Pedro (s), experimentou algo do destino do Amadis: o livro, outrora muito lido, tornou-se ilegível. O uso de alegorias, a paisagem
estilizada à maneira da poesia bucólica, as intermináveis cartas de amor entre Leriano, encarcerado, e a princesa Laureola - tudo isso aborrece hoje. Impõe-se, porém,
uma analogia: há entre o Cárcel de amor e as sensualidades grosseiras da época a mesma relação existente entre a Pamela, de Samuel Richardson, e a comédia lasciva
da Restauração inglêsa; e Parcela também é um romance epistolográfico. Quem sabe se ao Cárcel de amor não está preparada uma ressurreição tão surpreendente como
a de Richardson, nos últimos anos, na Inglaterra? "Modernidade" não lhe falta: o fim com o suicídio é, no século XV, escandaloso e inédito; influiu no amoralismo
da Celestina. Mas o futuro imediato pertenceu ao erotismo bucólico, com personagens reais, pouco disfarçados, à maneira da novela de Pio II; na sociedade aristocrática
de Nápoles, onde a Cuestión de amor de dos enamorados (:") foi escrita, descobriu Croce os modelos dessa obra esquisita de um espanhol anônimo.
A oscilação indecisa entre o sentimentalismo erótico e a sensualidade brutal é um traço característico da época; tanto na Borgonha e na Espanha como na Itália de
Poliziano e Pontano. A síntese seria uma nova teoria do amor,
substituindo o ovidianismo obsoleto por nova doutrina, que daria direitos iguais ao corpo e à alma. Mas uma sín
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