Otto maria carpeaux



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a opinião da crítica italiana. E, sobretudo, não concordariam os leitores leigos, menos sensíveis aos valores estruturais e mais abertos à beleza lírica dos episódios.

Pois são os episódios que antes de tudo se gravaram na memória da humanidade : episódios que são poemas completos, como o romance de amor entre Paolo e Francesca

da Rimini; como a história terrível de Ugolino; como o relato misterioso e quase profético de Ulisses que, impulsionado por indomável curiosidade de conquistador

de novos horizontes, submergiu no - mar além das colunas de Hércules. Éster episódios são a leitura dantesca preferida dos séculos. Ainda um critico tão grande como

De Sanctis, embora reconhecendo a imponente unidade da construção do poema, preferiu êsse ou aquêle episódio para interpretá-lo em profundidade. Opuseram-se a êsse

processo crítico os eruditos. Durante cinco séculos, já a partir do XIV, realizaram trabalho imenso para explicar as inúmeras alusões históricas e políticas de que

o poema está cheio e que, com o tempo, ficaram cada vez menos compreensíveis ao leitor comum. Sobretudo no século XIX, reinado do positivismo, extraíram da Divina

Comédia um panorama completo da Itália do século XIII, panorama que começou, enfim, a ter existência própria ao lado do poema. A Divina Comédia foi própriamente

substituída por um imenso "romance histórico-científico" em prosa, obra dos eruditos, coroada pela exposição completa da teologia, filosofia e política dantescas,

fundamentada por verdadeira astronomia e geografia do Outro-Mundo de Dance, no qual chegaram a determinar as datas do itine

rário do poeta e medir a altura das montanhas e abismos do Inferno.

Contra essa erudição. dantesca lançou Benedetto Croce seu grito de batalha. Habituado a distinguir, até nos maiores poetas, entre os elementos poéticos e os não

poéticos, rejeitou enèrgicàmente; como "não-poesia", tôda a "máquina" alegórica, todo o "romance teológico-filosófico", para guardar, como poesia verdadeira, só

os episódios.

Mas não é possível separar os elementos; nem é justo rejeitar o grandioso esfôrço arquitetônico de Dance. A Divina Comédia é um edifício colossal, cuja unidade está

garantida justamente pelas convicções religiosas, filosóficas e políticas do poeta; e pela teria rima. Mas a campanha crítica de Croce teve efeito de tempestade

purificadora. Relegou para limites mais razoáveis a crítica erudita, restabelecendo os direitos da crítica estética. Depois de havermos devidamente admirado a arquitetura

do poema, podemos voltar a sentir com a beleza lírica dos episódios.

Há mil episódios: Paolo e Francesca da Rimini, Farinara, Brunetto Latini; Ulisses, Ugolino, Cato, Manfredo, Sordello, os Santos - mas só uma pessoa está sempre presente

em todo o poema: o próprio Dance, fazendo a sua confissão pessoal, lírica, identificando-se com a humanidade inteira: a sua viagem pelo outro mundo é "il cammin

di nostra vira" de todos nós. Mas como poderemos nós outros identificar-nos com êsse homem medieval e com o seu mundo alegórico e abstrato? Logo se admite que não

é

abstrato um mundo em que as metáforas e comparações de realismo intenso nos apresentam paisagens imaginárias e no entanto inesquecíveis - o próprio Goethe, tão hostil



às expressões da poesia cristã e medieval, chamou a aten

ção para a "veracidade" impressionante das montanhas, florestas e desfiladeiros do Inferno. A alegoria só serve para

esconder mais um sentido secreto que Dance julgava da maior importância:

#a

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"O voi ch:"avete gl:"intelletti sani, Mirate la dottrina che s:"asconde Sotto 1 velame delli versi strani."
Mas, justamente por isso, os versos são "strani", e aquela pergunta subsiste. Pergunta de importância transcendental: a vida de quase tôda a literatura do passado

- a própria continuidade da nossa civilização - depende da nossa capacidade de realizar a "suspension of disbelief", a "suspensão temporária da incredulidade", que

Coleridge exigiu para que a Divina Comédia seja compreensível a outros homens além dos católicos florentinos do século XIV.

O caminho para êsse fim abre-se na poesia lírica de Dance. A Vita Nuova, o romance do seu amor místico, é, para tanto, o caminho de preparação: cântico da dona "tanto

gentile e tanto onesta", profundamente sentido, apesar das formas convencionais, a Vita Nuova pretende ensinar-nos a compreender as fases da purificação lírica do

poeta, através dos três reinos, até o Paraíso, "Luce intellettual, piena d:"amore".

Há uma atmosfera fria, quase irrespirável, em tôrno de Dance, do homem que se purificou aproximando-se da perfeição celeste. Nenhuma outra criatura humana sugere

de tal modo a impressão do gênio e da sua solidão imensa. Mas essa solidão não é a do artista, afastado do mundo. É a do homem político, do homem de partido, derrotado

pelos adversários e exilado da pátria. Dance pôs tudo na Comédia: seu amor, sua religião, sua erudição, e sua paixão política. No fundo, a Comédia é um panfleto

político como nenhum outro foi escrito, antes ou depois, uma tentativa de aprisionar nas "flamas cantantes das suas terzinas" os inimigos vitoriosos, o Papa e os

seus aliados, os "republicanos" dos "comuni". Enfim, o exilado já não quis pertencer a partido nenhum; em isolamento glorioso, tinha "fatia parte per se stesso".

Continuava fiel ao seu

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL 345

imutável credo político, a unidade do Império cristão sob o condomínio do Imperador e do Papa; e quando viu derrotado êsse ideal, apelou para a posteridade: seu

libelo de apelação é a Comédia.

Discutiu-se a ortodoxia do poeta ortodoxíssimo, porque o seu ideal, profundamente católico, fôra abandonado pelo próprio Papa. Como universalista medieval, Dance

é reacionário, mesmo em relação à sua própria época; o seu tratado De Monarchia é o erudito discurso fúnebre da monarquia universal da Idade Média. Dêste modo, Dance

não tem, politicamente, nada que dizer-nos, como já não tinha que dizer, politicamente, aos seus contemporâneos. O recurso não chegou ao enderêço. Mas chegou à posteridade

como obra de arte, porque - o caminho da história é paradoxal - empregou o instrumento soberano da poética medieval: a alegoria. Pela alegoria, Dance incluiu, na

visão do outro mundo, tôdas as coisas dêste mundo: Beatrice e as ruas de Florença, os muros de Siena e as basílicas de Roma, o Papa, os partidos políticos, o Imperador,

a filosofia tomista, o arsenal de Veneza, os Apeninos e os Alpes, trovadores e ladrões, gregos e latinos - tudo está na Divina Comédia, a cujo autor nada de humano

ou infrahumano está alheio, nem o humor terrivelmente grotesco dos diabos ("Inferno", XXI/XXII). De modo que hoje pode haver nas esquinas das ruas de Florença inscrições

que lembram os trechos da Comédia nos quais o respectivo lugar está citado. Especialmente para os italianos, o panfleto político transformou-se em enciclopédia do

seu passado. Dante, poeta essencialmente lírico, transfigurou tudo, inclusive o mais profano, em poesia: os grandes e pequenos criminosos da sua época, em habitantes

imortais do Inferno; a môça florentina, Beatrice Portinari, em filha filosófica do céu; e o programa de um partido político desaparecido, em ideal político dos séculos.

O programa político de Dance não tem importância para nós; mas o seu ideal político tem muita. Quando Dance pretendeu julgar os

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seus adversários, instituiu um sistema de penas infernais, fielmente conforme a ética aristotélico-tomista; que forneceu as linhas mestras da composição do seu poema,

e conforme a astronomia ptolemaica, que lhe forneceu os andaimes "científicos" do imenso edifício do seu Universo. O que Dance desejava era o estabelecimento do

primado da ética sôbre a política; por isso, Bonifácio VIII, o Papa político, fica colocado no Inferno. Para compreender o idealismo político de Dance, não se precisa

de nenhuma "suspension of disbelief": o seu programa está morto e pode seduzir-nos tão pouco quanto nos aterrorizam as penas do seu Inferno; mas a sua reivindicação

de uma política ética, se bem que utópica, continua como aspiração para todos os tempos futuros. Neste sentido, aquela parte da Comédia, na qual essa aspiração aparece

na forma mais pura, o "Paraíso" é a parte mais moderna do poema.

Esta última apreciação não está de acôrdo com o consenso geral. A grande maioria dos leitores da Divina Comédia só conhece o "Inferno"; vence as dificuldades das

alusões políticas e históricas, que tornam indispensável o comentário, para compreender os grandes episódios que criaram a glória do poema através dos séculos. Uma

compreensão tão fragmentária do "Inferno" não sente escrúpulos, fragmentando o poema inteiro: o "Inferno", sim, seria um reflexo satírico - sátira trágica - do mundo

real e por isso acessível à nossa sensibilidade; o "Purgatório" seria, apenas, repetição mais fraca do "Inferno", e o "Paraíso", enfim, uma abstração, teologia escolástica

em versos; para à grande maioria dos leitores o "Paraíso" não existe.

Ler assim a Divina Comédia significa trair o poeta. Dance é um dos artistas mais conscientes de todos os tempos; devia saber o que disse quando atribuiu ao poema,

além do sentido literal, vários sentidos alegóricos: um ético, um religioso, um político. Ao leitor moderno repugna a interpretação alegórica, levando a artifícios

antiartís

1JISTÁRIA DA LITERATURA. OCIDENTAL 347

ticos e às vêzes absurdos; e ficamos perplexos quando vemos colocado pelo poeta medieval, o sentido político acima do sentido religioso. Num poeta medieval, teríamos

esperado o contrário. Mas, pensando assim, estaríamos laborando num anacronismo; a nós, que nascemos depois de Maquiavel, a política parece negócio sempre inferior.

Dante pensava de maneira diferente. Para êle, a política era a irmã da religião, e ambas, unidas, guiavam o homem para a paz terrestre e a beatitude celeste; daí

a inseparabilidade, no pensamento político de Dance, do poder imperial e do poder papal. O que no céu é religião, na terra é política; e o Purgatório é a ponte entre

a imperfeição humana :"e a perfeição divina. Visto assim, o sentido literal da Comédia - o libelo contra os vícios do tempo - é a base moral, e portanto indispensável,

do poema; os famosos episódios só têm, para o poeta, valor de exemplos, e só a imaginação realista do poeta os transformou em novelas poéticas. Dance é realista,

antes de tudo. Todos os críticos salientaram o realismo das comparações e descrições de paisagens imaginárias no "Inferno"; mas não são, de modo algum, imaginárias.

O "Inferno" é a paisagem real dos pecados humanos; e porque a fôrça da imaginação, humana tem limites, essa paisagem de montanhas, desfiladeiros, rios e florestas

subterrâneas é o espelho da paisagem italiana, dos Apeninos e dos Alpes, do Pó e do Arno, iluminada pelo bem observado "ser bruno", "quando lo giorno se n:"andava".

E a grande cidade infernal não é outra senão a cidade de Florença, porque -

"Godi, Fiorenza, poi che se:" si grande Che per mate e per terra batti fali, .

E per lo Inferno il tuo nome si spande".

O leitor não muda de continente quando "uscimmo a riveder le stelle".

Mas aquela limitação da imaginação não existe com respeito ao "Paraíso"; lá o poeta podia construir livremente

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HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

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o seu mundo de religião política e política religiosa; o céu de Dance não é a fantasia arbitrária de um sonhador, mas um edifício construído segundo as normas sólidas



da lógica escolástica, com os elementos de uma doutrina religiosa coerente e de uma doutrina política bem elaborada. Para aceitar êsses elementos, nem é preciso

a "suspension of disbelief"; porque, de acôrdo com as regras da logística, da ciência mais moderna, um sistema de idéias não precisa corresponder a qualquer realidade

exterior; só precisa não ter contradições interiores. No caso do "Paraíso", essa coerência é dada pela poesia, que transforma em realidade dentro da alma uma utopia

irrealizável neste mundo lá

fora:
"Tn Ia sua voluntate é nostra pace".

Do ponto de vista literário - que é, para nós, o quinto sentido da obra, essa realidade é de natureza musical, con torme as finas observações de Francesco Flora.

O Paraíso de Dance é construído como uma das grandes fugas, como a própria Arte da Fuga, de Bach. E quem poderiá duvidar da "realidade" dessas abstrações supremas?

O "outro mundo" de Dance é um mundo real, tão real como o seu criador, que vive ainda, embora saibamos que morreu há seis séculos. Dance foi vencido na política

atual da Itália do século XIV; na política ideal de todos os tempos, o derrotado realizou a sua visão ético-política, construindo outro mundo no qual os valores,

perturbados neste mundo, estão restabelecidos. Para êsse fim, nobre e utópico, empregou todos os meios então conhecidos de expressão: as visões dos monges e os apocalipses

dos místicos; a poesia dos trovadores e o hino dos franciscanos; o "dolce stil novo" e o humorismo dos diabos, nos Mistérios; as superstições infernais dos seus

antepassados etruscos e o intelectualismo aristotélico do seu mestre Tomás de Aquino; e, para exprimir tudo isso, criou, do dialeto florentino, uma nova língua,

a língua italiana, e uma nova

literatura, a primeira literatura moderna do Ocidente. Falando assim, em língua "vulgar", Dance foi entendido e permanece entendido até hoje; a cidade na qual o

poeta, no quadro de Domenico di Michelino, aponta com o dedo o reino da ética e do idealismo religioso, é a Florença de 13OO, mas a advertência convém à nossa cidade

também, a tõdas as cidades. Dance, grande espírito religioso, é o maior poeta político naquele seu alto sentido de política,

graças à fôrça inédita com que criou a maior e mais coerente estrutura poética de todos os tempos.

Entre Dance e os outros grandes poetas do "Trecento" existem apenas semelhanças artificiais; reuni-los numa trindade literária com Petrarca e Boccaccio, satisfaz

só à rotina. Língua e estilo de Petrarca são muito mais provençais do que a língua meio latina de Dance; e a prosa retórica de Boccaccio não tem nada que ver com

a concentração lírica do primeiro dos florentinos. O humanismo de Petrarca e Boccaccio, tentativa de renovar o espírito decadente da sua época, não tem nada em comum

com o imperialismo espiritualista de Dance; êste parece um santo, quando comparado com o intelectual Petrarca e com o burguês Boccaccio. Boccaccio está fora de tôdas

as preocupações políticas; Dance é essencialmente um poeta político. Petrarca julgava-se propagandista do Império, quando se apaixonou pela aventura política do

aventureiro Cola di Rienzo, aspirando ao restabelecimento da República romana. Entre a política de Dance e a de Petrarca existe a diferença que há entre o universalismo

medieval e o humanismo italiano. Dance, exilado de Florença, continua cidadão do Império; Petrarca, intelectual europeu, está exilado em Avinhão, com o Papado.

O Papado, que fôra capaz de vencer o Império universal, sucumbira ao Estado nacional dos franceses. A outra coluna do universalismo, a eclesiástica, também estava

quebrada. Entre os clérigos, refugiados em Avinhão, reinava a nostalgia da Roma longínqua. Lá nasceu o hu-

#35O :"OTTO MARIA CARPEAU%

manismo, não como grito de revolução de uma nova época, mas como sentimento de crepúsculo, mentalidade de gente culta, perdida entre bárbaros grosseiros. O ideal

dos clérigos de Avinhão encontra o seu modêlo entre os romanos cultos da última fase da República. Cipião, o Africano, chefe do grupo dos graeculi, é o herói preferido

da época: Petrarca dedicou-lhe o fragmento de uma epopéia em língua latina. Dance encontra na Antiguidade um ideal político: a monarquia universal dos césares. Petrarca

encontra na Antiguidade um ideal humano: o do intelectual culto, com as qualidades do espírito bem formado. Èste será, ainda, o ideal de Goethe, com o qual Petrarca

tem mais de uma semelhança: a união de interêsses científicos e lirismo pessoal é a mais importante.

Francesco Petrarca (14) é universal como Goethe: poeta, erudito, diplomata e, mais do que tudo isso, homem pri

14) Francesco Petrarca, 13O4-1374.

Africa (1342) ; De contemptu mundi (1342) ; Carmen bucolicum (1346/1356) ; De vita solitaria (1346/1356) ; De viris illustribus; Familiares e Variae (cartas) ; Canzoniere

(I In vita di M. Laura:

227 sonetos e 21 canções; II In morte di M. Laura: 9O sonetos, 8 canções) ; Trionfi.

Edições: Africa: N. Festa, Firenze, 1927. Cartas: G. Fracassetti, 3 vols., Firenze, 1859. Canzoniere: G. Salvo Cozzo, Firenze, 19O4. E. Bellorini, Torino, 1924.

É Chiorboli, Milano, 1924.

Trionfi: C. Calcaterra, Torino, 1924.

L. Geiger: Petrarca. Leipzig, 1874.

B. Zumbini: Studi sul Petrarca. Firenze, 1895.

F. De Sanctis: Saggio critico sul Petrarca. 2.a ed. Napoli, 1899. G. Finzi: Petrarca. Firenze, 19OO.

P. de Nolhac: Petrarque et l:"humanisme. 2.11 ed. 2 vols. Paris, 19O7.

E. N. Chiaradia: La storia del canzoniere di Francesco Petrarca. Bologna, 19O8.

M. E. Jerrold: Francesco Petrarca. London, 19O9.

A. Viscardi: Petrarca e il Medio Evo. Genova, 1925.

E. H. R. Tatham: Francesco Petrarca. 2 vols. London, 1925/1926. H. W. Eppelsheimer: Petrarca. Bonn, 1926.

HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

vedo, vivendo as suas paixões pessoais e, no fundo, só vivendo para o aperfeiçoamento da sua formação pessoal. O amor de madonna Laura, o estudo da Antiguidade e

os esforços do diplomata em favor da restauração italiana da Igreja exilada, são os pólos da sua vida movimentada, entre muitas viagens, dezesseis anos de solidão

em Vaucluse, coroação como poeta no Capitólio, e a morte em Arquá. Para a posteridade, o acontecimento mais impressionante da sua vida é a subida ao Mont Ventóux,

perto de Avinhão, no dia 26 de abril de 1336; de lá, olhou, profundamente comovido, para a paisagem, e depois abriu as Confissões de Santo Agostinho, lendo a grave

advertência de que a verdade não se encontra nas montanhas, planícies e mares, mas dentro da alma. Para nós, modernos, aquêle dia significa a descoberta do sentimento

da natureza e da independência da alma. Petrarca não viu, do alto da montanha; êsse panorama do futuro. Viu os lugares onde passava a sua amada, viu a cidade na

qual a religião estava encarcerada, viu a Itália longínqua, e, à distância dos tempos,

" l:"antiquo valore

Ne gl:"italici cor non è ancor morto".

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Eis a temática da sua vida e da sua poesia. Petrarca é humanista, no sentido de cultor dos estudos clássicos, e no sentido do "humani nihil a me alienum puto". Mas



não lê Cícero nem ama a Laura sem sentir remorsos. No fundo da sua alma existe o clérigo medieval; e o apaixonado, pelas leituras latinas ainda conhece horas em

que prefere S. Agostinho. De contemptu mundi e De vita solitaria

A. Foresti: Aneddoti delta vita di Francesco Petrarca. Brescia, 1928.

L. Tonelli: Petrarca. Milano, 193O.

H. Hauvette: Les poésies lyriques de Pétrarque. Paris, 1931. M. Bosco: Petrarca. Torino, 1946. G. Contini: Petrarca letterato. Roma, 1947. J. H. "tfield: Petrarca

e Ú Rinascimento. Bari, 1949.

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estão entre as obras que Petrarca, nem sempre sincero,



escreveu com a maior sinceridade. Lutam, na sua alma, o

católico ortodoxo e o precursor da Reforma, o intelectual moderno e o asceta medieval, e essa ambigüidade é o motivo da sua poesia: vivificou as abstrações sofísticas

da poesia provençal. Petrarca é o primeiro poeta inteiramente pessoal das literaturas modernas. É o primeiro poeta em que existem só motivos psicológicos, sem intervenção

do sobrenatural. Petrarca é, na literatura, um grande revolucionário. Não é fácil admitir isso hoje. A poesia de Petrarca parece a mais gasta do mundo; pois as suas

expressões e metáforas foram mil vêzes repetidas e imitadas em tôdas as línguas, e qualquer dos seus versos nos lembra imediatamente outros versos que já conhecíamos.

A poesia petrarquesca virou imenso lugar-comum. Mas Petrarca não é petrarquista. O seu amor é paixão sincera, e o Canzoniere constitui um grande drama de amor, ou

antes uma epopéia psicológica coerente: da sexta-feira santa, na qual viu Laura pela primeira vez, até os dias da velhice, sem a capacidade de esquecer:

"I:" vo piangendo i miei passati tempo".

Petrarca é uma alma profundamente melancólica - "Solo e pensoso" - e como todos os melancólicos é bom observador psicológico de si mesmo, "di quei sospiri ond:"

io


nudriva 1 core"; repara bem nas suas ambigüidades íntimas, exprimindo-as nas famosas antíteses -

"Pace non trovo, e non ho da far guerra; E temo e spero...." -

que geraram tantas antíteses artificiais, em mil poetas de tôdas as línguas, e que são o retrato fiel de uma alma culta e sensitiva. Petrarca sente vivamente a natureza:

Laura está sempre rodeada de primaveras, flôres e "chiare, fresche e dolci acque", mas nesta poesia também aparece "lo spirito lasso". Petrarca é o primeiro representante

do pes

HISTÓRIA DA LITERATURA OCÌDENTAL 353



simismo melancólico, desesperado, cansado e egoísta, identificando a própria desgraça íntima com a desgraça do mundo; é o precursor de Byron, de Lamartine e de Espronceda.

Foi isso o que êle sentiu no alto do Mont Ventoux, e era isso o que acreditava encontrar na melancolia das ruínas - outra descoberta sua, sentimento muito moderno.

Essa melancolia é o elemento vivo na sua África, tentativa ambiciosa de imitar a epopéia latina; a passagem mais bela é o lamento de Mago, antes de morrer. O mesmo

sentimento pessoal dá vida às suas cartas latinas, documentos vivíssimos da sua biografia; o estilo ciceroniano, que Petrarca dominava da maneira mais perfeita,

está todo modernizado. O mesmo sentimento moderno transforma a sua erudição clássica em nostalgia da Roma antiga: lá, onde quase dez séculos só viram pedras acumuladas

que a superstição popular povoou de demônios, vê Petrarca "1:"antiche mure" - e começa a chorar como um romântico do século XIX.

Petrarca descobriu o encanto sentimental das ruínas. De Sanctis observou muito bem que o poeta viu Roma igó de longe, do alto do Mont Ventoux e pelos olhos de um

provençal amoroso e melancólico. Mas nenhum trovador provençal foi capaz de sentimentos tão "modernos". Poisa mesma transformação que Petrarca impôs à maneira da

sua época de sentir a Antiguidade, essa mesma transformação se realizou em seu espírito no que respeita à poesia lírica de seu tempo. É, como já se disse, difícil

afastar os preconceitos modernos contra o grande lugar-comum erótico do Canzoniere. A comparação entre a erudição medieval e o humanismo sentimental de Petrarca

ajuda à compreensão da modernidade da sua poesia lírica; embora nas formas provençais e do "dolce stil novo", é Petrarca ó primeiro poeta lírico moderno e - o superlativo

se justifica - o mais original de todos os poetas líricos da literatura universal. Apenas, é preciso lê-lo sem comentário histórico e

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