Por que uma idéia de dois mil e quinhentos anos atrás pareceria hoje mais relevante do que nunca? Como os ensinamentos do Buda podem nos ajudar a resolver muitos problemas do mundo



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A mistura criativa do budismo tailandês

Enquanto houver monges vivendo alegremente na floresta, ao pé das árvores, o caminho daquele que despertou não será esquecido.

O BUDA, "DlGHA NlKAYA II"



Acredito que uma lâmina de grama não representa menos do que a trajetória das estrelas em um dia.

Walt Whitman, Leaves of Grass (Folhasderelva)

0 budismo às vezes é comparado com a água. A água é pura e clara, transparente. Mas é só acrescentar algum corante nela que fica tingida. Beba e verá que não tem gosto. Acrescente qualquer sabor e ela terá esse sabor. Agarre-a e ela se esvai entre seus dedos. Não tem forma própria. Derrame em um copo e ela adquire a forma do recipiente. E assim é também o budismo. O budismo é transparente: não tem dogma e é livre de qualquer ponto de vista teísta. No curso de sua história o budismo adquiriu a forma cultural de cada país recipiente para o qual migrou. Embora mantenha algumas características que o tornam reconhecível da era de Buda na índia, o budismo também adapta elementos exclusivos de cada novo lugar e de novos tempos. É maleável, transparente, flexível, inclusivo, não exclusivo. Essa adaptabilidade é a razão de

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o budismo ter obtido sucesso em todos os países e todas as culturas da Ásia.



Passei a entender com maior clareza o que isso significa na Tailândia, um país onde 94 por cento da população de 64 milhões é budista, um país tão comprometido com o budismo que pela constituição nacional o rei é obrigado a ser budista.

Aqui também tive de me confrontar com a diferença entre a separação norte-americana da Igreja e do estado e a completa integração das duas coisas em um país cujo nome foi trocado em 1949, de Sião (que em thai significa livre, portanto Terra dos Livres). A minha conclusão: os dois países são completamente hipócritas. Por exemplo, por que os presidentes norte-americanos terminam seus discursos à nação com: "Que Deus abençoe a América" - como se Deus pudesse aprovar as ações militares dos Estados Unidos em todo o mundo? E por que a expressão "sob Deus" foi acrescentada à Promessa de Fidelidade (Pledge of Allegiance) em 1954, de fato contradizendo a liberdade religiosa que garante a Constituição dos Estados Unidos? Os budistas, muçulmanos e hinduístas norte-americanos que não acreditam nesse Deus específico, ainda são norte-americanos patriotas. E como poderia a Tailândia, que exige que seus reis façam um retiro espiritual como parte de sua preparação, ter atacado a Birmânia e o Camboja repetidamente nos séculos XIII e XIV destruindo a cidade cambojana de Angkor Wat em 1389? Como carma é carma, o favor foi devolvido quando os burmeses invadiram o país que se chamava Sião no século XVI, e em 1766-1767 capturaram a capital de Ayuthaya e dizimaram seus templos e estátuas budistas.

Deixando de lado essas incoerências, desde a história mais antiga da Tailândia o budismo está inextricavelmente amarrado a esse belo país cercado por Mianmar (antes Birmânia), Malásia, Camboja e Laos. Aceitando a lenda de que o rei Ashoka enviou monges para "a terra dourada" no século III a.C, ou a prova arqueológica de que as comunidades monásticas budistas se estabeleceram a sudoeste do que é hoje Bangcoc no século IV d.C, o consenso é que o budismo que se desenvolveu aqui foi uma mistura de muitas práticas.

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"O budismo na Tailândia só pode ser descrito como eclético", escreve Donald Swearer, professor de religião no Swarthmore College, em The Encyclopedia of Buddhism. "Parte da influência cultural indiana na 'grande índia' dos elementos mahayana, tan-tra e escolas de budismo mais ortodoxas penetraram em diferentes regiões da Tailândia... Essas diversas expressões budistas, por sua vez, competiram com o bramanismo, o hinduísmo e com os animismos autóctones. Em vez de tender a uma linhagem sectária organizada, o amálgama religioso mais antigo na Tailândia e em outras partes do Sudeste da Ásia talvez seja melhor descrito como uma colagem sincretista de relíquias milagrosas e de monges carismáticos, dharmasastra hinduísta, divindades bramânicas, budas mahayana, práticas tântricas e as tradições do sânscrito sarvastiva-din e do pali theravada."

Eu não poderia reconhecer a metade do que ele estava citando, mas realmente vi alguns exemplos dessa mistura assim que cheguei. Não era nada parecido com o budismo que eu tinha visto nos Estados Unidos ou na Europa, na índia ou no Sri Lanka até o momento.

No meu primeiro dia, do lado de fora de Wat Maha Budre, um templo à margem do canal Saen Saep em Bangcoc, vi uma série de barraquinhas onde astrólogos e cartomantes de baralho taro e quiromantes anunciavam seus serviços, ao estilo feirante. Todas as pessoas com quem falei confirmaram ser budistas e disseram que os serviços que prestavam eram integralmente relacionados com o budismo.

- Como? - perguntei inúmeras vezes, mas ninguém pôde explicar.

O meu mediador, Prasong Kittinanthachai, ficou desconcertado pelo fato de eu ter ficado desconcertado com o fato de aquelas pessoas realmente pensarem que aquilo podia ser parte do budismo.

- O Buda tratava especialmente da realidade, de ver as coisas como elas são, não esse tipo de baboseira mística - disse eu, como se agora, depois de ter viajado por três países inteiros, eu fosse um renomado estudioso do budismo. Era, simplesmente, uma supo-

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sição racional e eu disse isso com essa convicção. No entanto, se o budismo vinha da índia, onde as origens da astrologia derivam da cultura védica que data de 3 mil a.C, então era bem possível que tivesse mesmo um lugar na compreensão cosmológica do Buda.



Prasong, um homem magro de 30 e tantos anos, que fazia mestrado de budismo, olhou para mim com uma expressão com a qual não consegui me acostumar nos dez dias que ele viajou comigo - as pálpebras abaixavam um pouco e indicavam ao mesmo tempo paciência e desprezo pela minha ignorância.

Na frente de Wat Maha Budre havia outro templo menor, e vi um monge sozinho dentro dele.

- Vamos conversar com ele - sugeri.

- Está bem, mas você não pode entrar de mãos vazias - avisou Prasong. - Tem de levar alguma espécie de dádiva.

Convenientemente, bem ao lado da porta do templo havia um vendedor de baldes brancos cheios de budas de plástico muito bregas e outras quinquilharias. Havia duas pilhas, e desconfiei de trapaça.

- Você está participando disso? - perguntei para Prasong. Ele olhou para mim daquele jeito. Comprei o mais barato e

entramos. Lá dentro a cena lembrava um cenário que Sam She-pard poderia ter criado depois de analisar demais os murais de Hieronymus Bosch. O monge mais desgrenhado que eu já tinha visto estava sentado numa almofada no meio do que parecia um depósito lotado de coisas em desordem e iluminado por uma lâmpada fluorescente. De um lado havia uma pequena TV que mal sintonizava uma estação que soava aos berros uma música pop anasalada da Tailândia. Atrás dele havia todos aqueles baldes brancos em duas pilhas também. Uma era dos baldes que ele havia recebido aquele dia. A outra eram os baldes que voltavam para a pilha de "entrada" do vendedor, para serem revendidos. Dessa vez dei para Prasong o meu olhar.

- Isso não importa - disse ele com certeza teológica. - É o gesto de dar alguma coisa para o respeitado mestre espiritual que é importante.

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Eu estava pensando que o dinheiro poderia ser melhor empregado pagando para ele um bom decorador de interiores e um gerente de marketing bem ladino.



O monge não disse nada de valor e na verdade até pareceu se aborrecer de ser recrutado para qualquer tipo de questionário sobre religião.

Dali nós fomos para outro pequeno templo na mesma praça, onde Prasong explicou o que parecia um jogo de pega-varetas. Aquilo era adivinhação sem o adivinho. Chama-se SiengSeam See. Numa pequena caixa há cerca de dez a vinte varetas numeradas, cada número corresponde a tiras de papel numeradas numa prancha. Você sacode a caixa cheia de varetas até uma cair (se cair mais de uma, tem de fazer de novo). Veja o número da vareta e procure o mesmo número nas tiras de papel, onde estão escritas breves previsões sobre a sua vida, amor ou trabalho. Parecia um cruzamento do jogo das moedas de I Ching, os biscoitos da sorte chineses e, ah, sim, pega-varetas - mas com implicações gigantescas, capazes de mudar sua vida. Experimentei. Eis a mensagem que tirei:

"Continue se empenhando, você receberá sua recompensa em breve. Caso com a lei não é favorável. O estado do paciente está piorando. Boa sorte e apoio estão chegando."

Era Eminem que eu ouvia canalizado pela estátua do Buda na frente do templo? Talvez houvesse algum fundo de verdade naquilo tudo afinal, a recompensa que chegaria logo para o trabalho árduo, o meu problema das costas, a esperança obstinada de que a sorte estaria chegando na forma de uma mulher linda e amorosa - tudo isso e mais, previsto com um movimento simples do pulso e uma vareta que cai. O budismo é ou não é espantoso? Procurei evitar julgar e quis deixar meu cinismo de lado. Mas vindo de uma cultura ocidental (insira o adjetivo implícito "racional" aqui), em que as teias de aranha da superstição tinham sido varridas (exceto os horóscopos em todos os jornais e nas revistas femininas), eu achava difícil aceitar aquilo, mais difícil ainda nos templos budistas. Mas para o povo tailandês, aquilo fazia parte da prática deles como, digamos, comer em ritual uma hóstia seca,


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fina e sem gosto e chamá-la de "o corpo de Cristo" fazia parte de outra religião.

O calor em Bangcoc era torturante. Saí do meu hotel bem cedo de manhã e levei um tapa na cara de uma toalha fumegante. Por sorte o meu hotel, o Four Seasons Bangkok, era um dos mais lindos em que eu tinha me hospedado, por isso procurei intercalar as minhas saídas com voltas freqüentes para o hotel, para o meu ecossistema com ar perfeitamente condicionado. Tinha resolvido extrapolar minha despesa de hotel na Tailândia e dar a mim mesmo umas miniférias no meio das minhas viagens. Esse hotel não poderia ser melhor escolha. Localizado bem no centro, próximo do Sky Train, tinha uma piscina comprida ao ar livre, um spa interno com uma cachoeira na Jacuzzi (para a qual as minhas costas se curvavam suavemente a fim de demonstrar minha gratidão) e um ótimo restaurante chamado Spice Market que servia pratos da culinária nacional. Além disso aqueles mimos top de linha do Four Seasons, aos quais não é nada difícil se apegar. Meu quarto de imprensa de luxo incluía acesso ao salão executivo. O que queria dizer que eu tinha uso ilimitado de acesso à Internet com alta velocidade, essencial para marcar a próxima etapa da minha viagem para Hong Kong, para a China e para o Japão. E se acertasse bem meus horários podia aproveitar o café da manhã, o almoço e o jantar do bufê de cortesia, com a atraente equipe do Four Seasons me paparicando o tempo todo. Apesar de ter estranhado ao ouvir histórias de antigos redatores da National Geographic que faziam entrevistas com nativos aborígines no bar de seus hotéis cinco estrelas em lugares como Perth, na Austrália, agora eu compreendia num nível bem básico a necessidade de às vezes garantir o nosso conforto material quando estamos viajando semanas e meses a fio, com ou sem PC.

Numa manhã bem cedo, depois de uma nadada, uma verificação de e-mails e uma porção saudável de gravlax, arrisquei sair do meu paraíso para um shopping ali perto cuja loja âncora tinha o nome bastante inapropriado de Zen. Fora o nome, eu podia

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estar no Livingston Mall em Nova Jersey, ou no Fashion Island Shopping Center em Newport Beach, na Califórnia. Os consumidores eram tão furiosos e tão ligados em liquidações como nos Estados Unidos, davam cotoveladas uns nos outros enquanto fuçavam as gôndolas de promoções. Não consegui detectar nenhuma vibração zen naquele lugar. Na verdade, Bangcoc inteira — uma cidade estrangulada pelo trânsito, que sofre de poluição sonora e do ar e que parece eternamente em obras - recendia a consumismo.



— Sim, nós cedemos para o consumismo também — disse Sulak Sivaraksa, fundador da Rede Internacional de Budistas Engajados (INEB), querendo implicar o país dele e o meu também na avenida Madisonização do budismo. - Não se pode evitar.

Ele deu como exemplo local o Wat Dhammakaya, propagandeado como o maior templo budista, propaganda essa que ouvi em referência a outras stupas por todo o mundo também.

- O maior e com a melhor acústica, com maior número de seguidores. Entendo que quanto mais contribuições você pagar, mais poderá olhar para o Buda lá. Essa mentalidade do budismo combina muito bem com a tendência para o consumismo e o capitalismo.

Um dos mais astutos observadores da Tailândia, Sivaraksa é, aos 71 anos de idade, autorizado a conjeturar sobre a sociologia do budismo tailandês. Junto com Thich Nhat Hanh, Bernie Glass-man, A. T. Ariyaratne e o Dalai Lama, ele é reconhecido como um dos proponentes mais importantes do mundo do budismo socialmente engajado. Proeminente e extrovertido intelectual e crítico social tailandês, ele foi professor, catedrático, editor, ativista e fundador de muitas organizações não governamentais, e já escreveu mais de cem livros e monografias. Em 1976, o Sião — como prefere chamar seu país, em vez da atual adaptação anglicizada - sofreu seu golpe mais sanguinário. Centenas de estudantes foram mortos e milhares foram presos. Os militares incendiaram todo o estoque de livros da livraria de Sivaraksa e expediram um mandado de prisão para ele. Ele foi forçado a permanecer no exílio por dois anos. Em 1984 foi preso sob acusação de criticar o rei, mas protestos

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internacionais acabaram conseguindo sua libertação. Em 1991 outro mandado foi expedido e ele partiu mais uma vez para o exílio político. Voltou para se defender no tribunal em 1992 e venceu em 1995. Foi duas vezes nomeado para receber o Prêmio Nobel e recebeu em 1995 o Right Livelihood Award, também conhecido como Prêmio Nobel Alternativo. Quando nos conhecemos no que tinha sido a fazenda da avó dele, hoje sede do seu trabalho internacional, ele acabava de retornar de um mês no Smith College em Northampton, Massachusetts, como professor convidado e participante de uma conferência com o título atraente de "Transbu-dismo: transmissão, tradução, transformação". A palestra dele foi: "Identidade budista no mundo moderno".



Alan Senauke, diretor do Buddhist Peace Fellowship (BPF), uma organização internacional com sede em Berkeley, Califórnia, havia recomendado que eu conhecesse Sivaraksa. Sua ONG Sathirakoses-Naga-pradeepa Foundation, foi fundada em 1968 para trabalhar com o povo em níveis nacional, regional e internacional questões de liberdade, direitos humanos, integridade da cultura tradicional, justiça social e proteção ambiental - tudo isso dentro de um contexto espiritual, na maior parte budista. Tornou-se o alicerce central para diversas organizações semelhantes, inclusive o INEB, fundado em 1987 como a primeira rede internacional budista que ligava os budistas engajados no mundo inteiro. O INEB trata de educação alternativa e ensino espiritual, questões de gênero, direitos humanos, ecologia, conceitos alternativos de desenvolvimento e ativismo.

Um homem atarracado, com a pele lisa e rosto angelical, Sivaraksa não é modesto.

— Sim, posso dizer que a idéia do Buddhist Peace Fellowship foi minha - ele me disse. - Desafiei a comunidade budista norte-americana: "Vocês sentem-se e fiquem calmos e calados. Vocês são seis por cento da população mundial, no entanto representam 47 por cento de todos os recursos do mundo. Se não fizerem nada pelos problemas do mundo, não estarão praticando o budismo."

O BPF começou em 1978 no Havaí, liderado por um grupo de zen-budistas norte-americanos e europeus "para servir como

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catalisador do budismo socialmente engajado... para ajudar os seres humanos a se libertarem do sofrimento que se manifesta nos indivíduos, nos relacionamentos, nas instituições e nos sistemas sociais", conforme explica a literatura do movimento. Os programas, publicações e os grupos praticantes do BPF se conectam a uma rede mundial de quatro mil membros e 45 capítulos.

Comparado ao BPF, ou à organização Sarvodaya, o INEB é extremamente descentralizado. Sivaraksa disse que manteve conscientemente reduzido o lado administrativo.

- Como sabe, eu critico tudo - ele começou a explicar. -Tenho grande respeito por Goenka. Vipassana é maravilhosa. Mas para mim o uso de gravadores para fazer discursos do Dhamma... bem, preciso de um professor em pessoa. Ele tem de sentir que precisa mudar com o tempo, ou então devia ter mais professores.

"O mesmo acontece com Ariyaratne. Ele faz sucesso numa base quantitativa, não qualitativa. Atinge muitas aldeias, mas também tem de assumir compromissos com o governo às vezes. Ele não desafia os monges que dizem que deviam atacar os tâmeis, por exemplo. Silencia quanto a isso. E claro que organiza marchas pela paz e todos os bons serviços sociais. Mas para mim, para ser realmente engajado, devemos sempre dizer a verdade.

"E Thich Nhat Hanh, que é meu amigo há trinta anos, agora quer uma Sangha maior. Ele tem sua Plum Village na França e seus centros em Vermont e na Califórnia agora. Mas possuindo tudo isso ele não pode mais criticar governo nenhum se quiser manter o funcionamento do seu movimento."

Ele estava embalado na crítica, apesar de poder considerá-la crítica construtiva ou desafiadora, mas eu queria desviar o assunto.

- E a que atribui esse crescimento do movimento budista no Ocidente? - perguntei.

- O Ocidente leva uma vida materialista... mas descobriu que o materialismo não é a resposta - disse ele. - E o conhecimento científico não é a resposta. Remete à filosofia cartesíana.

Ele estava se referindo ao "Cogito ergo sum" de Descartes... eu penso, logo existo. Mas de certa forma, não era isso que Buda também tinha dito? Em O Dhammapada, ele diz: "Nós somos o

que pensamos. Tudo que somos advém dos nossos pensamentos. Com os nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo."

Mas deixei Sivaraksa continuar sem fazer qualquer comentário.

— As pessoas pensam demais; o individualismo virou um exagero. Esquecemos de procurar algo espiritual.

Esse exagero respondeu à pergunta que eu não tinha feito. Como o Buda também poderia ter dito, ao escolher o caminho do meio a pessoa não chegaria ao extremo que acabou resultando na proliferação de tanto envolvimento pessoal no Ocidente.

— Mas por que budismo? Por que não outras religiões? - perguntei.

— Para mim - disse Sivaraksa, enfatizando o "mim" - o taoís-mo não se preocupa o bastante com a sociedade. O hinduísmo... bem, não estou em posição para citar já que é uma firma rival. -Ele deu uma risadinha. - Mas no hinduísmo é preciso ter fé. No budismo podemos ficar muito bem sem fé. E isso que mais atrai as pessoas que apesar de terem sido criadas para a fé, continuam não vendo nenhum benefício nisso.

— E quanto ao budismo tai? — perguntei.

— E triste - disse ele. - Fomos afastados das nossas tradições budistas. O meu mestre, Buddhadasa Bhikkhu, disse: "Nós seguimos demais o Ocidente; Sulak, se você quer fazer alguma coisa, plante o budismo corretamente no Ocidente e depois os tailande-ses irão atrás."

No dia seguinte vi um exemplo que provava que ele e seu mestre tinham razão. Eu já tinha estado em Boulder, Colorado, onde fica a Universidade Naropa, única faculdade budista de quatro anos reconhecida nos Estados Unidos, onde um dos membros do corpo docente tinha me dito que um grupo de acadêmicos tai-landeses havia ido para observar de que modo aquela instituição de ensino superior norte-americana integrava a meditação ao seu currículo. Lembro que achei estranho. Nós viajamos até o outro lado do mundo para trazer um pouco de sabedoria do Oriente e eles vêm para cá pela mesma sabedoria que poderiam obter com muito mais facilidade em casa, e menos diluída. Agora que eu já tinha aprendido alguma coisa sobre o budismo na Tailândia, pare-

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cia ainda mais estranho que o budismo não fizesse parte naturalmente do sistema educacional deles. É praticamente a religião nacional, mas ao mesmo tempo a separam. Eu vi as áreas delimitadas por cordas para monges nos aeroportos. As 227 restrições que precisam observar por definição faz com que eles e, portanto, qualquer "praticante sério" sejam segregados do resto da sociedade.



Estou agora sentado num salão recém-reformado na Universidade Suan Sunandha Rajabhat com cerca de oito acadêmicos dessa instituição, da Universidade Budista Mahachula e da Universidade Budista Mahamongkut, todas em Bangcoc. Representantes de cada uma delas tinham visitado Naropa por três semanas para estudar sua "educação contemplativa", como chamam.

Entrevistas coletivas costumam não dar certo, já que algumas pessoas sempre acabam dominando a conversa. Muitas vezes essas pessoas são apenas as mais barulhentas ou as que têm mais autoridade no local. Também é difícil conseguir que alguém reflita num nível bem mais pessoal diante dos colegas. Na Ásia há também o problema do gênero, que significa que as mulheres tendem a se submeter aos homens, mesmo quando ocupam postos mais importantes, e muitas são mais sábias do que seus companheiros do sexo masculino. Eu havia dito veementemente para Prasong que queria um encontro com apenas duas ou três pessoas de uma vez, mas isso não é fácil na Ásia. Os asiáticos estão acostumados a andar em grupos maiores. Além disso existe a questão da honra e do respeito. Os que não fossem convidados iam ficar ofendidos.

Por isso procurei me adaptar. Os tailandeses falam bem baixinho, estilo que eu pensava ser característico apenas de Prasong. Todos estavam bastante dispostos a explicar o budismo para mim, a começar pelo dia em que o Buda nasceu. Mas era muito difícil ouvir o que diziam. Por isso dei meu gravador para eles quando cada um falava - só que quando seguravam o aparelho, ficavam intimidados. O fato de compreender as diferenças culturais e de gênero não tinham me deixado mais compassivo. Prasong e eu trocamos nossos "olhares". Então, depois do almoço suntuoso e extravagante que tinham preparado em minha homenagem - disseram algumas vezes que era a primeira refeição servida naquele

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novo salão, e cada vez que repetiam isso eu me sentia mais culpado com a impaciência que tinha certeza haver telegrafado para todos eles -, agarrei um membro da faculdade que pensei ser o melhor para uma entrevista solo. Ele concordou, mas só se o patrão dele, o presidente da universidade, pudesse participar também.

Fiz a entrevista com Chaiwat Tantarangsee, professor assistente e diretor do departamento de treinamento e de serviços sociais da Suan Sunandha Rajabhat e com o presidente da universidade, o dr. Dilok Boonruengrod.

Perguntei por que tinham ido a Naropa.

- Sabemos que os norte-americanos são muito poderosos em termos de tecnologia e tudo o mais - disse o dr. Tantarangsee -, mas por que eles passaram a se interessar por algo tão simples e fácil?

Ele disse mesmo que meditação era "simples e fácil"?

- Na Tailândia ensinamos religião como matéria separada -continuou ele -, mas quando soubemos que Naropa integra esse ensino em tudo, achamos estranho. Eles convidam os monges tibetanos rinpoches para dar aulas. Os alunos entoam cânticos. E fazem meditação antes das aulas. Além disso, em Boulder eles têm educação budista como lojas de conveniência, em shoppings e centros comerciais. Na América do Norte o acesso é mais fácil.

Eu queria explicar para ele que Boulder é uma exceção, uma pequena Lhasa nas Rochosas do Colorado. Mas também é verdade que quase em qualquer lugar dos Estados Unidos hoje se pode ter aulas de meditação budista em cima de uma lanchonete 7-Eleven, ou participar de uma oficina de mandala ao lado de uma loja Best Guy.

Depois de observar a abordagem em Naropa, o dr. Tantarangsee voltou para casa muito entusiasmado com as possibilidades. Por isso ele fez uma experiência como parte de um exercício de aquecimento com uma das turmas para as quais dava aulas.

- Eu expliquei: "Hoje nós vamos fazer uma coisa que vocês nunca fizeram numa universidade antes..." "O que é?", todos quiseram saber. E eu continuei, levando-os a pensar comigo, como bom professor: "Nós podemos fazer qualquer coisa que realmente

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queremos, mas temos muita dificuldade de prestar atenção na nossa respiração. Vamos tentar respirar..."

A primeira vez que ele sugeriu isso numa turma de redação, os alunos olharam para ele como se estivesse brincando. Ele teve o cuidado de não dar o nome budista do exercício, que é anapana sati, "mas as pessoas já adivinhavam o que eu ia fazer", ele lembrou.

- Eu disse para os alunos que aquilo não era só para os monges. Eles tentaram, talvez só para me agradar. O resultado é que vejo mais paz mental e a capacidade de concentração deles melhora, aprendem mais. Até eu! Penso nos alunos mais como indivíduos, como seres humanos, e não me zango com eles. Isso me ajuda a ter paciência.

Ele quase repetiu o que o guarda da prisão de Tihar em Nova Deli tinha dito.

O presidente Boonruengrod, por sua vez, ecoou os comentários de Sivaraksa.

- Consideramos a América do Norte como modelo. Então por que não considerá-la quanto ao budismo? Nossos estudantes seguem as modas norte-americanas bem de perto, por isso essa era a nossa estratégia, dizer para eles: "Esse é o jeito norte-americano."

O chamado jeito norte-americano em Naropa eles tinham pegado emprestado do Oriente. Agora os tailandeses o estavam pegando de volta. O presidente Boonruengrod disse que tinha iniciado sessões de tempestades cerebrais na faculdade com meditações breves, e com uma recepção favorável, acrescentou, com um tom de voz espantado. E o dr. Tantarangsee agora determina que seus alunos escrevam ensaios seguindo quatro perguntas que ele achou que eram coerentes com um ponto de vista budista. Eu tive de rir por dentro quando ele recitou as perguntas.

Quem é você?

De onde você veio?

O que você está fazendo?

Para onde você vai?

Para mim mesmo lancei uma quinta pergunta: será que há um eco aqui?

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Eu tinha mais uma parada antes de seguir para o norte da Tailândia. Era Wat Bang Phra, mais conhecido como o templo da Tatuagem, na cidade de Nakorn Chaisrí, a cerca de uma hora de carro para oeste de Bangcoc.

No local havia um conjunto de templos. Em um deles cerca de 15 homens jovens, que pareciam ter entre 17 e 30 anos, se amontoavam numa varanda, de cócoras e sentados nos degraus. Aquele grupo de caras durões, Prasong explicou, vive à margem da sociedade tailandesa - são traficantes de drogas, pequenos criminosos, cafetões. Eles esperavam sua vez, os olhos vazios de tanto medo, observando um monge encarapitado numa plataforma de metro e meio de altura trabalhando em um homem na ponta da varanda. Com um cigarro pendurado no canto da boca, o monge mergulhava o que parecia uma agulha rombuda de uns trinta centímetros num pote com tinta muito escura e recomeçava a espetar sua tela: a pele das costas do cliente. Dei a volta para ver melhor e fiquei atrás do monge. Um fiozinho de sangue escorria da região furada e avermelhada.

O desenho que o monge estava gravando parecia ter letras de algum tipo. Depois me disseram que eram palavras das escrituras budistas. Outras imagens naquele homem e nos outros - soube que eram todos homens porque monges não encostam em mulheres - incluíam tigres, cabeças de dragão, vários deuses hindus como Hanuman, o deus macaco, Ganesh, o deus elefante, o fáli-co linga do deus destruidor Shiva, assim como hieróglifos, números especiais, letras e outros desenhos indecifráveis. Alguns daqueles homens eram cobertos de tinta preta do pescoço até a cintura.

Essa prática remonta às raízes históricas da região de animis-mo, quando imbuíam os animais com aspectos da natureza humana e com capacidades psíquicas sobre-humanas, e o contrário também: imbuíam os seres humanos com algo da ferocidade dos animais e outros traços. Dizem que os khmers que colonizaram aquela região usavam as tatuagens desde o século I d.C. Documentos históricos mostram que Rama I, rei da Tailândia, usava tatuagens como marcas de identificação para os homens

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Eu tinha mais uma parada antes de seguir para o norte da Tailândia. Era Wat Bang Phra, mais conhecido como o templo da Tatuagem, na cidade de Nakorn Chaisri, a cerca de uma hora de carro para oeste de Bangcoc.



No local havia um conjunto de templos. Em um deles cerca de 15 homens jovens, que pareciam ter entre 17 e 30 anos, se amontoavam numa varanda, de cócoras e sentados nos degraus. Aquele grupo de caras durões, Prasong explicou, vive à margem da sociedade tailandesa - são traficantes de drogas, pequenos criminosos, cafetões. Eles esperavam sua vez, os olhos vazios de tanto medo, observando um monge encarapitado numa plataforma de metro e meio de altura trabalhando em um homem na ponta da varanda. Com um cigarro pendurado no canto da boca, o monge mergulhava o que parecia uma agulha rombuda de uns trinta centímetros num pote com tinta muito escura e recomeçava a espetar sua tela: a pele das costas do cliente. Dei a volta para ver melhor e fiquei atrás do monge. Um fiozinho de sangue escorria da região furada e avermelhada.

O desenho que o monge estava gravando parecia ter letras de algum tipo. Depois me disseram que eram palavras das escrituras budistas. Outras imagens naquele homem e nos outros - soube que eram todos homens porque monges não encostam em mulheres - incluíam tigres, cabeças de dragão, vários deuses hindus como Hanuman, o deus macaco, Ganesh, o deus elefante, o fáli-co linga do deus destruidor Shiva, assim como hieróglifos, números especiais, letras e outros desenhos indecifráveis. Alguns daqueles homens eram cobertos de tinta preta do pescoço até a cintura.

Essa prática remonta às raízes históricas da região de animis-mo, quando imbuíam os animais com aspectos da natureza humana e com capacidades psíquicas sobre-humanas, e o contrário também: imbuíam os seres humanos com algo da ferocidade dos animais e outros traços. Dizem que os khmers que colonizaram aquela região usavam as tatuagens desde o século I d.C. Documentos históricos mostram que Rama I, rei da Tailândia, usava tatuagens como marcas de identificação para os homens

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