Publicado originalmente em 1902. Livro Digital nº 924 1ª Edição São Paulo, 2017. Romance Literatura Brasileira. José Pereira da Graça Aranha



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Canaa - Graca Aranha - IBA MENDES


partida de manilha? 
Paulo Maciel não temia o tempo e, ao contrário dos companheiros, 
era mais feliz quando o deixavam só com os seus pensamentos. 
– Não conte comigo, doutor. Estou cansado e vou deitar-me. Boa 
noite; eu os espero no quarto. 
Os outros, logo que Maciel partiu, entraram a detraí-lo. 
– É uma pena – disse Itapecuru –, não dá para nada. 
– Também pouco se perde – acrescentou Brederodes. – Presunção 
não lhe falta, mas, no fim de contas, que tem feito? 


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– Sim, desembuche para vermos o que tem tão escondido, 
escarneceu o escrivão. – Uma coisa afirmo: nada sabe do ofício. Eu 
podia contar impagáveis... Se um dia escrever para a Capital, para 
os jornais, havemos de rir muito. Será bonito e asseado. 
– O que ele sabe é descompor o Brasil, maldizer de tudo o que é 
nosso – disse o Dr. Itapecuru, acentuando a frase com vistas ao 
escrivão Pantoja, que ajuntou por sua vez: 
– Mas o dinheirinho no fim do mês não se enjeita, esse, nem por ser 
brasileiro, fede. 
– Pode ser que quando isto for da Alemanha receba o dobro dos 
seus patrões – disse o promotor. 
– É verdade – insinuou Itapecuru – que não larga a gramática 
alemã? 
– Sim, está se preparando para nos governar – respondeu 
Brederodes. 
Riram e ergueram-se para jogar. O juiz de direito trazia sempre um 
baralho de cartas na mala para essas excursões judiciárias em que 
nada tinha a fazer, e que acompanhava por divertimento. 
Os três jogaram algum tempo, até que o promotor, pretextando 
cansaço, abandonou o seu lugar. 
– Neste caso, capitão, desafio-o para uma bisca – disse pressuroso o 
juiz de direito, não querendo desistir de jogar, com aquele vago 
receio do tédio, que tanto o perseguia. 
– Pois sim, doutor, aguente-se para uma sova – aquiesceu Pantoja 
por entre baforadas da fumaça de cigarro. 
Brederodes no terreiro chamava em voz baixa o meirinho: 
– Neves, Neves! 


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– Pronto, seu doutor. 
O oficial de justiça estava a cochilar, deitado na relva, e ergueu-se 
meio atordoado. O promotor deu-lhe uma ordem que ele partiu a 
cumprir. Brederodes, ficando só, passeava nervoso, agitado de 
desejos lúbricos. Não tardou o oficial de justiça. 
– Então? – perguntou o promotor, quando o viu ainda de longe. 
– Qual! seu doutor. Não vejo jeito. 
– Como assim? 
– A bicha é arisca como quê. Só se Vossa Senhoria visse o nojo com 
que me olhou... Nem me respondeu, como se ainda tivesse o que 
perder... Vossa Senhoria não reparou como já vai bem adiantada? 
Brederodes ficou colérico. Uma fluxão de sangue subiu-lhe à cabeça, 
rangeu os dentes, e os olhos na noite escura brilharam felinos e 
maus. 
– Ela me paga. Deixe estar. Ainda que tudo isto aqui arrebente... 
Corja de alemães! 
– Vossa Senhoria não se zangue... Vou ver se ainda dou uma volta 
no caso. – E desapareceu na direção da casa, fugindo ao desabafo do 
promotor. 
Este ficou só, numa meia alucinação, ruminando vinganças. Na casa 
tudo se aquietara. Os dois parceiros, mortos de sono, tinham-se 
resignado a deixar o baralho e estavam deitados nos quartos; os 
colonos não davam sinal de vida; o meirinho não voltara. Farto de 
esperar, e um pouco acalmado no seu furor, Brederodes resolveu vir 
para o quarto. Aí o seu companheiro, que era o escrivão, ressonava. 
Ele deitou-se de manso e pôs-se à espera de que a noite avançasse. 
Tornava-se-lhe o sangue impetuoso de desejos, e na mente nevrótica 
passavam perturbadoras miragens sensuais. Levantou-se sorrateiro 
e, apenas alumiado pela frouxa luz de um candeeiro de azeite que 


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estava na sala, seguiu pela casa adentro; e quando na volta do 
corredor o clarão se acabou, às apalpadelas foi tateando as paredes. 
Ao dar com alguma porta, punha-se à escuta, para ver se, por um 
movimento, um sinal qualquer, reconhecia o quarto de Maria. E um 
momento acreditou descobri-lo... Tentou abrir a porta. Mas esta 
estava fechada a chave. “Miserável” pensou, com raiva o promotor. 
Um impulso de arrombar a porta apoderou-se dele, mas um vago 
vislumbre da consciência da sua falsa posição tolheu-lhe o 
movimento. 
– Pode ser que não seja aqui... Isto naturalmente é o quarto dos 
velhos. 
E com esta esperança passou adiante nas trevas. Outra porta estava 
em frente. Escutou; nada... Pôs a mão no trinco, a tramela levantou-
se e com a pressão a porta abriu-se, rangendo. Brederodes palpitou 
alvoroçado. De dentro ouviu um rumor de alguém que acordara, e 
uma voz assustada de velha perguntar: 
– Quem é? És tu, Maria? 
Brederodes recuou para o corredor e deixando a porta aberta 
deslizou nas pontas dos pés, num instinto salvador que lhe fazia 
adivinhar no escuro o caminho do quarto. 
No dia seguinte, às nove da manhã, o meirinho anunciava ao toque 
de campainha a audiência dos inventários dos vizinhos de Kraus.
Na sala, o juiz municipal e o escrivão estavam no seu posto, à mesa; 
o promotor e o juiz de direito à janela conversavam, voltados para 
dentro; em pé, encostados à parede, duas mulheres e um homem, 
rodeados de crianças, seguiam atemorizados a cena, esperando ser 
chamados. 
– Sr. Dr. Brederodes, Vossa Senhoria tem de funcionar como curador 
de órfãos nos três inventários. Há uns desvalidos que precisam da 
proteção legal de Vossa Senhoria – disse o escrivão, motejando. 


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O promotor teve um risozinho de satisfação e veio sentar-se à mesa. 
– Não é possível arranjar alguma fatia para mim nesta festa? – 
perguntou o Dr. Itapecuru, num sorriso idiota. 
– Vossa Senhoria sabe que é depois, no fim do negócio, que se 
precisa da sua bênção. Todos comerão do bolo... 
– Bem, neste caso, como nada tenho a fazer, enquanto os senhores 
preparam o prato, vou dar um giro aí fora. 
Pondo o chapéu, assestou o monóculo nos intimados e saiu 
majestoso, seguido pelo sorriso zombador dos que ficavam. 
– Viúva Schultz! – chamou Pantoja. 
Depois de alguma hesitação, uma camponesa alta, ainda moça, se 
aproximou. 
– Há quanto tempo seu marido é morto? – perguntou o escrivão, 
iniciando o interrogatório diante da apatia do juiz municipal. 
– Há dois anos. 
– Sempre o mesmo... Ninguém cumpre a lei; aqui todos herdam sem 
a menor cerimônia... Isso vai acabar. Juro. 
Em seguida, passou a tomar as primeiras declarações da viúva, que, 
triste e subjugada por aquele aparato judiciário, ia respondendo 
docilmente a tudo. O juiz municipal e o promotor, despreocupados 
da audiência, levantaram-se e foram entretidos para a janela. A 
mulher a cada passo sofria descomposturas insolentes de Pantoja, e 
um imenso pejo a assaltava. 
– Quantos pés de café tem a sua colônia? 
– Quinhentos... 
– Só? Não minta... senão temos conversa no Cachoeiro. 


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– Mas, senhor, pode ser que tenha mais ou menos, não contei um 
por um, meu defunto marido avaliava em quatrocentos... eu plantei 
uns cem nestes dois anos. 
– Bem, eu arredondo a cifra. 
E calado, sem nada dizer à interessada, que, além de tudo, não sabia 
ler o português, escreveu: “Mil e quinhentos pés de café.” 
Continuava Pantoja a lançar os termos do inventário, segundo o seu 
velho processo de tudo fazer ele mesmo, aumentando 
descaradamente o valor dos bens para acrescer os seus lucros. 
Depois de algum tempo, disse à colona: 
– Agora pode ir. Daqui a duas semanas apareça no Cachoeiro, no 
meu Cartório, para receber os seus papéis. 
– Espere lá!... Que desembaraço! Ainda não lhe disse o principal – 
observou com acento escarninho o “maracajá”. 
Num papel escreveu várias parcelas, somou-as resmungando e disse 
consigo afinal: 
– Cento e oitenta mil-réis. – Está direito; olhe leve consigo o dinheiro 
das custas. Trezentos mil-réis. Ouviu? 
– Trezentos mil-réis!... Trezentos mil-réis!... Meu senhor! 
– Não tem meu senhor nem nada; aqui não se faz esmola... e dê-se 
por muito feliz, porque não houve demanda. Se tivesse de meter um 
advogado, é que havia de ser bonito... Trezentos mil-réis. Nada de 
conversa e bico calado. Se eu souber que vosmecê andou batendo a 
boca pelo mundo, tem de se haver comigo. 
A colona lançou olhos de súplica para os dois magistrados, que 
continuavam indiferentes a sua palestra. Sem um apoio, esmagada, 
saiu cabisbaixa da sala da audiência. Pantoja chamou o colono, que 


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esperava a sua vez de ser apregoado. E depois de repetir com ele a 
mesma coisa, passou a se ocupar da última intimada. 
A mulher, vestida de luto, muito baixa e ainda jovem, com um ar 
apatetado e longínquo, o ar da miséria, aproximou-se. Uma filha de 
cinco anos segurava-lhe o vestido, e ela carregava ao colo outra, cuja 
cabeça dourada se realçava radiante por entre a pretidão das roupas 
da mãe. 
Paulo Maciel, cansado de estar em pé, veio sentar-se no seu lugar e 
interessou-se um pouco por esse grupo. 
– É viúva há pouco tempo? – perguntou ele. 
– Dois meses... – respondeu a moça. 
– E desde quando está no Brasil? 
– Há um ano apenas... Meu marido, que já vinha doente do peito, 
não durou muito... 
– Estavam principiando a vida... Não é verdade? 
– Apenas houve tempo de levantar a casa, fazer o roçado para a 
plantação... Não se plantou nada. 
– É triste! E como vive você? – inquiriu compassivo. A mulher ficou 
pensativa sem responder. 
– Naturalmente tem algum amigo que substitui o defunto – disse 
Pantoja, para se vingar do interesse do juiz, o que ele, habituado a 
fazer tudo, considerava como uma invasão dos seus privilégios. 
Paulo Maciel, para evitar uma discussão com o subalterno, no fundo 
de todos eles temido, fingiu não ouvir. 
A colona, afinal, disse: 


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– Estou em trato para vender a minha casa e vou me empregar como 
criada em outra colônia. 
– No fim de contas, seu Pantoja – opinou Maciel –, não há inventário 
a fazer. É melhor mandá-la embora. 
– Como é isto? – disse trêmulo o escrivão. – Vossa Senhoria tem 
competência para dispensar na Lei? Ora, essa é muito boa...
Que diz a isso, Dr. Brederodes, Vossa Senhoria é o principal 
interessado... Trata-se de órfãos. 
– Não concordo na dispensa do inventário – acudiu vivamente o 
promotor... – E se o senhor não quer fazer ex-officio, Dr. juiz 
municipal, eu requeiro. 
Paulo Maciel ficou sem saber o que dizer diante de tais atitudes. O 
seu sentimento era suspender, prender este escrivão insolente, seu 
subordinado legal; era dispensar o inventário, era ainda por cima 
dar dinheiro do seu bolso à desgraçada e mandá-la embora, 
envolvendo-a num clarão de bondade. Mas para isso que soma de 
energia, de fluido nervoso, não precisava de consumir!... Valeria a 
pena? As suas poucas forças o traíram, e a inteligência fina, distinta 
descortinou-lhe, pérfida, o desenrolar de uma luta com os seus 
colegas, com esse escrivão chefe político, mandão da localidade, luta 
inglória em que ele não se queria estragar... Os juízes passam e os 
escrivães ficam. 
– Está bom, cheguemos a um acordo. Faça-se apenas um 
arrolamento sumário dos bens, em vez de um inventário formal – 
propôs com uma voz fatigada. Pantoja mediu-o triunfante. 
– Isto é uma novidade para iludir a Lei... aqui está o formulário 
oficial e Vossa Senhoria não me mostra esses arrolamentos. 
Inventário é inventário, senhor doutor – respondeu-lhe o escrivão, 
apossando-se da situação que o superior lhe abandonava. 


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– Homem, deixe de luxos, seu Maciel – disse o promotor. – Que mal 
há em fazer-se o inventário? 
– Que mal?... obrigar esta pobre mulher a pagar mais custas... 
É pouco? 
– As custas são o azeite da máquina do foro... – objetou alegremente 
Pantoja. 
E o inventário foi feito como os outros, com as mesmas extorsões e 
violências. No fim, quando o escrivão intimou a colona a que lhe 
desse duzentos mil-réis, esta começou a chorar. 
– Deixemos de cenas... Querem obrigar a Justiça a trabalhar de 
graça... Era só o que faltava. 
– Mas não posso arranjar tanto dinheiro. 
– Venda a casa. 
– Sim, meu senhor, vou vender o que tenho para pagar as dívidas de 
meu marido, dívidas da moléstia, e depois trabalhar para outras 
novas. 
– Primeiro a Justiça... Se não quiser nos pagar, não venderá a casa 
nem o roçado; eu prendo os papéis, e agora vamos ver. 
– Capitão Pantoja... – ia dizendo o juiz municipal. 
– Deixe o caso comigo – atalhou o escrivão, colérico e intratável. – 
Vossa Senhoria é rapaz, não entende disto, veio ontem ao mundo, 
mas a mim ninguém me embaça... Lágrimas!... Todas elas choram. 
E voltando-se para a colona: 
– Vá, a mulher moça não falta dinheiro... 
Deu uma risada seca. Atordoada como uma sonâmbula, a colona 
saiu, arrastando os filhos. 


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Depois do almoço, os animais estavam selados para a partida. O dia 
era abafadiço e dominado pelo sol, que mantinha sempre com a luz 
poderosa um grande silêncio. Os juízes vieram para montar, 
ajudados pelo meirinho e pelo dono da casa. Pantoja chegou-se ao 
grupo e disse ao promotor, apontando o colono: 
– Ainda não tive a minha conversa aqui com o amigo. 
E batendo no ombro de Franz Kraus, que o fitou espantado da 
intimidade, acrescentou num gesto de irônica cortesia: 
Muito obrigado pela hospedagem, camarada... mas ainda falta 
alguma coisa. 
– Que é? – interrogou inquieto o colono. 
– As nossas custas, meu amigo. Você pode... E por isso dê-nos logo. 
Está me cheirando mal o fiado... vá buscar... Quatrocentos mil-réis. 
O homem vacilou, como para cair. Uma vertigem o ia tomando; na 
garganta a voz morreu-lhe num espasmo. O escrivão empurrou-o de 
manso, dizendo-lhe zombeteiro: 
– Vá, amigo, não se espante. Olhe que o negócio podia ser pior... 
Advogados, demandas, penhoras... 
Sob aquela pressão, o colono foi caminhando automaticamente para 
a casa. 
– Bravo, capitão, o senhor é de força – observou lisonjeiro o juiz de 
direito. 
– Ainda não viram nada – respondeu o escrivão, estimulado. Depois 
de alguma demora, que os ia impacientando, apareceu o velho 
Kraus. Tinha os olhos vermelhos, as faces inchadas e rubras. 
Chorara. 


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Pantoja recebeu o dinheiro e contou. O colono olhava-o, mudo e 
abatido. 
– Muito bem. Agora tudo está em ordem. Fiquemos bons amigos. 
Procure os papéis no cartório, no fim do mês. 
E montou. A cavalgada partiu. 
– Parabéns – disse Itapecuru a Paulo Maciel; – está chovendo na sua 
roça. 
O juiz municipal, sem dar-lhe resposta, olhou-o com um grande 
nojo. 
Em pé, no meio do terreiro, de chapéu na mão, a cabeça ao sol, o 
colono via com os olhos desvairados a Justiça sumir-se na estrada... 
E quando Ela desapareceu e tudo voltou ao sossego profundo, ficou 
ele longo tempo com a vista pregada na mesma direção... 
Subitamente, numa raiva imensa e cobarde, murmurou olhando 
medroso para os lados: 
– Ladrões! 

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