partida de manilha?
Paulo Maciel não temia o tempo e, ao contrário dos companheiros,
era mais feliz quando o deixavam só com os seus pensamentos.
– Não conte comigo, doutor. Estou cansado e vou deitar-me. Boa
noite; eu os espero no quarto.
Os outros, logo que Maciel partiu, entraram a detraí-lo.
– É uma pena – disse Itapecuru –, não dá para nada.
– Também pouco se perde – acrescentou Brederodes. – Presunção
não lhe falta, mas, no fim de contas, que tem feito?
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– Sim, desembuche para vermos o que tem tão escondido,
escarneceu o escrivão. – Uma coisa afirmo: nada sabe do ofício. Eu
podia contar impagáveis... Se um dia escrever para a Capital, para
os jornais, havemos de rir muito. Será bonito e asseado.
– O que ele sabe é descompor o Brasil, maldizer de tudo o que é
nosso – disse o Dr. Itapecuru, acentuando a frase com vistas ao
escrivão Pantoja, que ajuntou por sua vez:
– Mas o dinheirinho no fim do mês não se enjeita, esse, nem por ser
brasileiro, fede.
– Pode ser que quando isto for da Alemanha receba o dobro dos
seus patrões – disse o promotor.
– É verdade – insinuou Itapecuru – que não larga a gramática
alemã?
– Sim, está se preparando para nos governar – respondeu
Brederodes.
Riram e ergueram-se para jogar. O juiz de direito trazia sempre um
baralho de cartas na mala para essas excursões judiciárias em que
nada tinha a fazer, e que acompanhava por divertimento.
Os três jogaram algum tempo, até que o promotor, pretextando
cansaço, abandonou o seu lugar.
– Neste caso, capitão, desafio-o para uma bisca – disse pressuroso o
juiz de direito, não querendo desistir de jogar, com aquele vago
receio do tédio, que tanto o perseguia.
– Pois sim, doutor, aguente-se para uma sova – aquiesceu Pantoja
por entre baforadas da fumaça de cigarro.
Brederodes no terreiro chamava em voz baixa o meirinho:
– Neves, Neves!
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– Pronto, seu doutor.
O oficial de justiça estava a cochilar, deitado na relva, e ergueu-se
meio atordoado. O promotor deu-lhe uma ordem que ele partiu a
cumprir. Brederodes, ficando só, passeava nervoso, agitado de
desejos lúbricos. Não tardou o oficial de justiça.
– Então? – perguntou o promotor, quando o viu ainda de longe.
– Qual! seu doutor. Não vejo jeito.
– Como assim?
– A bicha é arisca como quê. Só se Vossa Senhoria visse o nojo com
que me olhou... Nem me respondeu, como se ainda tivesse o que
perder... Vossa Senhoria não reparou como já vai bem adiantada?
Brederodes ficou colérico. Uma fluxão de sangue subiu-lhe à cabeça,
rangeu os dentes, e os olhos na noite escura brilharam felinos e
maus.
– Ela me paga. Deixe estar. Ainda que tudo isto aqui arrebente...
Corja de alemães!
– Vossa Senhoria não se zangue... Vou ver se ainda dou uma volta
no caso. – E desapareceu na direção da casa, fugindo ao desabafo do
promotor.
Este ficou só, numa meia alucinação, ruminando vinganças. Na casa
tudo se aquietara. Os dois parceiros, mortos de sono, tinham-se
resignado a deixar o baralho e estavam deitados nos quartos; os
colonos não davam sinal de vida; o meirinho não voltara. Farto de
esperar, e um pouco acalmado no seu furor, Brederodes resolveu vir
para o quarto. Aí o seu companheiro, que era o escrivão, ressonava.
Ele deitou-se de manso e pôs-se à espera de que a noite avançasse.
Tornava-se-lhe o sangue impetuoso de desejos, e na mente nevrótica
passavam perturbadoras miragens sensuais. Levantou-se sorrateiro
e, apenas alumiado pela frouxa luz de um candeeiro de azeite que
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estava na sala, seguiu pela casa adentro; e quando na volta do
corredor o clarão se acabou, às apalpadelas foi tateando as paredes.
Ao dar com alguma porta, punha-se à escuta, para ver se, por um
movimento, um sinal qualquer, reconhecia o quarto de Maria. E um
momento acreditou descobri-lo... Tentou abrir a porta. Mas esta
estava fechada a chave. “Miserável” pensou, com raiva o promotor.
Um impulso de arrombar a porta apoderou-se dele, mas um vago
vislumbre da consciência da sua falsa posição tolheu-lhe o
movimento.
– Pode ser que não seja aqui... Isto naturalmente é o quarto dos
velhos.
E com esta esperança passou adiante nas trevas. Outra porta estava
em frente. Escutou; nada... Pôs a mão no trinco, a tramela levantou-
se e com a pressão a porta abriu-se, rangendo. Brederodes palpitou
alvoroçado. De dentro ouviu um rumor de alguém que acordara, e
uma voz assustada de velha perguntar:
– Quem é? És tu, Maria?
Brederodes recuou para o corredor e deixando a porta aberta
deslizou nas pontas dos pés, num instinto salvador que lhe fazia
adivinhar no escuro o caminho do quarto.
No dia seguinte, às nove da manhã, o meirinho anunciava ao toque
de campainha a audiência dos inventários dos vizinhos de Kraus.
Na sala, o juiz municipal e o escrivão estavam no seu posto, à mesa;
o promotor e o juiz de direito à janela conversavam, voltados para
dentro; em pé, encostados à parede, duas mulheres e um homem,
rodeados de crianças, seguiam atemorizados a cena, esperando ser
chamados.
– Sr. Dr. Brederodes, Vossa Senhoria tem de funcionar como curador
de órfãos nos três inventários. Há uns desvalidos que precisam da
proteção legal de Vossa Senhoria – disse o escrivão, motejando.
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O promotor teve um risozinho de satisfação e veio sentar-se à mesa.
– Não é possível arranjar alguma fatia para mim nesta festa? –
perguntou o Dr. Itapecuru, num sorriso idiota.
– Vossa Senhoria sabe que é depois, no fim do negócio, que se
precisa da sua bênção. Todos comerão do bolo...
– Bem, neste caso, como nada tenho a fazer, enquanto os senhores
preparam o prato, vou dar um giro aí fora.
Pondo o chapéu, assestou o monóculo nos intimados e saiu
majestoso, seguido pelo sorriso zombador dos que ficavam.
– Viúva Schultz! – chamou Pantoja.
Depois de alguma hesitação, uma camponesa alta, ainda moça, se
aproximou.
– Há quanto tempo seu marido é morto? – perguntou o escrivão,
iniciando o interrogatório diante da apatia do juiz municipal.
– Há dois anos.
– Sempre o mesmo... Ninguém cumpre a lei; aqui todos herdam sem
a menor cerimônia... Isso vai acabar. Juro.
Em seguida, passou a tomar as primeiras declarações da viúva, que,
triste e subjugada por aquele aparato judiciário, ia respondendo
docilmente a tudo. O juiz municipal e o promotor, despreocupados
da audiência, levantaram-se e foram entretidos para a janela. A
mulher a cada passo sofria descomposturas insolentes de Pantoja, e
um imenso pejo a assaltava.
– Quantos pés de café tem a sua colônia?
– Quinhentos...
– Só? Não minta... senão temos conversa no Cachoeiro.
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– Mas, senhor, pode ser que tenha mais ou menos, não contei um
por um, meu defunto marido avaliava em quatrocentos... eu plantei
uns cem nestes dois anos.
– Bem, eu arredondo a cifra.
E calado, sem nada dizer à interessada, que, além de tudo, não sabia
ler o português, escreveu: “Mil e quinhentos pés de café.”
Continuava Pantoja a lançar os termos do inventário, segundo o seu
velho processo de tudo fazer ele mesmo, aumentando
descaradamente o valor dos bens para acrescer os seus lucros.
Depois de algum tempo, disse à colona:
– Agora pode ir. Daqui a duas semanas apareça no Cachoeiro, no
meu Cartório, para receber os seus papéis.
– Espere lá!... Que desembaraço! Ainda não lhe disse o principal –
observou com acento escarninho o “maracajá”.
Num papel escreveu várias parcelas, somou-as resmungando e disse
consigo afinal:
– Cento e oitenta mil-réis. – Está direito; olhe leve consigo o dinheiro
das custas. Trezentos mil-réis. Ouviu?
– Trezentos mil-réis!... Trezentos mil-réis!... Meu senhor!
– Não tem meu senhor nem nada; aqui não se faz esmola... e dê-se
por muito feliz, porque não houve demanda. Se tivesse de meter um
advogado, é que havia de ser bonito... Trezentos mil-réis. Nada de
conversa e bico calado. Se eu souber que vosmecê andou batendo a
boca pelo mundo, tem de se haver comigo.
A colona lançou olhos de súplica para os dois magistrados, que
continuavam indiferentes a sua palestra. Sem um apoio, esmagada,
saiu cabisbaixa da sala da audiência. Pantoja chamou o colono, que
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esperava a sua vez de ser apregoado. E depois de repetir com ele a
mesma coisa, passou a se ocupar da última intimada.
A mulher, vestida de luto, muito baixa e ainda jovem, com um ar
apatetado e longínquo, o ar da miséria, aproximou-se. Uma filha de
cinco anos segurava-lhe o vestido, e ela carregava ao colo outra, cuja
cabeça dourada se realçava radiante por entre a pretidão das roupas
da mãe.
Paulo Maciel, cansado de estar em pé, veio sentar-se no seu lugar e
interessou-se um pouco por esse grupo.
– É viúva há pouco tempo? – perguntou ele.
– Dois meses... – respondeu a moça.
– E desde quando está no Brasil?
– Há um ano apenas... Meu marido, que já vinha doente do peito,
não durou muito...
– Estavam principiando a vida... Não é verdade?
– Apenas houve tempo de levantar a casa, fazer o roçado para a
plantação... Não se plantou nada.
– É triste! E como vive você? – inquiriu compassivo. A mulher ficou
pensativa sem responder.
– Naturalmente tem algum amigo que substitui o defunto – disse
Pantoja, para se vingar do interesse do juiz, o que ele, habituado a
fazer tudo, considerava como uma invasão dos seus privilégios.
Paulo Maciel, para evitar uma discussão com o subalterno, no fundo
de todos eles temido, fingiu não ouvir.
A colona, afinal, disse:
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– Estou em trato para vender a minha casa e vou me empregar como
criada em outra colônia.
– No fim de contas, seu Pantoja – opinou Maciel –, não há inventário
a fazer. É melhor mandá-la embora.
– Como é isto? – disse trêmulo o escrivão. – Vossa Senhoria tem
competência para dispensar na Lei? Ora, essa é muito boa...
Que diz a isso, Dr. Brederodes, Vossa Senhoria é o principal
interessado... Trata-se de órfãos.
– Não concordo na dispensa do inventário – acudiu vivamente o
promotor... – E se o senhor não quer fazer ex-officio, Dr. juiz
municipal, eu requeiro.
Paulo Maciel ficou sem saber o que dizer diante de tais atitudes. O
seu sentimento era suspender, prender este escrivão insolente, seu
subordinado legal; era dispensar o inventário, era ainda por cima
dar dinheiro do seu bolso à desgraçada e mandá-la embora,
envolvendo-a num clarão de bondade. Mas para isso que soma de
energia, de fluido nervoso, não precisava de consumir!... Valeria a
pena? As suas poucas forças o traíram, e a inteligência fina, distinta
descortinou-lhe, pérfida, o desenrolar de uma luta com os seus
colegas, com esse escrivão chefe político, mandão da localidade, luta
inglória em que ele não se queria estragar... Os juízes passam e os
escrivães ficam.
– Está bom, cheguemos a um acordo. Faça-se apenas um
arrolamento sumário dos bens, em vez de um inventário formal –
propôs com uma voz fatigada. Pantoja mediu-o triunfante.
– Isto é uma novidade para iludir a Lei... aqui está o formulário
oficial e Vossa Senhoria não me mostra esses arrolamentos.
Inventário é inventário, senhor doutor – respondeu-lhe o escrivão,
apossando-se da situação que o superior lhe abandonava.
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– Homem, deixe de luxos, seu Maciel – disse o promotor. – Que mal
há em fazer-se o inventário?
– Que mal?... obrigar esta pobre mulher a pagar mais custas...
É pouco?
– As custas são o azeite da máquina do foro... – objetou alegremente
Pantoja.
E o inventário foi feito como os outros, com as mesmas extorsões e
violências. No fim, quando o escrivão intimou a colona a que lhe
desse duzentos mil-réis, esta começou a chorar.
– Deixemos de cenas... Querem obrigar a Justiça a trabalhar de
graça... Era só o que faltava.
– Mas não posso arranjar tanto dinheiro.
– Venda a casa.
– Sim, meu senhor, vou vender o que tenho para pagar as dívidas de
meu marido, dívidas da moléstia, e depois trabalhar para outras
novas.
– Primeiro a Justiça... Se não quiser nos pagar, não venderá a casa
nem o roçado; eu prendo os papéis, e agora vamos ver.
– Capitão Pantoja... – ia dizendo o juiz municipal.
– Deixe o caso comigo – atalhou o escrivão, colérico e intratável. –
Vossa Senhoria é rapaz, não entende disto, veio ontem ao mundo,
mas a mim ninguém me embaça... Lágrimas!... Todas elas choram.
E voltando-se para a colona:
– Vá, a mulher moça não falta dinheiro...
Deu uma risada seca. Atordoada como uma sonâmbula, a colona
saiu, arrastando os filhos.
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Depois do almoço, os animais estavam selados para a partida. O dia
era abafadiço e dominado pelo sol, que mantinha sempre com a luz
poderosa um grande silêncio. Os juízes vieram para montar,
ajudados pelo meirinho e pelo dono da casa. Pantoja chegou-se ao
grupo e disse ao promotor, apontando o colono:
– Ainda não tive a minha conversa aqui com o amigo.
E batendo no ombro de Franz Kraus, que o fitou espantado da
intimidade, acrescentou num gesto de irônica cortesia:
– Muito obrigado pela hospedagem, camarada... mas ainda falta
alguma coisa.
– Que é? – interrogou inquieto o colono.
– As nossas custas, meu amigo. Você pode... E por isso dê-nos logo.
Está me cheirando mal o fiado... vá buscar... Quatrocentos mil-réis.
O homem vacilou, como para cair. Uma vertigem o ia tomando; na
garganta a voz morreu-lhe num espasmo. O escrivão empurrou-o de
manso, dizendo-lhe zombeteiro:
– Vá, amigo, não se espante. Olhe que o negócio podia ser pior...
Advogados, demandas, penhoras...
Sob aquela pressão, o colono foi caminhando automaticamente para
a casa.
– Bravo, capitão, o senhor é de força – observou lisonjeiro o juiz de
direito.
– Ainda não viram nada – respondeu o escrivão, estimulado. Depois
de alguma demora, que os ia impacientando, apareceu o velho
Kraus. Tinha os olhos vermelhos, as faces inchadas e rubras.
Chorara.
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Pantoja recebeu o dinheiro e contou. O colono olhava-o, mudo e
abatido.
– Muito bem. Agora tudo está em ordem. Fiquemos bons amigos.
Procure os papéis no cartório, no fim do mês.
E montou. A cavalgada partiu.
– Parabéns – disse Itapecuru a Paulo Maciel; – está chovendo na sua
roça.
O juiz municipal, sem dar-lhe resposta, olhou-o com um grande
nojo.
Em pé, no meio do terreiro, de chapéu na mão, a cabeça ao sol, o
colono via com os olhos desvairados a Justiça sumir-se na estrada...
E quando Ela desapareceu e tudo voltou ao sossego profundo, ficou
ele longo tempo com a vista pregada na mesma direção...
Subitamente, numa raiva imensa e cobarde, murmurou olhando
medroso para os lados:
– Ladrões!
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