Willie Robertson pode ter se enganado ao acreditar que sua história fosse literalmente verdade; isto, porém, não diminui sua força simbólica como resposta. Os funerais nas comunidades das ilhas de pequenos agricultores (lavradores) e pescadores eram normalmente ocasiões para a demonstração da igualdade funda-mental de todos perante Deus, e, na longa caminhada para o ce-mitério, cada um teria sua vez de carregar o caixão. Em alguns, era mesmo convenção que, nisso, os mais ricos deliberadamente fizessem par com os mais pobres. Porém, ao contar a história, ele não recorre apenas a uma tradição folclórica, mas a suas próprias idéias políticas e religiosas. Willie Robertson era um presbítero da Igreja Nacional da Escócia, com forte crença na abstinência. Era também um sapateiro socialista: um membro da SDF (Social Democratic Federation), convertido pelos oradores de rua que chegavam ao norte com os barcos de arenque de East Anglia. Assim, sua narrativa é também uma parábola do Bom Samari-tano, mesclada de um sabor de consciência de classe marxista.
Muito embora um caso complexo como esse seja relativa-mente raro numa história de vida comum, ele indica a necessi-186
dade de compreender as diferentes formas e convenções que mo-delam não só as narrativas, mas também quaisquer comunicações entre pessoas. Assim como, num livro, as necessidades da expo-sição, de formato e de extensão pressionam no sentido da inclu-são de alguns detalhes e da supressão de outros, assim também se dá com a narração de uma história comum: o significado simbó-lico e os detalhes factuais devem depender de uma forma. "Ne-nhuma expressão humana, seja qual for, fica de fora de um gê-nero literário", insiste Vansina: estude "primeiro a forma e a estrutura, porque elas influem na expressão do conteúdo". Essas formas nas fontes orais têm sido analisadas principalmente por antropólogos e por folcloristas interessados na literatura oral, mais do que por historiadores. Em "literatura" oral, fazem-se dis-tinções entre gêneros característicos mais importantes, tais como a lenda grupal, a narrativa individual, a saga familiar e o conto popular. Assim, existe uma relação de tipos de contos populares, com várias centenas deles, que permite que os documentalistas no mundo inteiro reconheçam um conto, e verifiquem de que modo a versão que tenham coletado diverge do tipo básico e que influências contribufram para essas mudanças. Vansina pode não só isolar os estereótipos familiares, "recheios" e "fórmulas" das partes da narrativa que transmitem mensagens significativas, mas também afirmar com toda a segurança, por exemplo, a partir da análise sistemática de narrativas de toda uma região, que "todas as migrações no Alto Nilo são causadas por uma briga entre ir-mãos a respeito de um objeto de pequeno valor." 45 A maioria dos historiadores orais europeus têm que trabalhar sem contar com a ajuda de um acúmulo de experiência desse tipo. A narrativa indi-vidual e a história de família podem ser submetidas à mesma análise formal - mas, na prática, isso tem sido feito com muito menos freqüência.
O modo como se aprende uma narrativa também precisa ser mais rigorosamente estudado. Na França, por exemplo, as crian-ças de aldeia são levadas ao cemitério por seus pais ou avós para lhes ser ensinada a história da família. Uma fotografia de casa-187
mento pendurada na parede, ou uma reunião de veteranos de guerra ou de colegas de trabalho são todos mecanismos de re-construção da memória. Mas esses mecanismos variam significa-tivamente entre grupos sociais e localidades diferentes. No seio da minoria protestante francesa nas encostas do Drôme, nos Alpes, a memória do passado não é, como para seus vizinhos católicos, uma cadência interminável de vida e de trabalho, mas uma história longa e trágica, uma história de luta e perseguição, clandestinidade, êxodo e resistência. Ali, mostram-se às crianças os lugares secretos de assembléias nas florestas, os galhos em que os mártires foram enforcados. "Um protestante - não tinha o direito de nascer, de casar-se, nem mesmo de morrer." 46 E foi tão profunda a marca deixada pela perseguição dos séculos XVII e XVIII, que o passado mais recente acaba sendo lembrado exa-tamente dentro de mesmo modelo: a insurreição de 1851, não por suas marchas e embates, mas pela repressão sofrida; e assim tam-bém a Segunda Guerra Mundial.
O estudo dos processos diferenciados de transmissão tem sido levado mais a fundo entre os antropólogos e historiadores da África, pelo fato de dependerem de modo muito especial das fon-tes orais. Deve-se distinguir claramente entre histórias orais pes-soais - relatos de testemunhas oculares -, relativamente fáceis de avaliar, e tradições orais - que são passadas de viva voz para as gerações seguintes. Este último processo pode ser bastante di-ferente em duas sociedades vizinhas. Ao norte de Gana, Jack Goody encontrou marcante contraste entre uma sociedade tribal centralizada, na qual um mito relativamente curto e cristalizado é transmitido de uma geração para outra por narradores oficiais, e uma outra sociedade, descentralizada, na qual a apresentação do mito coletivo (o Bagre) é deliberadamente local e criativo, de modo que se altera continuamente, e versões diferentes provindas de grupos diferentes têm espantosamente pouco em comum. Ou-tros africanistas têm procurado desenredar o processo pelo qual a memória imediata se transforma em tradição formal. Ás vezes isso pode se dar muito rapidamente: as vidas dos profetas africa-188
nos, por exemplo, podem transformar-se em mitos no prazo de dois ou três anos. Mas Joseph Miller, com base em trabalho de campo em Angola, sugere que, em algumas sociedades, pode haver um certo momento, á medida que os eventos saem do al-cance da memória de primeira e de segunda mãos, em que as recordações sofrem acentuada mudança. Relatos da guerra de Angola de 1861 (que também se conhece a partir de documentos. portugueses) são por vezes relativamente precisos, com detalhes sobre armas de fogo, etc., sem muito comentário moral, pare-cendo mais uma documentação escrita; mas às vezes são apre-sentados como um evento mítico, estilizado, á maneira tradicio-nal de narrativa de guerra - o estilo dos portadores-de-tradição oficiais, os historiadores orais profissionais da sociedade ango-lana, cuja tarefa era coletar informações orais e apresentá-las em espetáculos públicos. Possivelmente a guerra angolana está so-frendo uma transição á medida que escapa à memória informal. Uma vez que nenhum dos membros de dado público pode lem-brar-se de detalhes de um evento, ou possui suas percepções e opiniões pessoais a respeito dele, o que se necessita é um relato simplificado, estilizado, que se concentre no significado da histó-ria. Assim, o limite de tempo assinala um importante processo de seleção, no qual algumas narrativas são descartadas e outras, sin-tetizadas, reestruturadas e estereotipadas. Os portadores-de-tradi-ção oficiais preocupam-se extremamente com padrões de preci-são profissional, mas que não são os padrões dos historiadores ocidentais. Assim, além daquele limite de tempo, os historia-dores de Angola podem utilizar melhor as tradições orais como evidência de valores, mais do que de fatos; e, ao fazê-lo, levam em conta as percepções completamente diferentes de tempo e da natureza da mudança, dos africanos, nelas incorporadas.47
Uma vez que as datas raramente são o forte nem mesmo da memória imediata, não é nada de admirar que se descubra que "a fraqueza na cronologia é uma das maiores limitações de todas as tradições orais". Nem sempre tudo está perdido: Paul Irwin pôde demonstrar, por exemplo, que os Liptako sub-saarianos do Alto
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Volta lembram-se corretamente de seus emires, e também das guerras de sucessão havidas entre eles, pelo menos até a década de 1820. Tanto neste caso, como em outras comparações feitas no Pacífico entre registros escritos e tradição oral, as imprecisões estão longe de ser num só sentido. Porém, de igual interesse são as distorções: a incorporação de motivos europeus na história tra-dicional, como a "imagem do negro selvagem" de um passado livre que é agora relatado pelos aborígenes Ngalakan do Norte da Austrália, a defesa de falsas reivindicações de diferenças de cos-tumes em relação a povos vizinhos, a eliminação de governantes indesejáveis das listas dos reis e a manipulação de genealogias para reivindicar terras ou propriedades, o que constitui "utiliza-ção muito comum das genealogias em todo o mundo".48
Acima de tudo, consciente ou inconscientemente, o mais provável é que memórias que são desabonadoras, ou positiva-mente perigosas, sejam tranqüilamente enterradas. "Esqueça essa história; se a narrarmos, nossa linhagem será destruída", excla-mou um tanzaniano na capital real Nango, em Vugha: sua família tinha uma história de conflitos com os governantes. São poucos os alemães que desejam pesquisar a contribuição da própria fa-mília para a eliminação dos judeus. Até mesmo os sobreviventes daqueles massacres muitas vezes querem esquecer, suprimir as próprias lembranças, tanto quanto contar o que haviam sofrido; como disse Quinto Osano, metalúrgico da Fiat, sobrevivente do campo de concentração de Mauthausen: "É, sempre queremos que isso seja contado, mas, dentro de nós, estamos tentando es-quecer; bem dentro, no mais profundo da mente, do coração. É instintivo: tentar esquecer, mesmo quando estamos fazendo os outros se lembrarem. É uma contradição, mas assim é que e". Talvez seja por isso que as tradições orais dos Ngalaka australia nos omitam toda menção à dizimação que deles fizeram os mas sacres europeus. Analogamente, em Turim, bastião do movi mento operário italiano, a fase humilhante do domínio fascista tipicamente omitida das histórias de vida espontâneas de operários: um silêncio de autocensura que Luisa Passerini vê com
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uma profunda "cicatriz, uma violenta supressão de muitos anos de vidas humanas que dá testemunho de uma profunda ferida na experiência quotidiana". Lucien Aschieri, de modo menos dra-mático, demonstrou de que modo as mesmas pressões para es-quecer modelaram a memória local de Allauch,, uma pequena co-muna na periferia de Marselha, antigamente independente, mas ultimamente absorvida pela cidade grande. Apesar do indubitável impacto que ali tiveram, a Revolução Francesa, a prolongada luta local entre os radicais e a Igreja, as greves de 1936 e as duas Guerras Mundiais dificilmente merecem alguma atenção: por-que, para uma comunidade ameaçada, a memória deve, antes de mais nada, servir para acentuar um sentimento de identidade comum, de modo que episódios de divisão e de conflito caem no esquecimento.49
De modo muito semelhante podem ser vistas as tradições de família. Carolyn Steedman nunca soube que seus pais não eram casados e que ela era ilegítima, até a morte do pai. Jan Vansina, oriundo de uma aldeia belga rica de tradição oral cujo valor co-meçou a impressioná-lo quando descobriu que os aldeões rejeita-vam a versão oficial da história ensinada na escola, veio a desco-brir, mais tarde, depois de dezesseis anos de verificação consistente, que a história de sua própria família era fidedigna apenas pela metade. A história econômica básica de como seu avô, numa si-tuação de industrialização em desenvolvimento, chegou para cul-tivar couve-flores, é bastante correta. Mas há certos trechos mais periféricos que ou foram esquecidos como menos abonadores ou, como as longínquas origens da família em Milão, foram criados a partir de memórias equivocadas de uma visita ao Norte da Itália. "Metade dessas histórias não são verdadeiras. São um cenário inventado. Elas são necessárias para o orgulho de alguém."50
A descoberta de distorção ou de supressão numa história de vida, uma vez mais é preciso ressaltar, não é puramente negativa. Até mesmo uma mentira é uma forma de comunicação; e pode proporcionar uma pista importante para a psicologia ou as atitu-des sociais da família. Porém, para podermos ler essas pistas,
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temos que desenvolver uma sensibilidade às pressões sociais relacionadas com elas. Uma história de vida espontânea e não contestada, afirma Vansina, tenderá a apresentar uma auto-imagem coerente ou um autodesenvolvimento lógico, e os eventos serão "preservados e reordenados, remodelados ou corretamente lembrados, segundo o papel que desempenham na criação desse auto retrato mental. Certas partes desse retrato são por demais íntima ou por demais contraditórias para que sequer sejam revelada Outras são privadas, mas, dependendo do estado de espírito, poder ser contadas aos mais próximos ou aos mais queridos. Outras sã para consumo público". Assim, uma autobiografia típica pode se bastante franca a respeito das tensões familiares na infância, ma muito raramente revelará dificuldades no casamento do próprio autor; menos marcadamente, esse mesmo contraste se encontra na entrevista. É especialmente provável que a experiência sexual seja censurada, ou de modo algum relatada. Um bom entrevista dor, porém, provavelmente não se satisfará nem um pouco com relato meramente público, e provavelmente só em casos excepcionais encontrará verdadeira dificuldade de ir além desse ponto. Um estudo sobre famílias pobres, por exemplo, descobriu que era preciso várias entrevistas para que seus informantes deixasse de dar a resposta que julgavam ser socialmente aceitável a alguém que representava suas próprias opiniões. "Quando se perguntou a Elsie Barker quantos irmãos e irmãs tinha, sua resposta na segunda entrevista, foi que ela era a terceira de seis filhos." Só muito mais tarde é que explicou que as três crianças menores eram, de fato, filhas de uma irmã mais velha, Brenda, que si havia suicidado. Por terem sido criadas com ela, sempre pensar nelas, e continuava a pensar nelas como irmãs e não como sobrinhas. De início, Elsie "omitira qualquer menção a Brenda".5' 1 história completa não apenas era complicada demais para uma resposta simples, como também introduzia uma lembrança familiar dolorosa e vergonhosa. Contudo, ela estava oculta, mas não ir recuperável. A combinação de fatos acontecidos em diferente épocas, mediante esse processo de recuperação, oferece-nos
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informações muito mais significativas do que os próprios fatos manifestos.
A possibilidade de recuperação, de ir erguendo gradual-mente as camadas da memória e da consciência, constitui uma diferença essencial entre a memória pessoal imediata e uma tra-dição oral que vem de várias gerações. Um bom número de an-tropólogos tem afirmado que as tradições orais são tão maleáveis sob pressões sociais, tão seguidamente modeladas e remodeladas pelas mudanças de estruturas e de consciência, que seu valor não só é meramente simbólico, mas isso apenas em relação ao pre-sente. Jack Goody, por exemplo, interpretaria as tradições por meio de uma teoria de "homeostase dinâmica", em que toda alte-ração da organização ou da prática social imediatamente se re-flete numa tradição remodelada. Vansina rejeita vigorosamente um funcionalismo tão extremado como esse: embora seja ver-dade que "todas as mensagens possuem alguma intenção que tem a ver com o presente, pois, de outra forma, não seriam relatadas no presente e a tradição feneceria", a idéia de que as tradições não conservam mensagem alguma vinda do passado é absoluto exagero. As mudanças sociais freqüentemente levam tanto a acréscimos, deixando intactos variações e arcaísmos mais anti-gos, quanto a supressões; e os temas suprimidos geralmente dei-xam sinais. Se nada do passado fosse deixado, "onde a imagina-ção social encontraria a substância a partir da qual inventar? Como se explicam as continuidades culturais?". O que é um fun-cionalismo como esse, senão a analogia com uma máquina, le-vada mecanicamente ao absurdo lógico de uma falsa analogia? E ainda menor é a simpatia que ele dedica à "falácia do estrutura-lismo", que se baseia em outras analogias com leis humanas uni-versais de pensamento não comprovadas e que, na prática, produ-zem um número infinito de interpretações para o mesmo mito: "a despeito de sua apresentação pseudológica, essas análises são, de fato, discursos inventivos, válidos apenas na mente de quem os inventa, visando à persuasão e não à prova". Como ele resume convincentemente:
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Sim, .tradições orais são documentos do presente, porque são narradas no presente. Contudo, trazem também em si, ao mesmo tempo, uma mensagem do passado. Não se pode negar que haja nelas quer o presente, quer o passado. Atribuir todo o seu conteúdo ao evanes-cente presente, como fazem alguns sociólogos, é mutilar a tradi-ção; isto é reducionista. Ignorar o impacto do presente, como tém feito alguns historiadores, é igualmente reducionista. As tradições devem ser sempre compreendidas como refletindo simultaneamente o passado e o presente.52
Uma defesa tão enérgica como essa dificilmente será neces-sária em relação à memória pessoal imediata, muito embora o argumento também se aplicasse neste caso; o equilíbrio de in-fluências é nitidamente diferente. Muito freqüentemente, os cria-dores de mito passam a ser, não os participantes diretos, mas. sim os que o relatam, até mesmo os historiadores. Foi demonstrado por Jerome Mintz, a partir do testemunho direto dos próprios ha-bitantes - com quem ele viveu durante três anos -, que o "clás-sico" levante anarquista do Sul da Espanha, na aldeia de Casa Viej as, encarado por Eric Hobsbawm e por outros historiadores como uma reação revolucionária à fome, "utópica, milenarista, apocalíptica", foi uma insurreição consciente, mas mal planejada, atendendo à convocação dos militantes de Barcelona, durante as greves gerais de 1933 nas cidades. A aldeia não havia sido um bastião anarquista bem organizado; o levante foi brutalmente li-qüidado antes que o povo tivesse tempo sequer de dividir as ter-ras, quanto mais de inaugurar uma sociedade utópica; e quem resistiu por mais tempo não era seu líder carismático, mas sim um carvoeiro heróico e apolítico. O mito de Casa Viejas sobrevi-veu porque se ajustava bem às crenças tanto das autoridades fas-cistas quanto da esquerda, fornecendo bodes expiatórios e heróis, E no correr de todas as décadas do regime de Franco, os sobrevi-ventes também precisaram manter-se silenciosos: "É certo e na-tural que, não conhecendo bem as pessoas, tinha-se que mentir. Cada um tem que se proteger".53 Porém, eles ainda sabiam.
Em relação à memória imediata, o passado está muito mais perto do que na tradição. Para cada um de nós, nosso modo de
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vida, nossa personalidade, nossa consciência, nosso conheci-mento constroem-se diretamente com nossa experiência de vida passada. Nossas vidas são a acumulação de nossos passados pes-soais, contínuos e indivisíveis. E seria meramente fantasioso su-gerir que a história de vida típica pudesse ser em grande medida inventada. Uma invenção convincente exige um talento imagina-tivo muito excepcional. O historiador deve enfrentar esse tipo de testemunho direto não como uma fé cega, nem um ceticismo arrogante mas com uma compreensão dos processos sutis por meio dos quais todos nós percebemos, e recordamos, o mundo a
nossa volta e nosso papel dentro dele. Apenas com um espírito .sensível assim é que podemos esperar aprender o máximo da-quilo que é relatado.
O valor histórico do passado lembrado apóia-se em três pontos fortes. Primeiro, como demonstramos, ele pode propor-cionar, e de fato proporcionas informação significativa e, por vezes, única sobre o passado. Em segundo lugar, pode também transmitir a consciência individual e coletiva que é parte inte-grante desse mesmo passado.
Mais do que isso, a humanidade viva das fontes orais atri-bui-lhes uma terceira força que. é exeepcional. Pois as intuições reflexivas da retrospecção de modo algum constituem sempre -desvantagem. É "precisamente essa. perspectiva histórica. que nos permite avaliar o significado a longo prazo da história", e só podemos fazer objeção a receber essas interpretações retrospectivas de outros- considerando que os distingamos como tais - se
Quisermos excluir os que viveram através. da história de toda e qualquer participação em sua avaliação. Se o estudo da memória "nos ensina que. todas as fontes históricas estão impregadas de subjetividade desde o início", a presença viva das vozes subjetivas do passado também nos limitam em nossas interpretações, e nos permitem, na verdade obrigam-nos,a testá-las em confronto o com. a opinião daqueles que sempre, de maneira fundamental
saberão mais do que nós.54 Simplesmente não somos livres para inventar aquilo que .é possívelao arqueólogos de antigas eras, ou
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até mesmo aos historiadores da família moderna em seus primei-ros tempos. Só porque a morte das crianças era tão comum, não poderíamos presumir que os pais não sofriam profundamente com a morte de seus filhos, sem lhes perguntarmos a respeito.
Em suma, estamos lidando com fontes vivas que, exatamente por serem vivas, são capazes, á diferença das pedras com inscrições e das pilhas de papel, de trabalhar conosco num processo bidire-cional. Até aqui, concentramo-nos sobre aquilo que podemos aprender com elas. Mas a narração de sua história pode também ter um impacto sobre elas. A isto deveremos voltar em seguida.
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A MEMÓRIA E O EU
Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subje-tiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetivi-dade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta. Se assim é, por que não aproveitar essa oportunidade que só nós temos entre os historiadores, e fazer nossos informantes se acomodarem rela-xados sobre o divã, e, como psicanalistas, sorver em seus incons-cientes, extrair o mais profundo de seus segredos?
Eis um convite sedutor. A psicanálise é a magia de nossa época. O estranho poder dos psicanalistas - de ouvir e curar, de libertar a angústia e a culpa dos grilhões de um passado de que havíamos esquecido e, por meio de sua expressão, fazer com que repousem; de, por nos escutar, conquistar nosso amor para a se-guir devolvê-lo a nós como uma força nova em nossa própria autoconfiança; em suma, de, penetrando na mais profunda intimi-dade que nunca havíamos partilhado com ninguém mais, mudar nosso eu mais interior e mais secreto - não pode, pela própria natureza, ser plenamente imaginado ou logicamente compreen-dido. Isso basta para torná-lo tão ameaçador quanto irresistível. Acrescente-se uma teoria misteriosa sobre o inconsciente cons-truída em torno de nossa sexualidade pessoal, tabu e altar de nossa cultura, e não é de admirar que o poder de que dispõem os psicanalistas - e mais ainda os psiquiatras, com suas baterias de drogas no armário para transtornar a mente - faça deles os bru-197
xos também os oráculos do século XX. E especialmente para os historiadores, eles apresentam o duplo desafio, profissional e pes-soal, de profissões alternativas que manipulam o passado se-gundo regras diferentes.
Porém, queira-se ou não, serão poucos os historiadores orais capazes de praticar a psicanálise. Isso requer muitos anos de uma formação diferente. Igualmente importante é que as entrevistas de história oral têm como pressuposto outros objetivos: não se pode pedir a nossos informantes que se deitem no divã, que abram suas mentes em associação livre, que falem enquanto o entrevistador fica em silêncio, ou que apresentem anotações diá-rias de seus sonhos e fantasias. Porém, há muita coisa que os historiadores orais podem certamente aprender com a psicanálise a respeito do potencial de seu próprio ofício - em relação tanto a si mesmos quanto a seus informantes. Na verdade, refletir a respeito das implicações da psicanálise tem, sem dúvida, propor-cionado, ao longo dos últimos dez anos, um importante estímulo para o progresso de nossa compreensão da memória oral como evidência.
O modo mais direto pelo qual tem surgido esse interesse tem sido, freqüentemente, uma experiência pessoal de terapia. Temos a sorte de possuir um relato disso feito por um eminente historiador oral, em Iii Search of a Past (1984), de Ronald Fraser. É um livro excelente, original e fascinante que, por si só, poderia ser uma obra maravilhosa de história social. Fraser entrevistou os empregados de seus próprios pais. Através dos penetrantes olhos deles, ele reconstrói o mundo social da classe alta dos Home Counties (condados nos arredores de Londres) durante a década de 1930, e a transformação havida quando a caça terminou e as barreiras sociais desabaram na Segunda Guerra Mundial. As pa-lavras dos empregados oferecem-nos, de maneira vigorosa, a complicada mistura de lealdade e hostilidade que une tanto em-pregado a empregado, quanto empregado a patrão; e também, de arrepiar, o vazio emocional no interior da família da mansão se-nhorial - o casal sem amor e seu filho solitário e arrogante. Mas
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