A voz do passado



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a coragem e a originalidade de Fraser é juntar e entrelaçar essas dolorosas memórias da infância com outros dois diálogos: com seu pai, outrora amedrontador, agora patético e desnorteado, a mente reduzida a um borrão em que retalhos de lembranças flu-tuam soltos, chegando ao fim da vida num asilo de velhos; e numa discussão sobre as próprias lembranças com seu psicana-lista. O resultado é uma forma completamente nova de autobio-grafia, pondo em confronto os grandes temas do tempo e da classe, e no entanto intensamente íntima.
E é também uma fuga musical sobre a natureza da memória. Por contraposição, é mostrado que a evidência da história de vida aparentemente franca e honesta dos empregados contém seus si-lêncios e evasões peculiares, por exemplo, quanto ás relações se-xuais entre eles; isso se contrapõe à memória gravemente cor-roída do velho pai, que parece ser também a ruína de suas mentes; e fornece o material para que, pela psicanálise, Fraser levante, uma a urna, as camadas de sua memória inconsciente. Foi sua ama-de-leite, por exemplo, que lhe contou como ele foi alimentado e trocado a horas certas, e colocado no penico desde os quatro meses de idade: "Mais tarde, eu amarrava você sobre o penico nos pés da cama até que você fizesse". E por meio de sua terapia, Fraser não apenas deu vazão a seu ódio contra os pais, mas veio a compreender como a divisão social entre patrões e empregados no lar de sua infância foi também uma ruptura emo-cional que ele trouxe para a idade adulta. Sua ama-de-leite rude e prática foi uma mãe para ele, tanto quanto sua mãe esquiva e bela; enquanto o ressentido jardineiro, que tanto odiava a arro-gância silenciosa de seu pai, foi quem se tomou a companhia diária mais íntima do menino solitário, quem o escutava, quem o

ensinou a plantar, a valorizar o trabalho feito com as mãos - um segundo pai. Foi esse jardineiro que, por tê-lo ligado emocional-mente a um trabalhador, abriu inconscientemente o caminho polí-e tico que Fraser veio a trilhar muito mais tarde, quando rejeitou os

valores de sua classe juntamente com os do pai que o rejeitava.
Assim, embora de início parecesse que o psicanalista bus-199

cava no passado algo muito diferente do interesse pessoal de Fra-ser como historiador, deixando de lado qualquer teorização abs-trata, o mundo material e o que realmente acontecera, para con-centrar-se nos sentimentos a respeito do passado e nas relações entre as pessoas, ao final de sua "viagem de descoberta interior", por meio da análise, as duas dimensões da compreensão haviam se tomado parte de uma única interpretação.' Isto não significa, porém, que só se pudesse chegar a uma interpretação como essa por meio da psicanálise. Teria sido um resultado igualmente tí-pico da discussão em grupo que ocorre na terapia familiar, que traz à tona sentimentos subjacentes por meio do confronto direto com outros membros da família, numa situação em que expressa-los é seguro e de fato esperado. As técnicas específicas de livre associação e de análise de sonhos não fazem parte desta aborda-gem terapêutica. Não obstante, ela é igualmente eficiente para revelar a complexidade de emoções contraditórias, do amor e ódio entrelaçados, típicas dos relacionamentos íntimos e, mais ainda, para indicar as influências intergeracionais igualmente ca-racterísticas dos padrões emocionais, mediante os insights pro-vindos de urna teoria de sistemas familiais que busca a estrutura-ção das relações.


Tomemos o caso de uma bela filha adolescente de um pe-queno negociante do Norte da Itália, que estava se matando aos poucos por não comer. Contra o que estava protestando? A famí-lia não conseguia compreender, e a escola, onde ela era muito esforçada e ia bem, não conseguia dar nenhuma pista. Desespera-dos, buscaram a ajuda de um terapeuta familiar carismático da cidade grande. O que de início cada um contava sobre os outros era tipicamente restrito: os filhos achavam que a mãe podia tal-vez ser um pouco mais independente, enquanto esta falava do marido como um homem bom cujo único problema era que nunca ria, estava sempre sério e triste. Mas levou menos de uma hora no consultório para que se erguesse o véu de sobre os segre-dos da família, que os haviam paralisado a todos. O marido vinha de uma família próspera, mas havia casado com um das empre-200

gadas do pai depois de a haver engravidado. Para ele, o caso fora uma rebelião contra o próprio pai, que dominava sua "santa" mãe deprimida; para ela, uma libertação da pobreza familiar. Mas ao invés de se libertarem dos problemas dos avós, deixaram-se pren-der por eles, impingindo-os aos próprios filhos. Ele havia agido honradamente, mas nunca perdoara a esposa por havê-lo sedu-zido e estragado sua vida. Preferia passar seu tempo livre com os pais, compartilhando de um desprezo comum por la serva. A mulher achava que ele era sempre severo, duro com ela, incapaz de dar ouvidos a seus problemas, e seu ódio mal disfarçado levara-a a uma depressão que ia e voltava; o marido a considerava intole-ravelmente superemotiva, e estava cheio dos problemas familia-res dela; os filhos se queixavam de seu choro e de seus gritos. Emocionalmente, em vez de se envolverem um com o outro como um casal, tanto o marido como a mulher continuavam ape-gados principalmente a suas famiias de origem. A família dela não só era socialmente inferior à dele, como continuava sendo muito mais pobre, e a queixa mais sentida que ela fazia era de ele se negar a dar dinheiro para ajudar suas irmãs; enquanto ele enca-rava a família dela como um escoadouro permanente de seus re-cursos, sempre querendo mais. No entanto, fazia questão de que, todo domingo, ela preparasse uma refeição familiar para os pais, que participavam de seu ressentimento contra ela e sua gente. Nesse beco sem saída de antagonismo emocional e de classe, o almoço de domingo era uma forma de ódio. Muito embora ne-nhum dos dois houvessem compreendido antes, agora ficava bem claro que a recusa de comida pela filha era um brado contra o conflito oculto, mas intolerável, entre os pais. Sua ação era como o reflexo no espelho: ao invés de alimento como ódio, a inanição como amor.


A terapia familiar é uma outra situação especial em que as verdades interiores muito freqüentemente emergem mais rapida-mente do que na psicanálise. Tem a vantagem de interpretar as necessidades individuais não isoladamente, mas dentro de um contexto social. Por meio de sua perspectiva, podemos examinar

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exatamente por que, numa família, cada geração de filhos briga com o pai, enquanto outra passa de pai para filho tanto as habili-dades quanto a ambição de ser bem-sucedido exatamente na mesma profissão da família; por que, numa família, nem o pai, nem os filhos se envolvem numa única relação amorosa cons-tante, mas sempre mantêm amantes, enquanto em outra são as mulheres fortes que dão o tom, e ainda em outra, a uma mãe deprimida seguem-se filhas deprimidas. Esse exame da diversi-dade da experiência comum é muito mais compensador do que as aplicações grosseiras da teoria psicanalítica individual a culturas inteiras que, infelizmente, têm caracterizado a "psico-história". E está também muito mais próximo da variedade extraordinária das 1 vidas individuais que os historiadores tipicamente descobrem e precisam explicar. Uma das principais lições que se deve extrair de ambas essas espécies de terapia é a necessidade de maior sen-sibilidade histórica ao poder da emoção, do desejo, rejeição e imita-ção inconscientes, como parte integrante da estrutura da vida social comum e de sua transmissão de uma geração para outra.
Analogamente, não são as técnicas específicas da psicaná-lise na interpretação de sonhos o que mais importa, mas sim ter ela chamado a atenção para o fato de quão impregnado de simbo-lismo está nosso mundo consciente. Poderíamos perguntar pelos sonhos de nossos informantes, por seus pesadelos, ou por suas fantasias enquanto sonham acordados na linha de montagem; e para aprender o máximo com essas expressões de seus desejos e angústias interiores, evidentemente precisaríamos identificar os ardis característicos do "trabalho do sonho", sua condensação de mensagens, inversões, substituições, metáforas, jogos de palavra e imagens visuais, por meio dos quais os sonhos transmitem suas mensagens simbólicas. Esses ardis são uma das razões para o poder aterrador da fantasia e do pesadelo. Mas é igualmente compensador saber que esses recursos também constituem pistas comuns para o significado simbólico de mensagens transmitidas conscientemente: de costumes sociais como cantoria barulhenta, ou de piadas, ou de mitos tradicionais e de narrativas pessoais.

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De modo menos ambíguo, a reinterpretação da psicanálise freudiana por Jacques Lacan chamou especial atenção para o papel fundamental da linguagem como parte do simbolismo. Ele acredita que o inconsciente está estruturado como uma linguagem e vê a aquisição da identidade sexual e pessoal como um processo si-multâneo e sempre precário, cujos alicerces são lançados à me-dida que a criança pequena ingressa na linguagem quando se co-meça a falar com ela e ela começa a escutar e a aprender a falar. A masculinidade e a feminilidade são, pois, impostas à psique mais profunda da criança pequena, muito antes que as diferenças entre os sexos tenham qualquer significado imediato, por meio do simbolismo cultural inconsciente do gênero embutido na lin-guagem. A reformulação que Lacan faz da perspectiva essencialmente masculina de Freud sobre o desenvolvimento da personali-dade humana é menos radical do que as anteriores, de Klein e Chodorow; e, em parte, por ele a ter proposto numa linguagem simbólica tão intencionalmente incompreensível, ela resiste muito menos bem à crítica lógica.


Não obstante, sem dúvida alguma tem ajudado as feministas a mostrar as inadequações de deduções diretas a partir das dife-renças entre o desempenho masculino e feminino, e a vacuidade de políticas de igualdade de oportunidade que ignoram o peso da cultura. Imediatamente a partir desses momentos iniciais do de-senvolvimento da consciência social, a menina pequena aprende que é uma fêmea que ingressa numa cultura que privilegia a mas-culinidade e, por isso, privilegia os homens, exatamente como na linguagem a forma masculina tem sempre prioridade como regra, e a forma feminina só entra como exceção. Para assumir um lugar positivo no mundo da cultura, ela tem que lutar desde o início; mas é uma luta desigual. Em culturas de escrita pictórica, as mes-mas lições serão internalizadas por uma segunda vez, à medida que ela aprende a ler: urna menina chinesa irá descobrir que o s caráter que designa homem é formado pelos símbolos de campo e força, enquanto o que designa mulher, pelos de tear ou útero.
A internalização dessas atitudes revela-se com igual clareza,

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como têm descoberto os historiadores orais, nas diferentes ma-neiras pelas quais homens e mulheres mais idosos utilizam a lin-guagem. Isabelle Bertaux-Wiame observa como, entre os migrantes vindos da zona rural francesa para Paris, "os homens consideram a vida que viveram como sua", como uma série de atos conscien-tes, com metas bem definidas; e ao narrar sua história usam o "eu" ativo, tendo como certo serem eles mesmos o sujeito de suas ações por meio das formas de falar que utilizam. As mulhe-res, em contraposição, falam sobre as próprias vidas tipicamente em termos de relações, incluindo em sua história de vida partes de histórias de vida de outras pessoas; e muito freqüentemente falam como nos ou "a gente" (on em francês), simbolizando as relações subjacentes àquela parte de sua vida: "nós" como "meus pais e nós", ou como "meu marido e eu", ou como "eu e meus filhos".2 Lidas desta perspectiva, as histórias de vida revelam novas mensagens insuspeitadas e importantes.
Finalmente, podemos compreender mais daquilo que não édito. Ainda uma vez, não são tanto as teorias específicas da psi-canálise que se mostram mais úteis, quanto uma nova sensibili-dade, uma capacidade de perceber o que pode ter faltado. A pró-pria crença original de Freud na memória total agora parece mais um desejo fantasioso do século XIX de recapturar o passado e não tem, certamente, base científica alguma, muito embora tenha tido tanta influência que a maioria das pessoas parece "acreditar que todas as lembranças são potencialmente recuperáveis".3 É quase certo que Freud estava errado ao explicar a ausência de lembranças da primeira infância pela repressão: é muito mais provável que a experiência do bebê seja esquecida por não se haver ainda organizado a memória de longo prazo, do que elimi-nada por ser vergonhosa. Como também não nos ajudará muito considerar que a "resistência" típica do analisando - dissimu-lada, oculta, obstinada - pode, ou não, ser entendida pela analo-gia com as recusas infantis a alimentar-se, a ser desmamada, ou a defecar no lugar certo. A lição importante é aprender a estar atento áquilo que não está sendo dito, e a considerar o que slgni-204

ficam os silêncios. Os significados mais simples são provavel-mente os mais convincentes.


Em suma, o que podemos esperar ganhar pela influência da psicanálise é um ouvido mais perspicaz para as sutilezas da me-mória e da comunicação, mais do que a chave de um quarto se-creto. O que é tipicamente reprimido também está tipicamente presente - tal como o sexo. O que o inconsciente conserva pode diferir em proporção e em poder, mas não em espécie: trata-se simplesmente de experiência humana, acidental ou ativamente esquecida por todas as razões que estivemos vendo. Os sobrevi-ventes de campos de concentração sonham com comida e com tortura. O mundo real modela até mesmo as alucinações do intei-ramente louco. Os esquizofrênicos vitorianos teciam suas fanta-sias em tomo de religião, enquanto os esquizofrênicos de hoje fantasiam a respeito de sexo; ambos, porém, partem das preocu-pações quotidianas de sua época. A fantasia e o inconsciente não passam, afinal, da reordenação de vidas. Ás vezes, podem apre-sentar o mundo de cabeça para baixo; e certamente têm o poder de alterar a maneira como as pessoas atuam na realidade. O in-consciente é como uma força por trás de toda história de vida. Porém o molde da civilização e de suas insatisfações é bastante evidente, seja qual for o lado da consciência do qual o percebamos.
Há, contudo, urna outra dimensão da psicanálise que exige igual atenção dos historiadores orais. Trata-se de seu processo terapêutico original mediante a liberação da memória. Muitos historiadores orais têm chegado a dar-se conta disso por acaso, pela própria prática. Ficarão sabendo - muitas vezes por meio de uma terceira pessoa - como o fato de ser entrevistado deu a uma pessoa idosa um sentimento renovado de importância e de finalidade, algo por que esperar, até mesmo a força para lutar contra uma doença e para conquistar novas esperanças. Podem também ter descoberto que nem sempre isso é tão simples.
A maioria das pessoas conserva algumas lembranças que, quando recuperadas, liberam sentimentos poderosos. Falar sobre uma mãe ou pai que se perdeu pode provocar lágrimas, ou ódio.

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Em geral, tudo de que se necessita nessa situação é uma reação simples e de solidariedade: expressar os sentimentos terá sido, por si só, positivo. Porém, algumas lembranças desenterram so-frimentos profundos, não resolvidos, que realmente exigem uma reflexão mais prolongada com a ajuda de um terapeuta profissio-nal; evidentemente, nesses casos, o melhor que o historiador oral pode fazer é sugerir onde encontrá-lo. Essas situações surgem, tipicamente, de experiências de família que são violentas, vergo-nhosas, ou particularmente complicadas e desconcertantes; ou dos traumas de guerra e de perseguição.
Donald e Lorna Miller gravaram as lembranças de sobrevi-ventes do "primeiro genocídio do século XX", o massacre de um milhão de armênios - metade de toda a população deles no Im-pério otomano - nos anos entre 1915 e 1922. Alguns foram queimados vivos; outros usados como animais de carga, mutila-dos, torturados, ou deixados morrer de fome. Os ventres das mu-lheres grávidas eram rasgados e outras mães eram obrigadas a deixar os bebés assim arrancados morrerem nas pedras dos rios, ou a vendê-los a nómades árabes; não foram poucas as mães e famílias que cometeram suicídio juntas. O que ficou desse horror inimaginável na memória dos sobreviventes? Alguns jamais fala-rão sobre isso. Em alguns, o ódio agora cedeu lugar à explicação política, ou à resignação com o fato de que ninguém se preocupa com isso; ou até mesmo ao esquecimento. Em outros, porém, o ódio aos turcos continua ferozmente aceso: sonham à noite que estão sendo caçados - "Acordo suando" - "Eles nos golpeiam pelas costas". E ainda outros têm esperança de vingar-se: em 1973, um sobrevivente de 78 anos, que perdera quase toda a fa-mília no massacre, matou a tiros dois funcionários consulares tur-cos num café em Santa Bárbara, na Califórnia.4 Seu ódio foi uma lembrança que permaneceu viva por mais de cinqüenta anos, em outra cultura e em outro continente.
Igualmente apavorante é a lembrança da degradação, humi-lhação e extermínio ainda mais sistemáticos das vítimas dos cam-pos de concentração nazistas. Duzentos sobreviventes italianos

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testemunharam sobre quantos deles guardavam isso apenas para si mesmos, pois achavam que outras pessoas não iriam acreditar em todo aquele horror, impossível de exprimir em palavras, e doloroso demais para ser ouvido pelos mais próximos deles: a maneira como haviam sido separados de todos os conhecidos, despojados de tudo quanto possuíam, deixados inteiramente nus, a cabeça totalmente raspada, recebendo números em lugar do nome, obrigados a comer com a boca e com as mãos 'come una bestia"; como viveram dia após dia em meio à visão e ao odor da morte, sentindo o cheiro dos corpos queimados, vendo as cinzas dos corpos serem usadas para pavimentar estradas, vendo pilhas de cadáveres; como aprenderam, para sobreviver, a comer capim para minorar a fome, a roubar de qualquer um, a não confiar em ninguém a não ser que fosse muito íntimo, a dormir despreocu-pado ao lado do cadáver de um companheiro de prisão depois de lhe tirar toda a roupa para aquecer-se e, sobretudo, a pensar na morte como algo comum, até mesmo quando os guardas agre-diam outro prisioneiro até a morte diante deles, abrindo-lhe a ca-beça a pancadas... Não é de admirar que, ainda hoje, a narrativa sobre isso custe semanas de pesadelos terríveis que retornam. E essas lembranças podem ser quase tão intoleráveis por reflexo. Claudine Vegh teve análogos temores, pesadelos, crises nervosas, ódio e paralisia quando estava entrevistando judeus franceses cujos pais foram. mortos no período nazista. "Muitos dos que fi-caram órfãos jamais falam sobre o passado, é tabu (...) Não que-rem e, acima de tudo, não conseguem falar sobre isso." Muitos dos que falaram relutavam muito, falavam em sussurros roucos, ou caíam em prantos. Não tinham tido a possibilidade de chorar na época em que se separaram de seus pais, pois não tinha havido tempo, nem cerimônia alguma, e não tinham tido certeza senão muito tempo depois de que seu pai, ou sua mãe, havia morrido. Nenhum consolo fora possível. Haviam arrastado até a idade adulta uma ferida aberta, uma confusão de perda, vergonha, ódio e culpa, tão real hoje em dia quanto antes: "silenciosas agonias" que os haviam "assombrado durante toda a vida, (...) um feri207

mento tão doloroso, tão onipresente, tão totalmente abrangente, que parece impossível falar sobre ele, mesmo depois de toda uma vida".5


Lembranças desse tipo são tão ameaçadoras quanto impor-tantes e exigem uma habilidade muito especial de quem escuta. Ainda bem que são excepcionais. Para a maioria das pessoas, o sofrimento do passado é muito mais suportável, por encontrar-se ao lado de boas lembranças de alegria, afeto e realização, e a lembrança destas e daquelas pode ser uma coisa positiva. Recor-dar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identi-dade; continuar lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapturar, a autoconfiança. A dimensão terapêutica do trabalho de história de vida tem sido uma descoberta que sempre se re-pete. Assim Arthur Ponsonby, o crítico literário e antologista de English Diaries (1923), assinalou que muitos de seus autores uti-lizavam as páginas de seus diários com a finalidade de "auto-aná-lise, autodissecção, introspecção, (...) para iluminar-se mental-mente, para esgotar problemas humanos, para fazer uma avaliação da situação (...) Talvez até tirassem disso a mesma es-pécie de alívio que outros encontram na oração". Willa Baum achou que a entrevista de história oral "quase sempre tem efeitos benéficos para os narradores". Os sociólogos também assinala-ram a dimensão confessional da entrevista de história de vida e, em parte porque grande parcela de seu trabalho tem sido feito com indivíduos de comportamento desviante que muitas vezes são isolados como pessoas, têm-se defrontado, de modo especial, com reações inesperadamente calorosas dadas a um "ouvido soli-dário". Annabel Faraday e Ken Plummer ilustram esse fato muito claramente a partir de uma série de cartas que receberam:
Se minhas reações foram impulsivas, isto se deu porque você rompeu inesperadamente o muro de meu isolamento e não posso deixar de pensar em você como um amigo de tipo muito especial. Espero que você pense em mim de modo semelhante.

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E de uma carta posterior:
Senti hoje grande alívio cm conversar com você. Sou grato por você ser um ouvinte tão solidário e por me fazer sentir tão à vontade.
E novamente, vários meses depois:
Acho que estou sobrecarregando você e usando-o como um es-cape para meus problemas pessoais, mas aconteceu que abriu-se uma válvula...
Como pesquisadores, eles de fato achavam que terem mu-dado de observador solidário, "passando por caixa de ressonân-cia, e chegando a confessor e arrimo emocional" era uma carga que podia ter consumido uma energia infindável, dados os graves problemas de muitos dos desviantes sexuais que estavam gra-vando. Porém, as mudanças positivas que percebiam em alguns dos informantes eram igualmente surpreendentes: por exemplo, o homossexual que declarou que, agora, ele estava "suficiente-mente forte para 'mostrar-se' publicamente - ação esta que ele sentia que inevitavelmente resultaria no rompimento final de seu casamento já abalado, o que, sugeria ele, poderia ser feito me-diante a publicação de sua história de vida".6 É certo que as mu-danças que podem ser percebidas pelos historiadores orais em seus sujeitos provavelmente não serão tão pitorescas, mas é pos-sível que sejam igualmente importantes. O fato de cada vez mais se darem conta, não só de que as pessoas eram úteis à história, mas que também a história podia ser útil para as pessoas, foi uma das origens principais do movimento de terapia da reminiscência que se tem difundido tão surpreendentemente nos últimos anos.
Seu outro ponto alto foi uma mudança perceptível na ati-tude para com os idosos por parte dos profissionais que cuidam deles. Vinte anos atrás, os gerontologistas reprovavam decidida-mente a reminiscência. Encaravam o "viver no passado" como patológico, urna fuga da realidade presente, uma recusa da passa-gem do tempo e do envelhecimento, até mesmo como evidência de uma lesão cerebral ou de uma "regressão [psicológica] ao es209

tado de dependência da criança". A idéia de que a reflexão sobre o passado pessoal e, por meio dele, a aceitação da mudança podem ser essencial para a preservação da auto-identidade me-diante as transformações características do ciclo vital constitui uma inferência lógica do pensamento psicanalítico básico e já fora afirmada por Erikson; na prática, porém, a psicanálise de idosos não era comum. A mais importante influência veio de um psiquiatra pesquisador norte-americano, Robert Butler, que co-meçou, em 1955, a gravar entrevistas para investigar a saúde mental dos velhos e, mediante as entrevistas, descobriu casualmente a "muito evidente (...) vantagem terapêutica da reminis-cência". Começando com artigo, hoje clássico, sobre "The Life Review" (1963), defendeu a necessidade de encarar a reminis-cência como normal e saudável, parte de um processo universal para a reavaliação de conflitos passados para restabelecer a auto--identidade, e como um meio de ajudar os idosos a se ajudarem a si próprios. Quer mediante entrevista individual, quer mediante discussão em grupo, "eles podem refletir sobre suas vidas com o intento de resolver, reorganizar e reintegrar aquilo que os está perturbando ou preocupando". Tanto quanto o jovem, o idoso precisa ter oportunidade de exprimir seus sentimentos, conversar sobre seus problemas, elaborar suas tristezas; por exemplo, num momento da vida em que desejam transmitir sua experiência moral para uma geração mais jovem, reconsiderar o doloroso aprendizado da paternidade, e "expressar a culpa, o desgosto, a insegurança, o medo e a apreensão que estão ligados a sua preo-cupação de não terem sido pais eficientes".7


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