Janer cristaldo



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passado, supunha que uma noite, mas o dia era sempre escuro. Tinha de

agir rápido se quisesse sobreviver. Tinha ainda como chegar a Barcelona,

sentia-se como um general que encontrara uma brecha para uma retirada

segura. Uma vez lá, talvez caísse do céu algum cargueiro, em todo caso

Lisboa estava mais perto, e lá estavam os brasileiros fugidos do Chile,

apostando em mais uma revolução. O problema estômago estaria

resolvido e depois... depois veremos. Com novo ânimo, rumou à estação

pela Antonio Gramsci, em outras circunstâncias aquela via lhe evocaria

toda uma gama de emoções, mas agora era apenas uma imensa avenida

poluída de carros e lavada por aquela chuva demencial. E como mais

tempo ou menos tempo, mais fome menos fome, mais chuva menos

chuva, começavam a importar-lhe cada vez menos, perdeu-se pelas ruelas

sombrias e aguacentas da parte velha da cidade.

As horas (ou dias?) que passara deitado entre os containers, mais o

calor do corpo, haviam secado suas roupas, e a chuva de certa forma o

purificara, a imundície se esvaíra pelo menos da gabardina, mas

continuava a chover sempre, procurava agora abrigar-se sob as paredes

úmidas e envelhecidas de Gênova. Em um dos bolsos o cachimbo inútil,

que às vezes sugava hipoteticamente, já que há muitos dias não tinha mais

fumo. E o estômago, que fora anestesiado pelo frio e pela exaustão,

recomeçava a reclamar o seu. Perdido naquela cidade pluvial, pluvinhenta,

pluvimedonha – recordar Bandeira naquelas circunstâncias não deixava de

ter seu toque irônico – vagando como um sonâmbulo, sempre rumo à

esquerda, que mais cedo ou mais tarde acabaria na estação ferroviária,

descobriu-se de repente olhando a vitrine de um restaurante, a italianada se

embriagava chupando macarrões e talharins, com aqueles gestos orgíacos

de um italiano à mesa. Olhou para a tabuleta:

HOSTARIA CARLONE

SPECIALITÀ GENOVESI E MARINARE 134

O acrílico, não, não era um acrílico, mas um anúncio em madeira,

acima de sua cabeça, lhe soava como realidade distante e inatingível,

enquanto que os suculentos fios de massa que babavam das bocas

constituíam uma realidade próxima, embora onírica, já que entre ele e as

massas havia a vitrine e sua indigência. Descobriu-se salivando

intensamente, jamais imaginara que reagiria um dia assim ante a comida,

quando um braço, cálido e afetuoso sobre seus ombros, ordenou em tom

de convite:

– Vieni!

Era Franco, soube depois, e pelo jeito e pelo gesto, sabia muito

bem o que era fome. Fê-lo sentar, ofereceu uma grapa, o buquê já o

entontecia, com o estômago sem nenhum lastro. E iniciou-se uma

daquelas longas refeições à italiana, quando pensava ser hora de pedir o

café recém começava o segundo momento da entrada. Dalmácio devorou

pratos de sopa, de massa, de arroz, saladas, para depois chegar às carnes,

continuando com queijos e frutas, mais sobremesa, mais um panetone,

que diminuía magicamente de volume sob as estocadas rápidas de

Franco. Com uma fome de semanas, sentiu-se absurdamente repleto,

perguntava-se como podia um italiano bem nutrido ingerir tudo aquilo em

uma refeição.

Franco era um desses operários anarquistas que tudo que se possa

fazer com as mãos já havia feito, e nos intervalos andara lendo autores

explosivos, de Nietzsche a Trotsky, citando idéias e livros com erudição

desorganizada, é verdade, mas de botar muito universitário no bolso.

Entre a sofreguidão com que comia e os vapores de álcool que

começavam a invadir-lhe os miolos, Dalmácio gravou algumas frases,

Franco falava de terremotos e de Deus, que Roma decretara a decadência

do Ocidente ao optar pelo deus único dos judeus, que agora qualquer

terremotozinho ocorria no sul da Itália e as comadres já se punham a

acusar Deus, quando na época pagã, se havia um deus a quem culpar

pelos estragos havia vinte a quem agradecer pelas vidas poupadas. Que

um terremoto era algo providencial, a Itália toda ganhava, o Vaticano fazia

seu proseletismo com esmolas, os comunistas faturavam eleitoralmente

acusando a imprevidência da social-democracia e a Máfia embolsava os

donativos enviados pelos generosos governos europeus.

Sem falar que resolvia muitos problemas de patrimônio, jovens

recebiam heranças consideráveis, livravam-se comodamente dos velhos

sem ter de assisti-los quando inúteis. E após um terremoto, dizia Franco,

podemos chorar uma semana ou um mês, encharcar um lenço ou um

lençol, mas ninguém vai chorar a vida toda, que os mortos enterrem seus

mortos e a vida continua, melhor rir e continuar vivendo, salute! 135

Dalmácio, que minutos antes sentia-se um trapo, de repente

recobrou um certo ânimo, sentiu-se como se estivesse discutindo sobre

deus e o universo, no Chalé, com João e Cristiano, sem preocupação

maior que a de saber se a vida tinha ou não um sentido. No entanto,

quando a fome apertava, tal pergunta que tanto inquietava os homens era

de uma importância ridícula, as razões do estômago manifestavam-se

então imperiosas. Estômago saciado, até aventou com Franco algumas

hipóteses suas em torno à divindade, e aquela pausa em meio à guerra,

armistício inesperado sob a tempestade, o comoveu até as lágrimas, tinha

uma vontade de abraçar e beijar aquele operário de idade indefinível, mas

se conteve, foi ao banheiro e secou as lágrimas que se confundiam com

as gotas que ainda lhe pingavam dos cabelos e – notaria bem mais cedo

do que esperava – aquele otimismo pagão do amigo inesperado lhe seria

paradoxalmente funesto. Pois afinal, se a vida continuava mesmo após os

terremotos, que mudaria na face da terra após o passamento de mais um

escritor fracassado? Tudo era importante e tudo não importava coisa

alguma.

Entrou no Schwabinger Brett justo quando um cantor, barba e

cabelos brancos, no rosto as rugas de muitos mares, cantava em sotaque

carregado de charme olê mulê rrenderra, olê mulê rrendá. O bar estava

repleto, conseguiu lugar em uma mesa tomada por bávaros. Dalmácio

constatava, agradavelmente surpreso, que aos bávaros não era necessário

muita coisa para que se alegrassem. Sentou-se e puxou o cachimbo.

Como ambiência de sua última noite, o clima o satisfazia. Uma rara calma

interior o invadia, aquela mesma calma que o fascinara certo dia ao assistir

“Le Feu Follet”. O personagem de Louis Malle, com a mesma

tranqüilidade de quem decide ir ao barbeiro na manhã seguinte, dizia para

si mesmo ao espelho: “amanhã vou me matar”. Apesar de seus cabelos e

traços germânicos, seus vizinhos de mesa o pressentiam estrangeiro e

tentavam adivinhar sua nacionalidade:

– Schwede?

Não, não era sueco.

– Däne?

Não, muito menos dinamarquês.

– Pole? 136

Não, não vinha da Polônia. Estavam perto da verdade, mas

honestamente não podia se dizer polonês. Não conhecia a pátria de seus

pais e dela só guardava algumas palavras ouvidas na infância. Os

Deutschen foram descendo rumo ao Sul, aventaram França e Itália,

tentaram até mesmo Nova Zelândia e Austrália – e de repente Dalmácio se

dá conta de que não tinha idéia nenhuma, sequer uma imagem, da Nova

Zelândia. Na era das comunicações tinha-se imagens da mais remota ilha

do Pacífico, mas da Nova Zelândia, pelo menos ele não sabia o que

pensar, o que aliás o fascinava, não dissera alguém que os povos felizes

não têm história? Só então resvalaram para o continente sul-americano.

– Brasilianer?

Brasileiro? Sim, havia nascido no Brasil, mas daí a dizer-se

brasileiro ia uma longa distância. Gostava daquele cálido espírito de

confraternização do brasileiro, das aproximações sem protocolo, ao

mesmo tempo em que não suportava aquela fatalidade cabocla, o homem

que aceitava condições indignas de existência desde que o time tal

ganhasse um campeonato qualquer. Não podia nem mesmo, como

Cristiano, dizer-se gaúcho, apesar de ter nascido em Erechim. Sentia

mistérios correndo em seu sangue e a ânsia de novas paisagens. Tinha de

admitir: era um deraciné. Mas como explicar aquilo tudo, aquela pergunta

para a qual ele mesmo não tinha resposta, como explicá-la ao bávaro que

afavelmente o interrogava? Preferia facilitar as coisas:

– Jawohl. Brasilien.

Melhor permanecesse calado.

– Brasilien? Já so, Pelê?

– Já, Pelê.

– Chairssinho!

– Chairssinho!

– Garincha?

Sim, Garincha, e Dalmácio tinha vontade de chorar não fossem os

ímpetos

– Matança de índios.

de rir ao ouvir a palavra Garincha, sem o erre gutural. Que maldição era

aquela a persegui-lo por onde andasse? Nem na Alemanha conseguia

livrar-se da imagem do país do futebol, fugia dos delírios coletivos

tupiniquins e lá naquele bar perdido do Schwabing um bávaro o fazia

voltar ao passado abominável. Não podia deixar de evocar Cristiano, que

abandonara o Brasil mais por nojo de futebol e carnaval do que por

qualquer outra razão. Mas em sua última noite não queria guerra, mas

trégua, armistício, um pouco, que mais não fosse, um pouco de paz. Por

curiosidade, quis saber que outras imagens ocorriam a seu vizinho de

mesa ao ouvir Brasilien.

137


– E depois?

– Energia nuclear.

“Da barbárie à decadência sem passar pela civilização”, pensou

Dalmácio. Cristiano tinha razão: quem viaja leva a pátria nas costas e não

havia como desembaraçar-se daquele fardo, nem mesmo ele que pensava

não portar fardo algum. Mas não queria entrar em discussões nem em

explicações, naquela noite tais problemas lhe pareciam pequenos,

longínquos, mesquinhos. Se Erechim jamais lhe significara algo – saíra

pequeno da cidade, rumo a Porto Alegre, porto ilusório de todo jovem

inquieto do interior – agora mesmo Porto Alegre lhe parecia zero à

esquerda, o próprio Brasil não era mais do que titica de mosca na unha de

seu mindinho.

Chegara a um nível de higidez fronteiriço à loucura, tudo lhe parecia

grande e ao mesmo tempo ínfimo, era como se a consciência se

expandisse em ondas que rolavam sobre o universo conhecido e

desconhecido, como se o cérebro latejasse chegando às raias de uma

compreensão além de sua capacidade, jamais conseguiria pôr em palavras

aquela embriaguez de uma sobriedade absoluta, tinha a impressão de que

esferas de raio infinito rolavam num plano mais infinito ainda, como se

infinito pudesse admitir gradações. Olhava o bávaro com um sorriso

divertido, por certo ele o veria como o brasileiro sempre sorridente, feliz

mesmo na miséria, e o alemão insistia em escalar a seleção toda, logo a

ele, cuja erudição futebolística terminava no Garincha, imaginasse o Fritz

a seu lado o que lhe passava nos escaninhos do cérebro por certo o

olharia com medo e terror.

Curiosamente, naquela noite sem esperança, suas lembranças eram

todas ternas. Vontade de beijar Cristiano, não queria feri-lo, mas a decisão

estava tomada e voltar atrás seria ridículo. Gostaria de tê-lo ali naquela

noite. O jornalista que não era jornalista e que se destruiria se continuasse

a fingir que o era, bem que tentara dissuadi-lo de voltar naquelas noites

tépidas de Lisboa, tão próximas e ao mesmo tempo tão irremediavelmente

passadas, “já quebraste pedras uma vez na Alemanha, queres voltar para

quebrar mais pedras?” 138

Cristiano o gozara afavelmente, lembrando os falanstérios de

Fourier, onde este previa até mesmo um ofício para os jovens cujos

ímpetos eram dirigidos à destruição da sociedade em suas próprias bases:

trabalhariam em serviços de demolição. “Voltas para demolir o

Olympiahalle?” Mas Cristiano havia voltado ao país de onde fugira

amarrotado por dentro. Seria um gesto inteligente? Idiota ele não era –

considerava Dalmácio, triste, atrozmente triste, em meio à euforia do vinho

e das canções, o velho cantor de rosto com rugas de muitos mares agora

cantava “vou-me emborra, vou-me emborra, prrenda minha, tenho muito o

que fazerrr”, e ele, que de fato ia embora, ia exatamente por não ter mais

nada a fazer – e sua atitude dava o que pensar.

Mas já não conseguia pensar, senão lembrar. Jotagê ainda estaria

nas grades e sua libertação era tão incerta quanto os humores dos

militares, o Brasil havia resvalado naquele perigoso declive onde as leis

não passam de papéis pintados com tinta. Dalmácio até mesmo o invejava

por estar atrás das grades, fora preso por crer em algo e era bem melhor

estar no cárcere acreditando em qualquer coisa do que estar livre sem crer

em nada. Generoso como era, mesmo na cadeia acabaria assumindo parte

da culpa ao saber da notícia. Dalmácio esperava que amigos e conhecidos

comuns tivessem o tato de lhe poupar a má nova.

– Mulatas?

Finalmente o Deutsche falava de algo sério. Sim, no Brasilien

mulatas é o que não faltava, donde sabia Herr Fritz que mulatas era outra

imagem de marca do Brasilien? Num português certamente aprendido na

cama, seu vizinho tentava fazer-se poliglota:

– Eu gosta mulatas. Mulatas muito bom corrazón. Eu amo mulatas

bom corrazón.

“E que coração!”, se dizia Dalmácio, tentando explicar ao Fritz que

mulatas provocavam cris es cardíacas ao desfilar nas ruas gingando o

corrazón, o alemão não entendia patavinas de sua metáfora e ele se

divertia interiormente com aquela carência absoluta de humor, vai ver que

o Fritz gostava mesmo era do coração das mulatas. No fundo, estava

tranqüilo, como é tranqüilo todo homem que sabe o que vai fazer.

139

Tudo quanto fosse bom ou belo parecia fazer-lhe mal. A



generosidade e a bonomia de Franco em Gênova, seu amor facti, como

diria Nietzsche, aquele festival de sensualidade e cores em Barcelona,

aquela Paris de braços e pernas abertas, onde zanzou como um zumbi

pelo espaço de um dia, como para despedir-se, cuidando de ficar com os

vinténs suficientes para chegar ao término de seu desastrado itinerário –

talvez entendesse agora porque gostava de hotéis chamados Terminus –

toda aquela orgia oferta a quem tivesse um trabalho ou dinheiro o

empurrava cada vez mais e mais ao “imóvel ponto onde tudo era dança”.

Difícil se fazer entender quando se vive e se pensa gangasrotogati

– dizia Dalmácio a seus botões naquela glacial tarde de dezembro,

enquanto subia o escorregadio aclive rumo ao castelo de Neuschwanstein.

Principalmente quando se vive entre homens que vivem e pensam

kurmagati, ou no máximo, madeikagati. Ao ler pela primeira vez este

aforismo se perguntara se Nietzsche já não começava a mergulhar na

grande noite da loucura. Ainda não. O homem não falara em sânscrito

toda sua vida? De fato, não era fácil viver e pensar do tamanho do

Ganges, entre homens que viviam e pensavam como tartarugas, quando

não a saltos de rãs.

Quando imaginava aquela alma do tamanho do Ganges implorando

uma migalha de afeto a Lou Salomé, propondo casamento a Mathilde

Trampedach, apenas três dias após conhecê-la, Dalmácio sorria

amargamente por dentro: “Senhorita, tomai vosso coração com as duas

mãos para não vos espantar com a proposta que vos quero fazer:

desejaríeis ser minha esposa?” Mas o mesmo não parecia a Mathilde. E a

raça infame das feministas pretendia ver em Lou Salomé uma precursora,

a mulher que exigia ser tratada pelo poeta como igual. Mas como poderia

Nietzsche tratar alguém como igual?

Vinha-lhe à mente aquela introdução majestosa do livro que se

apressara em acabar, prevendo a aproximação das trevas: “Ouvi-me! Eu

sou alguém e sobretudo, não me confundais com qualquer um”. No

entanto, haviam-no confundido. O homem mais sublime do século

acabara contraindo sifílis em um prostíbulo, numa relação que para muitos

de seus biógrafos fora a única de sua vida. Não era fácil ser

gangasrotogati.

Ludwig o teria conhecido? Talvez Wagner lhe tivesse falado do

obscuro professor de Bale. O rei louco, como diziam os bávaros, teria

talvez entendido o poeta que rumava à loucura. Mas Nietzsche tivera um

príncipe a protegê-lo, e ele não tinha sequer pai ou mãe ou amigo ou

salvação à vista. 140

A altura e a neve lhe pesam nos pés e pulmões. O dia é luminoso,

embora sem sol, em virtude do lençol branco que cobre os galhos

despidos da floresta. Cá e lá, um ruído surdo de neve – o límpido instante

da queda? – quebra o silêncio abissal da montanha. Após meia hora de

lenta ascensão, encimando as copas encanecidas pelo inverno, emerge

difuso o donjon de onde Ludwig contemplava o vale em que se refugiara.

O momento era mágico, as linhas da torre pareciam partir dos galhos

hirtos e se confundiam com o cinza do firmamento. “Chique – pensou –

acabar em Neuschwanstein não é para qualquer pé-de-chinelo”.

O castelo o fazia evocar Porto alegre, o filme de Visconti no cine

Vitória, e naquela noite tomara a decisão de não morrer sem antes visitálo.

Lembrava uma discussão no Chalé com Soderman, que na época além

de crítico literário se pretendia crítico cinematográfico – fora Cristiano

quem o apelidara de deusa Shiva, tinha braços para tudo – e Soderman,

apoiado no balcão, com a xícara de cafezinho imóvel ante a boca, fora

definitivo: “obra menor, decadente”. Mas quem pensava ser aquele

critiquinho, homenzinho de vida e hábitos regulares, que mais não lhe

permitiam os magros centavos pagos pelo Suplemento Rural das Letras,

quem julgava ser para, do alto da tribuna do Chalé, condenar

peremptoriamente como decadente e obra menor a análise feita por um

dos mais lúcidos cineastas da época, em torno à vida de um homem

sensível, desesperado – e o pior – detentor do Poder? Imaginasse

Visconti o ar superior e tranqüilo com que Soderman, entre um cafezinho

e outro, condenava o seu filme, talvez nem ousasse distribuí-lo no Brasil,

aquele país maravilhoso em que um intelectual que jamais abrira uma lata

de negativos se arvorava – árvore? Onde uma árvore? – em juiz de

Suprema Instância na condenação ou absolvição de uma obra de arte.

Entrou no castelo. Antes de começar o passeio, pensou em mandar

um postal para Cristiano, aquele distante papo em Lisboa lhe trouxera

paz. Mas agora postal algum, frase alguma teria sentido, só serviria para

intensificar sua dor. Apalpou com carinho a sacola. Mais algumas horas

de angústia, ainda. 141

Ao percorrer as salas de Neuschwanstein, não conseguia sair do

filme de Visconti, há tanto tempo visto lá no Sul. Talvez seus pés

estivessem pisando pela primeira aqueles tapetes, mas há muito seu

espírito já adejara por entre aquelas paredes, caminhando ao lado do rei

louco, consolando-o da incompreensão de seus ministros e de sua época.

Ludwig se recusava aos prazeres oferecidos pelas damas da corte paras

buscá-lo entre seus criados. O país estava em guerra e o rei ignorava

solenemente o fato. “Diga aos generais que desconheço esta guerra”. Não

havia anestésico nos campos de batalha por falta de dinheiro, enquanto o

rei se preocupava com uma sala para os concertos de Wagner e com o

pagamento das dívidas do compositor. Suspirou com alívio quando seu

exército capitulou. Isola-se aos poucos da corte, encerrando-se com seus

criados, solícitos a qualquer capricho seu.

Na sala de jantar, Dalmácio contempla a mesa que descia até a

cozinha e depois voltava para que o rei não visse – ou se escondesse de –

seus semelhantes. Desejava sumir da memória das homens, quisera

inclusive evitar o assassinato, reis assassinados permaneciam sempre

vivos na História. Quisera permanecer um enigma, para si e para outros.

Parecia tê-lo conseguido. Ludwig recordava a Dalmácio aquele momento

soberbo de Ney Messias, o Construtor de Mistérios, o genial e solitário

pensador solenemente ignorado pelos donos da cultura gaúcha: “A

identidade é um pélago, um abismo, uma verticalidade em que se cai

continuamente, porque não tem fundo: o nome é um momento da queda,

um limpo instante do despenhadeiro”.

O momento da queda. O limpo instante do despenhadeiro.

Dalmácio entendia agora porque a frase o tocara tão fundo. Premonição?

Desconhecia seu íntimo, mas às vezes recebia avisos, frases que lhe

vinham ao cérebro não sabia de que abismos, como se um outro

interferisse nele, Dalmácio, e o impelisse a desocupar a carcaça para

deixar, ao outro, espaço. Porque a identidade, como dizia o Ney, não

estava no nome, nem mesmo na pessoa: chorava e cantava na incógnita

eterna do “quem é?”, a mais tremenda pergunta que um homem podia

fazer a respeito de si próprio e a respeito dos outros.

Permaneceu longo tempo na sala destinada a Wagner. Ludwig não

chegara a vê-la concluída, não tivera a ventura de nela ouvir seu protegido.

Músicas estranhas começavam a invadir seus pensamentos, que em

verdade nada tinham a ver com Ludwig ou Wagner, ou talvez tivessem,

sim, certamente teriam, porque os homens que haviam ousado mergulhar

no pélago da identidade eram no fundo todos iguais, não havia diferença

alguma entre Swift ou Nietzsche, Wagner ou Pessoa.

Melodia vaga 142

para ti se eleva.

E, chorando, leva

o teu coração,

já de dor exausto,

e sonhando o afaga.

Os teus olhos, Fausto,

não mais chorarão.

Pessoa. Outro gangasrotogati. Arma escolhida: cirrose hepática.

Apertou novamente a sacola contra o corpo, e o universo lhe pareceu uma

obra prima de ironia. Homem algum conhece alguém, já que sequer

conhece a si mesmo. Os raros turistas que visitavam o castelo naquele frio

dezembro imaginariam estar roçando com um viajante que intimamente já

dissera adeus à raça humana?

Ou vice-versa. Quem sabe aquela espanhola solitária que percorria

as salas em ritmo vagabundo, uma sombra de tristeza nos olhos, daquelas

tristezas que prometem uma ternura imensa, quem sabe ela não o estaria

procurando, quem sabe ela não o traria de volta à vida? Como abordá-la,


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