palavras que Juliano não disse.
Antes de ler os jornais com mais atenção, Juliano mandou fechar a
boca imediatamente e convocou os melhores amigos da cúpula para uma
reunião na casa de Luz, que era um bom ponto de observação da favela.
Foram convocados Du, Mendonça, Careca e os cunhados Alen e Paulo
Roberto. Mas logo o barraco ficou cheio de homens, que queriam ler a
entrevista bombástica do chefe. Alguns ficaram preocupados com o não
cumprimento do acordo.
- Porra, não tinha ficado combinado uma coisa? Cumé que saiu o teu
nome assim, com foto e tudo? - perguntou Careca.
- Você ouviu, caralho. Todo mundo ouviu, caralho. Foi combinado:
meu nome não, nem o do morro. Mas aqueles viados não quiseram sabê,
caralho - esbravejou Juliano.
Luz interferiu sem poupar críticas ao chefe:
- Sinceramente, Juliano. Tu vacilô legal, hein? Cumé que tu acredita
em repórter? Tu não lembra da sacanagem que fizeram aqui no tempo do
Cabeludo? - disse Luz.
- Tu não sabe o que significa palavra? Palavra de honra, caralho! -
retrucou Juliano.
- Tu acha o quê? Que papo antigo, Juliano. Carniceiro tem palavra?
Eles querem é te vê morto! - rebateu Luz.
Alguns trechos da entrevista, reproduzidos com inverdades, revoltaram
Juliano. De todos, o mais grave era a suposta resposta que ele deu
quando perguntaram se tinha algum vício.
- Eu respondi: não bebo, não fumo, não cheiro. Eu só fumo o mato
certo. E olha o que esses putos escreveram aqui, caralho! Tô fudido!
A diferença na reprodução das palavras de Juliano para a questão
mais grave - a suposta confissão de ser um assassino frio - foi explicada
cinco anos depois pelos três repórteres.
A declaração de Juliano já teria gerado dúvidas na própria madrugada
de sábado. Como eles não usaram o gravador, os três se reuniram depois
da entrevista para checar todas as respostas, justamente para evitar a divulgação
de conteúdos diferentes em cada jornal.
Sobre a questão mais delicada, não houve consenso e cada um publicou
a seu modo. Os três concordam que um deles havia perguntado a
Juliano se ele tinha algum vício, mas cada um teria ouvido uma resposta
diferente. Nelito Fernandes não entendeu direito a resposta, que teria
sido:
“Nunca fiz isso. Eu não cheiro, não fumo, não bebo, só fumo o mato
certo,” uma forma de admitir que é usuário de maconha. Na dúvida, Nelito
optou pela prudência: não reproduziu a frase na entrevista, atitude que
o levou a ser cobrado na redação por ter sido furado pelos concorrentes.
Em O Dia, Silvio Barsetti reproduziu a resposta com final diferente,
mudando completamente o significado: “Nunca fiz isso. Eu não cheiro,
não fumo, não bebo. Só mato o certo.” Ele disse que também teve dúvidas
e acha que Juliano pode ter dito uma das três seguintes frases: “Eu
queimo o mato certo.” “Eu queimo e mato certo” e “Eu mato certo”.
Optou pela última, alegando que era coerente com a ameaça feita por
Juliano depois do fim da entrevista.
- Se no final ele fala que “Se vocês não cumprirem o acordo eu mando
buscar vocês” é porque ele mata certo. Ele vai buscar a gente para
conversar? Então eu acho que esse final ratifica a dúvida do meio da
entrevista.
Marcelo Moreira escreveu no Jornal do Brasil uma forma ainda mais
alterada da frase atribuída a Juliano:
“Eu não bebo, não fumo e não cheiro. Meu único vício é matar, mas
só mato quem merece morrer.”
Anos depois Moreira admitiu ter feito uma interpretação errada da
frase. Atribuiu o erro ao clima de tensão em que foi feita a entrevista.
Segundo ele, não dava para pedir que repetisse uma frase mal ouvida.
Ele acha que também pode ter sido influenciado pelo depoimento que
ouviu na favela de um bêbado que teria matado uma mulher a mando de
Juliano.
- A gente não quis exagerar em nada, não teve leviandade nenhuma,
sabe por quê? Não precisava ele falar. Eu já sabia que ele era violento. Só
que naquele momento eu acho que ele não falou isso.
A repercussão da entrevista, considerada uma afronta às autoridades,
desencadeou no mesmo dia o início de uma perseguição a Juliano pela
justiça e nas ruas. A Delegacia de Repressão a Entorpecentes abriu um
inquérito por tráfico de drogas, formação de quadrilha armada e apologia
ao crime. E, usando suas declarações aos jornais, formalizou um pedido
de prisão preventiva contra ele.
Os produtores americanos ainda não tinham acabado a desmontagem
dos equipamentos das filmagens de domingo quando os olheiros da boca
avisaram que os soldados Peninha, Rambo e alguns dos inimigos de sempre
estavam de volta. E em vários momentos do dia, enquanto os agentes
secretos da P-2 se infiltravam nas áreas de maior movimento, os soldados
das forças especiais do Bope eram lançados de um helicóptero sobre a
favela.
Os homens de Juliano passaram a manhã lendo e relendo os jornais
no barraco de Luz. Em alguns momentos tiveram que consolar Juliano,
que chorava, manifestando ódio a si mesmo. Não se perdoava por ter
dado a entrevista, apesar do alerta feito pelos amigos, como o produtor
Tim Maia.
No próprio sábado à tarde, véspera das gravações, ele avisou a Juliano
para ter cuidado com os jornalistas devido à polêmica que já existia na
imprensa sobre a segurança particular de Michael Jackson.
- Eu errei. Eu errei! - dizia Juliano para si mesmo.
Diante da fragilidade do chefe, o grupo se dividiu. Os homens que
vieram de outros morros, como Henrique, da Rocinha, e os irmãos de
Juliano, Santo e Difê, do Cantagalo, foram para suas casas com intenção
de só voltar ao morro depois que passasse a pressão da polícia. Parte dos
que trabalharam na segurança de Michael Jackson e que tiveram suas
fichas registradas no Batalhão da PM fugiu com medo de represálias às
críticas feitas por Juliano à polícia. Os criados no morro, base da Turma
da Xuxa, resolveram continuar “entocados” em seus barracos, já que a
maioria ainda não era conhecida como traficante. E o chefe?
- Daqui só saio morto! - exagerou Juliano.
Paulo Roberto e Alen ficaram encarregados de, na mesma segunda-
feira, enterrar as principais armas e o estoque de pouco mais de um quilo
de cocaína. Du recebeu ordens de não sair de casa porque andava cheirando
pó demais. Poderia ser preso e pôr em risco o grupo. O chefe dos
bondes, Careca, ficaria de plantão na casa de Cristina dos Olhos, para
ser facilmente acionado como piloto se Juliano decidisse fugir da favela.
Só os mais jovens continuariam com suas funções, que agora consistiam
exclusivamente em andar ou correr pelos becos. Os adolescentes Pardal
e Nem se juntaram a Paranóia em missões secretas encomendadas por
Juliano e Luz, como a visita à olheira Mãe Brava, que continuava trabalhando
no seu botequim de espionagem.
- O Juliano mandô a senhora fechá a birosca e voltá com os seus filhos
para o Cantagalo, dona Brava - disse Paranóia.
Mãe Brava achou a ordem absurda. Estava revoltada com o próprio
Juliano por ele ter-se deixado enganar pelos repórteres. Mas resolveu
ficar no morro para ajudar a protegê-lo. Diante do risco da perseguição,
preferiu continuar perto do filho de criação.
- Olha aqui, ó. Diz pro Juliano que isso não é idéia de bandido. É
coisa de mamão com açúcar, que fica falando à toa por aí.
- Mas a polícia tá chegando, pode ficá perigoso pra senhora - insistiu
Paranóia.
- Que sabê de uma coisa, moleque? Quando vocês estavam vindo eu
já estava aposentada, tá certo? Dessa merda de crime quem entende aqui
sô eu.
- Mas dona Brava...
Irritada, Mãe Brava deixou a filha cuidando do botequim e foi até o
barraco de Luz para uma conversa pessoal com Juliano. Sentou à mesa da
cozinha, onde alguns homens liam a reportagem do Jornal do Brasil, que
ganhou o destaque de duas páginas. Brava ouviu a leitura e depois releu
a entrevista em voz alta, para provocar a discussão entre eles. E criticou
as preocupações comunitárias do filho adotivo.
- Que papo é esse de revolução social, Juliano? - perguntou Brava.
- Você não entende a importância disso, mãezinha - respondeu Juliano.
- Que conversa.., aqui no morro só se respeita a lei do Muricy: cada
um por si e o resto que se foda! - retrucou Brava.
- Isso é a lei dos traíras, um comendo o outro... Não pode sê assim
- disse Juliano.
- Não pode, mas é. Você esqueceu o que fizeram com o Orlando Jogador?
- perguntou Brava.
- Isso é a filosofia do Terceiro Comando - respondeu Juliano.
- Não, é a do crime e a do país todo de hoje em dia. Te engulo antes
que tu me engula. Os repórteres te engoliram nessa... - disse Brava.
Durante toda a segunda-feira, Juliano saiu da toca uma única vez:
para um encontro com o pessoal do clipe de Michael Jackson. Apesar
da tensão causada pela entrevista, eles queriam acertar todas as contas.
Careca fez uma vistoria no caminho percorrido por Juliano até a casa de
Maria Inês, a moradora que durante a pré-produção das filmagens foi o
elo entre os produtores, a Associação de Moradores e o pessoal da boca.
Por iniciativa própria, os produtores chegaram à reunião com cinco
mil dólares para serem distribuídos na favela, como forma de agradecer o
empenho de todos. Juliano, que passara a noite acordado, dormia sobre o
sofá de Maria Inês. Ainda cansado, continuou sonolento mesmo quando
recebeu o dinheiro dos produtores. Sem pensar muito, Juliano repassou
mil dólares para cada uma das duas creches do morro, mil para a Associação
de Moradores, mil para a Escola de Samba e mil para a construção
de um ambulatório de saúde.
- Faltaram 700 dólares para o Zé Mário - reclamou Juliano.
Os produtores não gostaram da idéia porque Zé Mário, um dos diretores
da Escola de Samba, não havia feito nada de importante para as
filmagens e só se apresentou ao grupo na hora do pagamento.
Mesmo assim, para não criar constrangimento, combinaram voltar
outro dia para atender ao pedido de Juliano. O pessoal da produção pagaria
dias depois. Mas mesmo assim alguns homens ficaram insatisfeitos.
Não gostaram da reforma que fizeram no Ambulatório do Dedé, usado
como apoio das filmagens. Os aparelhos de ar condicionado eram velhos
e, uma semana depois da passagem de Michael Jackson pelo morro, já
estavam enguiçados.
- Eles não se preocuparam com a gente - disse Luz, depois de passada
a euforia da festa.
As declarações de Juliano tiveram repercussão incomum para uma
entrevista de um criminoso. Provocaram reações de celebridades das áreas
jurídica, religiosa, acadêmica, artística e das pessoas comuns.
O adjunto do general, subsecretário Hélio Luz, conhecido pelas posições
políticas de esquerda, duvidou da veracidade das declarações de VP
por considerá-lo um “cover”, um farsante, visto pela polícia não como
dono do morro, mas um traficante de terceiro escalão.
- Ele é um camelô do pó - disse Hélio Luz.
O governador Marcello Alencar, acusado por Juliano de defender a
política de extermínio nos morros da cidade, contra-atacou:
“A provocação dele merece uma resposta à altura. Ele desrespeitou
nossas instituições e será preso. É uma questão de honra. Esses bandidos
posam de injustiçados sociais, mas instauram o terror em suas comunidades.
Eles não podem ser tratados como heróis.”
A pressão da polícia manteve a boca desativada durante quase toda a
semana; só voltando a funcionar parcialmente no sábado, de forma discreta,
sem nenhum homem armado a sua volta. Mas Juliano continuou
escondido, usando as mulheres do morro como tática de segurança. Continuaria
o romance com a namorada misteriosa da zona sul. Mas naquele
dia, ela teve que se afastar, deixando de subir o morro. As mudanças de
esconderijo, sempre feitas à noite, eram precedidas do levantamento de
informação pelos olheiros adolescentes, sem o uso do telefone celular,
prudentemente desligado. Também por prudência Juliano só aceitou o
abrigo das mulheres de sua confiança, uma delas, Veridiana, providenciou
a permissão dos vizinhos para escondê-lo a cada dia na casa de um
deles.
O vínculo com Veridiana vinha desde os anos 80, quando Juliano freqüentava
a casa dela para ter relações com a mãe Madá, que se separou
do marido e foi morar na favela da Rocinha. Estavam namorando desde
o seu retorno ao morro em 1991. Apesar de terem tido uma filha, nunca
totalmente reconhecida pelo pai, a relação deles se fortaleceu a partir do
dia em que Juliano convidou o irmão de Veridiana, Alen, para um cargo
de confiança da boca. Em 1996 Veridiana tinha 17 anos de idade e começava
a se envolver nos assuntos relacionados ao tráfico. Um começo
considerado infeliz, marcado por um erro que mais uma vez tiraria Juliano
do morro.
Eles dormiram juntos na noite de sábado e ao meio-dia de domingo
foram acordados por Careca, que foi levar o dinheiro do movimento minguado
da boca e informar que finalmente a polícia parecia ter saído da
favela. Era carnaval e Juliano pretendia assistir aos desfiles das escolas
de samba pela televisão na casa de algum amigo. Já Veridiana, que se
queixava do calor de 40 graus, queria ir à praia do Leme.
Às duas horas da tarde, Veridiana vestiu um biquíni novo e, já pronta
para sair, convidou Juliano, de brincadeira, para acompanhá-la até a
praia.
- Vamos lá, meu amor. Eu vou fazer o maior sucesso com um homem
famoso desse ao meu lado. Já estou imaginando os comentários...
- Tu tá de sacanagem... Vai na boa, mas cuidado com a paquera, hein?
Tu é muito gata, Veridiana.
- Não se preocupe. Se algum cara se interessar, digo que eu tenho
dono e mostro a tua foto no jornal, que acha?
- Tu tá de sacanagem!
Juliano escolheu a casa de Funfa para assistir ao carnaval na TV. Embrulhou
uma pequena porção de maconha num maço de cigarro vazio,
pegou uma Bíblia de bolso, o celular e antes de sair da casa subiu até a
laje para checar o movimento na rua. Normalmente as namoradas saem
na frente, fazem todo o percurso até o destino e depois avisam se a área
está policiada ou não. Dessa vez, como o caminho parecia livre, Veridiana
achou que não precisava fazer a checagem e deu o sinal verde para
Juliano.
- Vô até ali fumá um. Quero ficá doidão pra vê o desfile. Fui! - disse,
ao se despedir de Veridiana.
Depois de uma semana sem aparecer na rua durante o dia, Juliano
saiu do barraco onde estivera escondido com Veridiana animado e confiante.
Mas logo achou que a descida cheia de curvas do beco da Boa Fé
estava deserta demais para uma tarde de domingo. Ele tinha por hábito
imaginar as alternativas de fuga enquanto caminhava. Dessa vez, passou
os olhos pelo valão do esgoto, depois pela janela aberta de um barraco e
calculou que poderia subir até a laje e correr para os lados de dona Virgínia,
área de concentração da quadrilha nesses dias. No sentido contrário,
três homens reclamavam do calor acentuado pela roupa azul-marinho e
dos equipamentos pesados demais para uma subida tão íngreme. Subiam
passo a passo, um pouco à frente dos outros cinco colegas. Eles formavam
uma das três turmas do Bope que caçavam Juliano nesse domingo.
Antes de cada curva, o soldado Getúlio Soares se adiantava dos demais
com o fuzil em posição de tiro horizontal para averiguar como estava o
caminho à frente. Os outros apontavam as armas para o alto e em todas as
direções da favela, num ritual repetido à exaustão nos últimos sete dias.
Quando Juliano viu o soldado Soares na curva à sua frente, instintivamente
esboçou um giro do corpo para voltar. Desistiu assim que percebeu
que já estava na mira do fuzil.
- Sou eu mesmo. Perdi! - disse Juliano à distância.
O soldado Soares sabia que Juliano era um guerreiro “abusado”, que
já havia trocado tiros com a polícia. Receoso, protegeu-se junto à parede
do barraco da curva, mandou que ele se aproximasse e avisou o sargento
Roberto Fraga e Cabo Dario que vinham logo atrás.
- É o cara! Acho que é o cara! - disse o soldado.
- Calma, sô trabalhador - disse Juliano, já bem perto deles,
De imediato chamou a atenção dos PMs o aparelho celular, que na
época ainda era raridade nos morros.
- Como se explica esse aparelho aqui? - perguntou Soares.
- Trabalhador usa telefone - respondeu Juliano.
Em seguida encontraram a maconha enrolada no maço de cigarro.
- Trabalhador também fuma - argumentou Juliano, sem muita convicção,
porque seus documentos verdadeiros já estavam nas mãos do sargento
Fraga.
Uma foto de Juliano, que o sargento Fraga trazia no bolso, em confronto
com os documentos, eliminou todas as dúvidas. Ao constatar que
muitos moradores observavam a cena da prisão das janelas e que alguns
já se aproximavam para ver de perto, o sargento mandou que ele fosse
levado para o pé do morro. E, por temer algum ataque no caminho, imediatamente
pediu reforço.
O único “ataque” foi uma tentativa de suborno. Na versão do sargento
Fraga, Juliano aproveitou uma conversa a sós para fazer uma proposta
financeira em troca do relaxamento do flagrante.
- Pago cinco mil pro senhor me liberá dessa - teria dito Juliano.
Minutos depois, já no xadrez da viatura policial, teria havido mais
uma tentativa.
- Eu tenho um AK-47, cinco pistolas e duas metralhadoras. Pelo celular,
eu mando trazê já pra vocês aqui...
Diante da negativa dos PMs, Juliano teria feito um último apelo.
- Eu não posso sê preso. O Elias Maluco e o Uê vão querê tomá o
morro. Muita gente inocente vai morrê na guerra... Vocês têm que me
liberá.
Na Delegacia de Botafogo, Juliano já era aguardado com a expectativa
reservada às celebridades. Uma multidão de policiais e jornalistas se
empurrava para acompanhar de perto a sua chegada.
Algemado, Juliano não quis falar com ninguém. Disse que só prestaria
depoimento em juízo, acompanhado de um advogado. Diante da
insistência dos policiais, resolveu falar um pouco.
Respondeu apenas a uma pergunta sobre o motivo de sua prisão.
- Essa pergunta tem que sê feita aos carniceiros. Eles que me puseram
na cadeia, destruíram a minha vida.
A vida dos três repórteres que o entrevistaram também não seria mais
a mesma. No caso de Nelito Fernandes, as mudanças começaram um dia
após a publicação da entrevista, quando recebeu uma ameaça por telefo
ne. Era a voz de um jovem.
- Nelito?
- Falando. Pode falar.
- Mermão! Tu não falô que não ia dá o nome do cara?
- Olha, posso te explicar?
- Explicar é o caralho! Falô que não ia dá o nome do cara!
- Não foi uma decisão minha.
- Não interessa! O jornal tá cheio de dinheiro. Você agora tá fudido e
vai morrê. Se eu sô tu eu tiro férias.
Nelito saiu do jornal com escolta policial, passou em casa rapidamente
para pegar algumas roupas e se refugiou durante 15 dias fora do
estado. De volta ao Rio, passou a dormir cada noite na casa de um amigo
diferente e deixou de assinar suas reportagens em O Globo. Até o seu
pai, que tem o nome igual, teve de mudar de apartamento para fugir das
ameaças. Cinco anos depois, Nelito ainda evitava dar o seu nome e telefone
para as fontes de suas reportagens, assim como registrar em seu
nome o carro, o telefone e qualquer serviço público. Mudou também sua
postura profissional. Quando voltou a se envolver em novas reportagens
de denúncia, passou a perguntar para si mesmo: “Será que ele não vai
querer me matar?”
Em alguns momentos, Nelito Fernandes teve ódio de Juliano por causa
do episódio das ameaças. Depois admitiu que, na época da entrevista,
quando tinha 25 anos, faltara-lhe maturidade para uma missão tão delicada.
Passou a entender que a experiência havia servido como uma boa
lição, a de nunca assumir com os entrevistados um compromisso que não
tivesse condições de honrar.
- Pode-se dizer que a vida dele ficou marcada: era uma coisa antes da
entrevista e virou outra depois da entrevista. A minha também.
Marcelo Moreira também recebeu ameaças indiretas por telefone. E,
por coincidência ou não, na semana em que Juliano foi preso, alguém
disparou um tiro na janela da redação do Jornal do Brasil.
O atentado nunca foi esclarecido. Os chefes da redação sugeriram
que ele fosse trabalhar algum tempo na Argentina, mas Moreira preferiu
continuar na cidade.
- Se eu for me mudar sempre que me envolver com essas reportagens
mais complicadas, como vai ser? - perguntou Moreira para si mesmo.
Barsetti também preferiu tomar os cuidados básicos de segurança a
mudanças mais radicais. Ele só ficou mais preocupado quando foi chamado
a depor na Justiça contra Juliano e fazer o reconhecimento dele
diante de uma juíza linha-dura, Denise Frossard, na época famosa por
ter mandado para a cadeia os maiores chefões do jogo do bicho do Rio
de Janeiro. A entrevista estarrecedora tinha sido a base de todo o processo,
que acusava Juliano pelos crimes de tráfico de drogas, formação de
quadrilha, lesões corporais, homicídio e apologia ao crime. No processo,
ficou registrado um elogio ao trabalho dos três repórteres.
“É de se louvar o trabalho da imprensa, em especial dos jornais O
Globo, Jornal do Brasil e O Dia, que com suas reportagens por ocasião
da visita do pop-star Michael Jackson conseguiram entrevistar o chefe do
tráfico do morro Dona Marta, e com isso teve início o inquérito cujas peças
servem de informações ao presente processo. É a astúcia do jornalista
numa imprensa livre e democrática que faz clarear a verdade, fazendo
renascer os brios dos homens públicos.”
Diante da juíza Frossard, no entanto, os três repórteres não quiseram
ir além das denúncias já feitas na entrevista. Convocados para fazer o reconhecimento
de Juliano, que estava na sala da juíza, nenhum deles disse
ter condições de identificá-lo como sendo o homem que dera a entrevista
na favela Santa Marta. A experiente Frossard percebeu que eles haviam
combinado uma resposta negativa e tentou pressioná-los a falar a verdade,
batendo com a mão sobre a mesa.
- Olha, vocês têm que colaborar com a Justiça. Sigam o meu exemplo.
Se eu tivesse medo de morrer, não teria prendido os bicheiros - protestou
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