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Por que o filho quer matar o pai?



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Por que o filho quer matar o pai?

Nadiá Paulo Ferreira

É preciso marcar as diferenças fundamentais entre Freud e

Lacan, em torno da questão da paternidade, tema sobre o qual

venho insistindo nesta coluna. Em primeiro lugar, a palavra pai e

o nome de Freud, provavelmente, levam o leitor a uma associação

imediata: o complexo de Édipo. Em segundo lugar, já foi muito

divulgado que o ensino do psicanalista francês, Jacques Lacan,

visava a um retorno aos textos freudianos. Permanecem, ainda,

encobertas por névoas, as diferenças que começam a surgir na

trajetória de Lacan, na medida em que ele continua insistindo na

questão colocada por Freud: o que é um pai?

Em Freud, vamos encontrar três abordagens sobre o Édipo: a

tragédia de Sófocles, Édipo rei, o mito darwiniano do pai da horda

primitiva e a versão judaica sobre a história de Moisés. Aqui, só me

interessa destacar a teoria que Freud constrói sobre o complexo

edipiano, a partir de sua leitura do texto trágico: a trama se consti-

tui em torno do ciúme do filho em relação ao pai, na medida em que

este intervém para privar o filho do objeto de seu desejo, que é a

mãe. Daí surgiria o desejo do assassinato do pai, o recalcamento e o

retorno desse desejo, gerando o sentimento de culpa.



Lacan, a partir de 1969, avançando em suas reflexões, começa

a se diferenciar de Freud, o que faz com que no Seminário XVII,

O Avesso da Psicanálise (1969-70), considere o complexo de Édipo

como “sendo um sonho de Freud”. De discípulo a autor de uma

nova teoria sobre o pai, Lacan caminha em direção à construção

do conceito do Nome-do-Pai, percurso que não poderia ter sido

realizado sem Freud.

Não se trata de colocar Lacan contra Freud, oposição bem ao

gosto da mídia, onde tudo tem que virar um grande espetáculo,

mas sim de apontar as distinções entre eles. Neste caminho, nos

próximos artigos, vou falar da ligação entre o pai e a lei e da

importância que a palavra da mãe adquire, ratificando ou tornan-

do sem efeito a palavra do pai.


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

38

A importância da palavra da mãe

Nadiá Paulo Ferreira

Qual a função do pai para uma criança? Lacan desenvolve

esta questão, principalmente, em dois seminários: A Relação de

Objeto, 1956-1957, e As Formações do Inconsciente, 1957-1958,

ambos publicados pela Jorge Zahar. Deixo o primeiro em suspenso,

aguçando a curiosidade do leitor — para, quem sabe, se interessar

por sua leitura — e vou me deter no segundo. Neste, o pai adquire

o valor de metáfora e, como tal, encarna a lei. O que é uma me-

táfora? É a produção de um sentido novo, realizado pela substitui-

ção de uma palavra por outra palavra, a partir de uma identificação

associativa. Por exemplo, aterrado, inicialmente, significava cober-

to por terra. O horror, associado ao fato de ser enterrado vivo, tão

explorado pelos filmes de terror, produz a substituição da expres-

são “ser enterrado vivo” por “aterrado” que passa, então, a signifi-

car um medo domesticado. Nesse sentido, a função do pai, como

representante da Lei, é transmitida pelo desejo da mãe, cujo signifi-

cado é sempre um enigma sem decifração. Vários sentidos serão

produzidos para serem colocados no lugar desse enigma. Estes sen-

tidos se articulam com a versão de uma história familiar, onde a

criança ocupa um lugar determinado na subjetividade materna.



Nesta abordagem, algumas diferenças em relação a Freud já

podem ser apontadas. A relação da criança com o pai se organiza

em torno da palavra da mãe. Ou seja, como a mãe se posiciona

subjetivamente em relação à Lei e, conseqüentemente, ao homem,

que reconhece como pai de seu filho. É isto que, em última instân-

cia, determina a constituição do lugar de um filho. Quanto à fun-

ção paterna, dando origem à imagem do pai, tudo dependerá de

como o pai irá encarnar essa função simbólica, dando ou não pro-

vas do vigor da Lei. A imagem de um pai potente ou impotente —


eis a questão. Um pai que tem ou não alguma coisa preciosa para

doar à mãe. Um pai a quem a mãe, como uma mulher, irá ou não

dirigir seu desejo. Enfim, um pai, portador de bens, com quem o

filho poderá se identificar e a filha desejar.




Psicanálise e Nosso Tempo

39

A ligação entre o pai e a Lei

Nadiá Paulo Ferreira

Insistir na indagação freudiana sobre o que é o pai levou Jacques

Lacan a introduzir na psicanálise o Nome-do-Pai. É na tradição

judaica que irá encontrar a relação entre o Nome-do-Pai e a Lei.

No Antigo Testamento, “Êxodus”, 3, quando Deus aparece para

Moisés, numa chama de fogo, que saía do meio duma sarça,



depois de se apresentar como sendo o Deus de Moisés, o Deus de

Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó e o Deus de Israel, diz

que sabe do sofrimento dos seus filhos e que enviará Moisés para

salvá-los da opressão dos egípcios.



Em seguida, Moisés pergunta: – (...) se eles me disserem: Que

nome é o seu? Que lhes eu hei de responder? E Deus lhe respon-

de: – Eu sou aquele que sou.

A leitura desse episódio faz com que Lacan elabore uma das

funções do Nome-do-Pai, que é a nomeação. É a palavra do pai,

enquanto garantia da verdade, que determina o lugar de filho es-

colhido para uma missão. O desejo de Moisés é o desejo do Pai-

Todo-Poderoso. O Nome-de-Deus, como nome impronunciável,

aponta para uma falha, expressa no provérbio: pater semper

incertus est. A função do pai como nome remete para a impossibi-

lidade de saber a verdade sobre a paternidade. O que não implica

a desistência do homem em procurar esta verdade. Trata-se de

uma questão de fé. Hoje, com o avanço da ciência, pode-se dizer

quem não é o pai. Mas um exame de DNA não tira ninguém da

orfandade do amor paterno. Quem quer ser filho de um

espermatozóide? O mistério do Nome-de-Deus vem recobrir o que

permanece velado e sem decifração para todo ser falante. Desta

impossibilidade advêm os nomes do pai.



Para terminar esta série de textos em torno da paternidade,

coloco a seguinte indagação para o leitor: neste final de século, os

nomes, que se ancoram no Nome-do-Pai, não exercem mais a fun-

ção de outrora, na medida em que fracassam na sustentação do

vigor da Lei.




Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

40

A crença da discórdia psicanalítica

Nadiá Paulo Ferreira

A crença, que permanece até hoje em torno da auto-análise, está

diretamente ligada à história da psicanálise. Tudo começou com a

intensa amizade entre Sigmund Freud e o otorrinolaringologista

Wilhelm Fliess, atestada na vasta correspondência entre ambos. O

primeiro encontro aconteceu em outubro de 1887, portanto um ano

após o casamento de Freud com Marta, quando Fliess, de passagem

por Viena, é apresentado a Freud por Josef Breuer. Os temas dessa

correspondência, além do que se convencionou chamar de auto-

análise, eram os mais variados: problemas domésticos, estudos, pro-

jetos, casos clínicos, leituras, etc. A técnica para a auto-análise,

sustentada por uma interpretação das cartas de Freud, aconselha a

interpretação dos próprios sonhos, esquecimentos, atos falhos e a

análise de sintomas, tais como estado depressivo, dores de cabeça,

dores de barriga e etc.

O fato de Freud ter acreditado na auto-análise não significa

que tenha mantido essa crença para o resto de sua vida. Em 14 de

novembro de 1897, numa carta dirigida a Fliess, temos o testemu-

nho desta mudança. Inicialmente ele diz: Antes da viagem de féri-

as, eu lhe disse que o paciente mais importante para mim era eu

mesmo; e então, de repente, depois que voltei das férias, comecei

minha auto-análise, da qual não havia nenhum sinal na época.



Entretanto, no final dessa mesma carta, temos a constatação: Minha

auto-análise continua interrompida. Apercebi-me da razão que só


posso me analisar com o auxílio de conhecimentos objetivamente

adquiridos (como uma pessoa de fora). A verdadeira auto-análise é


impossível, caso contrário, não haveria doença [neurótica].

Por que os pós-freudianos fabricaram o mito da auto-análise,

tornando, inclusive, a análise interminável? Foi preciso surgir um

jovem médico, que não reconheceu neles a marca da letra freudiana

e, justamente por isso, deu início a um ensino, pautado pela reto-

mada dos textos freudianos, para desmistificar a auto-análise. Seu

nome era Jacques Lacan.


Psicanálise e Nosso Tempo

41

As muletas e a busca da felicidade

Nadiá Paulo Ferreira

Freud, no texto de 1930, O mal-estar na cultura, retomando

algumas questões, já abordadas em O futuro de uma ilusão, 1927,

ressalta a insistência do homem em alcançar a Felicidade. Esta

obstinação se sustenta na fé de que a busca da felicidade levaria à
evitação da dor e do sofrimento humanos. Sabemos que isto é uma

ilusão. Além das decepções, que todos nós enfrentamos no conví-

vio com nossos semelhantes, o corpo está condenado à decadência

e ao aniquilamento, segundo as palavras do próprio Freud. Do

nascimento à morte, o mundo impõe uma série de sofrimentos,

afastando o homem desta tão decantada Felicidade.



O desconforto do mundo nunca impediu a vivência de momen-

tos felizes, a invenção e a perseverança no fazer. Mas é preciso

não renunciar a uma posição desejante, o que coloca o sujeito cara

a cara com sua verdade que, como toda verdade, nunca se revela

por inteiro. A cada desejo realizado, alguma coisa falta, relançando

o desejo a um mais ainda que só termina quando a morte vem.

Mas, se o homem abre mão de se colocar como desejante, matan-

do o tempo, esquecendo o que não pode ser esquecido, que é ter a

morte como destino, restam algumas saídas: o sentimento de cul-

pa ou a necessidade de usar muletas.

O sentimento de culpa é um dos sintomas que caracterizam o

mal-estar do homem. A culpa é um afeto que não mente. Não há
remorso sem que o sujeito não se veja de alguma forma implicado.

Mas o recurso das muletas faz com que a culpa seja retirada do

sujeito e deslocada para um outro.

As múltiplas faces do Outro aliviam o sintoma. O sujeito, sem

implicação subjetiva, não faz outra coisa senão se queixar do Outro.

A cada lamento, uma satisfação com seu sintoma e com o descon-

certo do mundo. O gozo com a degradação da renúncia ao desejo

vela o horror do enigma, que causa o próprio sintoma do homem.




Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

42

O choro das almas aflitas

Nadiá Paulo Ferreira

Falei das muletas, usadas pelos homens, para aliviar o senti-

mento de culpa, isentando a responsabilidade de cada um com

seus sintomas. Vou me deter, precisamente, na contribuição da

ciência para a desculpabilização do sujeito.

Freud, antes de descobrir a psicanálise, usou a hipnose para li-

vrar seus pacientes dos sofrimentos, que se localizavam tanto no

corpo quanto na alma, provocando paralisias, dificuldades respira-

tórias, taquicardias, angústias, insônias e incapacidades, como é o

caso da mãe que não conseguia amamentar seus filhos recém-nasci-

dos. Aliás, esta mãe confessou sua vergonha a Freud, porque ape-

sar de sua “força de vontade”, só conseguiu amamentar seus filhos

submetendo-se à hipnose.

Estamos diante de uma questão ética: o sujeito, além de per-

manecer na ignorância, não é responsável pela superação do seu

sintoma. Aqui, o que está em jogo, é um tratamento terapêutico

que, ao domesticar o gozo extraído do sintoma, deixa a verdade

no esquecimento. Mas o que é esquecido retorna, repetindo o mes-

mo sintoma ou substituindo-o por outro. É por estas e outras es-

cutas que Freud, por ter insistido, tenazmente, na verdade, aban-

dona a hipnose (método catártico), descobre o inconsciente e in-

venta a psicanálise, cuja regra é a associação livre. É preciso dei-

xar o sujeito falar livremente, para que o analista possa intervir

em sua fala, fazendo com que o saber produzido pelo inconscien-

te seja incorporado pelo sujeito.

O que faz a ciência? Ignora todas as singularidades que consti-

tuem um sujeito, reduzindo-o a um corpo que, em determinado

momento, apresenta defeitos de funcionamento. A tendência, cada

vez mais, é identificar esses “defeitos” de fabricação na genética. A

descoberta de um gene no cromossomo permitirá a correção ou o

alívio do sofrimento. Do assassinato da ética do desejo advém a

inocência da vítima. Belas almas aflitas choram, sussurram, lamen-

tam o mal que o Outro cruel e impune espalha por esse mundo...


Psicanálise e Nosso Tempo

43

A moral que amplia a perversão

Nadiá Paulo Ferreira

Não faz ainda cinqüenta anos, tudo que estava ligado, explicita-

mente, ao sexo tinha que ser mantido em segredo. Não se falava de

sexo, cochichava-se entre risadinhas nervosas e olhares maliciosos.

A virgindade era o grande tabu que assombrava as mulheres, assim

como a iniciação sexual dos homens tinha que ser feita com prosti-

tutas. Quanto mais reprimida, mais a sexualidade transpirava pelos

poros: criança que ficava escondida muito quietinha estava fazendo

“besteira”; menino e menina juntos exigiam atenção redobrada, se

estivessem brincando de médico, aí, nem se fala, era “coisa feia” na

certa. Hoje, basta ligar o computador e escolher de ninfetas e ninfetos

a qualquer perversãozinha preferida ao olhar. O pavor ao vírus da

AIDS veio inclusive facilitar o sexo sem toques, bastando discar

um número para que uma voz se torne objeto de um gozo sexual que

dispensa o parceiro.

Freud, no texto “Moral sexual civilizada e doenças nervosas

modernas”, 1907, frisa com todas as letras que as imposições cul-

turais em relação ao sexo são a causa de um mal-estar na civiliza-

ção, já que as renúncias e os sacrifícios exigidos aos homens e às

mulheres não são poucos. Sem dúvida, a moral sexual de uma

determinada época indica as coordenadas das aflições e dos sofri-

mentos humanos. Mas o que se modificam são os valores e não a

imposição categórica de uma moral. Justamente por isto, Freud

pôde falar de “doença nervosa moderna” assim como nós, hoje,

podemos falar de subjetividade contemporânea.

Se a moral do século XIX abriu um campo fértil para as neu-

roses, será que a moral de nossos dias possibilita a multiplicação

da perversão? Não podemos negar que o progresso do capitalismo

erigiu um apelo ao gozo, que se substancializa no comércio prós-

pero e lucrativo da industrialização do sexo. Para onde caminha-

mos? Esta é a questão que deixo para você, leitor, pensar.


Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

44

Amor cortês I

O que é o amor cortês

Nadiá Paulo Ferreira

Inicio uma série de textos, nessa coluna, sobre o amor cortês.

Em primeiro lugar, trata-se de um tema que ultrapassou os estu-

dos literários. Em segundo lugar, Jacques Lacan, em seus seminá-

rios, levantou várias questões sobre o assunto, que possibilitam

uma nova abordagem.



O amor cortês está indissociavelmente ligado à história da poesia.

Na Idade Média, surgiu um gênero poético que tinha como tema o

amor não correspondido, que deveria ser decantado em regras bastan-

tes rígidas de cortesia, que ficaram conhecidas como Leis d’Amor. Os

estudiosos, que não conseguiram apreender este fenômeno, considera-

ram-no expressão de um fingimento ou de uma impostura. Não há
dúvida de que estamos diante de um amor inventado para fazer poesia.

Neste sentido, o amor cortês é produto de um artifício com a palavra.



Desventuras, sofrimentos, tormentos e desencontros tecem as tra-

mas de um amor que deve se apresentar como impossível. Logo, o

objeto amado só pode comparecer como inacessível. O poeta-trova-

dor, no lugar de amante, se coloca a serviço de sua amada, suplicando

não seu amor mas compaixão para sua dor. A mulher amada, tal

como o senhor feudal, além de vassalagem e fidelidade, exige um

tratamento especial que a coloque no lugar de soberana absoluta,

cultuada com delicadeza, afeto e admiração. Ou seja, que o amante

seja um cavalheiro.



Interessante observar que o lugar que é dado à mulher na poesia

é radicalmente diferente do lugar que lhe era reservado na sociedade

medieval. Esta dissonância não apontaria para o fato de que o amor

cortês revela o que está em jogo no amor? Não é o amor uma ficção

que se apresenta com valor de verdade para quem ama? Se o amor

cortês é sinônimo de amor impossível, trata-se de um amor que colo-

ca em cena o que a psicanálise considera o paradoxo do próprio amor:

quem ama experimenta alguma coisa da ordem da falta e quem é
amado não tem o que falta ao amante.


Psicanálise e Nosso Tempo

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Amor cortês II

O que é o verdadeiro amor

Nadiá Paulo Ferreira

Ressaltei a diferença de tratamento dos homens em relação às

mulheres, na Idade Média. No social, reduzidas à função da mater-

nidade, as mulheres ficavam subjugadas ao poder do homem, desde

o nascimento até a morte. Na poesia, sob a pena do poeta, a mulher

se transfigurava na Dama, à qual o trovador dedicaria seu amor,

sua vida, seus pensamentos, enfim, todo o sentido de sua existência.

Nesta época, estava reservado às mulheres o papel social de

filhas ou esposas. Como filhas, tinham um valor de troca a ser ne-

gociado no Contrato de Casamento. Como esposas, tinham a mes-

ma função que as fêmeas no reino animal: a reprodução da espécie.

O lugar recusado às mulheres no social é substituído pelo lugar que

será dado à Mulher na poesia.

Literalmente a serviço do Amor, o trovador iniciava uma batalha

que tinha como estratégia o segredo, a fidelidade, a humildade, a

idolatria e a inibição do sexual. A coisa amada só podia ser represen-

tada como enigma sem decifração assim como o amor exigia do amante

a privação, o luto e a frustração.



As relações entre amante e amada se inscreviam na privação,

porque o amor cortês se sustentava na renúncia do objeto amado.

Conseqüentemente, o luto, como estado de sofrimento permanente

— “coita” —, levava o trovador a desejar a morte, o que se

convencionou chamar, nos estudos literários, de “morrer-de-amor”.

Da privação, passa-se à frustração. O amante, por se encontrar à
deriva do desejo da Dama, lhe atribui uma onipotência máxima, o

que faz com que a Mulher amada seja tomada como objeto do seu

desejo e não como um objeto que lhe causa desejo. Deste lugar,

advém a frustração, sob a forma da recusa de um Bem. Amar,

então, se torna sinônimo de servir ao Amor e de suplicar compai-

xão. A Dama se transforma em símbolo de uma ausência e o que

é amado é o próprio amor. É neste sentido que Jacques Lacan

afirma que o amor cortês é o verdadeiro amor.




Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

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Amor cortês III

Simulacro do objeto do desejo

Nadiá Paulo Ferreira

Trata-se de um amor que visa à não satisfação e, justamente

por isto, a Dama é colocada no lugar de objeto amado para que

outra coisa, que está para além das mulheres, seja desejada. As-

sim, as leis das cortes de amor adquirem uma função precisa: tor-

nar o amor impossível.



Ao contrário do Romantismo, é o próprio amor e não o objeto

amado que é idealizado. A mulher, enquanto portadora do agal-

ma2 , é captada por um olhar, sem que haja qualquer particulari-

dade que a singularize. A leitura das cantigas de amor provoca,

inclusive, a sensação no leitor de que todas poderiam ter sido es-

critas para uma mesma mulher. A Dama é dessubjetivada para ser

apresentada como arbitrária, onipotente e indiferente, não medin-

do as exigências que impõe àquele que está a seu serviço.

O homem se situa no lugar de sujeito desejante e a mulher é

colocada no lugar de objeto desejado, para que seja simbolizada a

desarmonia do amor: o que falta ao amante a amada não tem. Não

é isto que Jacques Lacan nos ensina, quando diz que amar é dar o

que não se tem?



O paradoxo do amor é o que sustenta o amor cortês. Se o dese-

jo do homem é o desejo do Outro, o trovador deseja o amor da

Dama porque Ela deseja ser amada por ele. Se o desejo se sustenta

em uma falta radical, a súplica do trovador, dirigida à Dama, re-

vela a constatação deceptiva, que faz parte da estrutura do desejo

humano: não é isto, é outra coisa... Essa Outra Coisa é a Dama

que está ali para ser amada e não para obliterar o que falta ao

amante. A Dama, como simulacro do objeto do desejo, só pode ser

demandada pelo trovador a partir da privação e da frustração.

Justamente por isto, o que é colocado neste lugar é um objeto

enlouquecedor, é um parceiro desumano.




Psicanálise e Nosso Tempo

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