A nossa pátria é a Língua Portuguesa
Cláudio de Sá Capuano
A IX Bienal do Livro, ocorrida neste final de abril no Rio de
Janeiro, teve Portugal como país homenageado. A numerosa dele-
gação portuguesa contou com a presença de José Saramago, nosso
primeiro Prêmio Nobel de Literatura.
Digo nosso prêmio como forma de valorizar a Língua Portu-
guesa, em detrimento das divisões políticas nacionais. Podemos lem-
brar de Fernando Pessoa afirmando: “A minha pátria é a Língua
Portuguesa”. É o que fez José Saramago várias vezes durante a
semana em que esteve no Brasil. O escritor defendeu a realização de
bienais, cujo objetivo primordial seria tornar visíveis os escritores
de língua portuguesa, aí incluídos obviamente os africanos e asiáti-
cos, além dos brasileiros e portugueses, dentro da própria comuni-
dade lusófona. Tais eventos poderiam ser sediados nos diversos países
em que o português é falado.
Segundo Saramago, a leitura de autores brasileiros por parte
da população portuguesa simplesmente não existe. Podemos afir-
mar o mesmo com relação à Literatura Portuguesa no Brasil. Se
excluirmos da massa de leitores os universitários de Letras e, tal-
vez, os de História e Filosofia, o próprio Saramago não é tão lido no
Brasil. O grande assédio do público a que o escritor sofreu em todos
os locais em que passou demonstra no mínimo duas coisas: o prê-
mio Nobel foi capaz de torná-lo conhecido e festejado por todos no
Brasil, até por parte dos que nunca o leram; os demais escritores,
presentes na comitiva, ficaram totalmente ofuscados pela presença
de Saramago. Ele próprio alertou para este fato em sua fala no
CCBB, no último dia 24 de abril. Autores consagrados como Augusto
Abelaira e Hélder Macedo, para citar apenas dois entre tantos ou-
tros, muito pouco apareceram na imprensa. Ao menos as universi-
dades, como foi o caso da UFRJ e da UERJ, promoveram encontros
entre os escritores e os estudantes. No caso específico da UERJ,
mesmo sem a presença de Saramago, um grande auditório perma-
neceu lotado por estudantes e professores durante cerca de duas
horas, o que demonstra que é possível despertar o interesse do pú-
blico quando se promovem eventos.
Tenho certeza de que muitos dos que viram de perto um autor
conhecido do público universitário como Abelaira, saíram do evento no
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mínimo entusiasmados com a bela fala e a surpreendente poesia do
jovem José Tolentino Mendonça, um dos vários presentes no evento.
Em suma, é de extrema pertinência a sugestão de Saramago, que
muito sabiamente reconhece que “ uma andorinha não faz primave-
ra” e que ele, tampouco, se parece com uma. A divulgação da cultu-
ra lusófona é antes de mais nada uma necessidade para que os fa-
lantes do Português se conscientizem da importância de sua própria
língua na conformação de sua identidade cultural e uma obrigação
das autoridades para com os seus cidadãos.
Psicanálise e Nosso Tempo
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“Viver é muito perigoso”
Cláudio de Sá Capuano
Certa vez, o homem da cidade, na ânsia de comunhão com a
natureza, partiu para uma expedição no campo. Reuniu tudo o que
julgou necessário e seguiu rumo à nova aventura. Com o propósito de
percorrer trilhas, alcançar solitário o topo de elevações na esperança
de vislumbrar paisagens inusitadas, instalou-se precariamente em um
vilarejo, colheu informações sobre a natureza local e ouviu, antes da
partida, uma aviso severo:
– Cuidado com o cascavel!
Ouviu a advertência e a esqueceu, mas ela passou a ser sua
preocupação subliminar nas incursões que fazia. Ele, que buscava,
antes de tudo, talvez mesmo sem saber, a tranqüilidade, via-se ante
uma situação sempre iminente, que não sabia quando, como ou mes-
mo se aconteceria, mas que poderia ser fatal.
Passou a alternar visitas esporádicas ao campo a sua rotina de
homem burocrático. Cultivou o hábito de anotar em uma caderneta
as impressões que colhia. Registrava fatos, rascunhava paisagens,
traçava perfis de quem eventualmente encontrasse e julgasse digno
de ingressar na sua memória.
Tudo transcorria naturalmente até que houve um encontro es-
pecial: o homem do campo cruzou seu caminho. Movido por uma
curiosidade implacável, que só os mais simples possuem, o homem
do campo foi puxando da caderneta de memórias do homem da
cidade o fio que revelava experiências quase íntimas, nunca antes
reveladas, porque pessoais.
Ao perguntar o motivo de tais visitas a lugares tão ermos, o
homem da cidade, valendo-se da honestidade dos que ignoram, la-
conicamente apontou razões simples, aparentemente sem importân-
cia alguma. O homem do campo, vendo-se na necessidade de tam-
bém revelar algo de si, disse-lhe que ele também, que nunca saíra
dali, onde nascera, tinha vontade de conhecer outros lugares, uma
cidade grande de verdade e ver o mar de perto, mas disse também
que achava que jamais conseguiria realizar o desejo, porque tinha
medo do que poderia encontrar além do que buscava. Tinha medo
da violência que via pelos noticiários, da quantidade de pessoas que
cruzavam as ruas, da velocidade que imperava em tudo por lá.
O homem da cidade, não percebendo naquelas situações que
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vivenciava quotidianamente um perigo real, argumentou, lembran-
do-se da advertência que ouvira na sua primeira vez no campo,
tentou argumentar que ali sim é que havia perigo. Mas o homem do
campo sorriu e disse:
– Cascavel não é perigo, basta não passar perto dele! Ouvindo
o chocalho, pule para trás. Em último caso, é só matar.
Naquele momento, o homem da cidade entendeu que não havia
jeito: a vida era mesmo, de uma forma ou de outra, como havia lido
um dia, realmente muito perigosa.
Psicanálise e Nosso Tempo
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Nostalgia do progresso
Cláudio de Sá Capuano
Certa vez escutei um comentário de uma senhora bastante
idosa e humilde que me levou imediatamente ao riso. Vendo um
gato e um cachorro juntos, remexendo um saco de lixo, ela, muito
admirada, disse:
– O mundo está mesmo mudado. Veja só isso! Antigamente um
cachorro não podia ver uma gato que era uma briga danada...
Tempos depois lembrei-me dela, quando vi um garotinho de
uns três anos de idade acenando eufórico para dois policiais dentro
de uma rádio-patrulha, como se eles fossem a encarnação de super-
heróis. Na época em que ainda se dizia rádio-patrulha, patrulhinha
ou joaninha e elas ainda eram pintadas de preto e branco, as crian-
ças morriam de medo não só de policiais, mas também de soldados
e talvez até de bombeiros! Senti-me, em parte, como a velhinha
vendo a cena do cão e do gato. Sinto o mesmo quando ouço os
idosos dizerem que, hoje em dia, as crianças já nascem de olho
aberto, quando antigamente levavam muito tempo, depois de nasci-
dos, com os olhos fechados.
Observando esse final de século, podemos claramente perce-
ber que não são as transformações mais óbvias que se operaram no
dia-a-dia do cidadão comum o que houve de mais característico no
século XX. Com certeza, é a velocidade das mudanças que mais
nos impressiona. As pessoas que nasceram no primeiro quartel do
século não apenas viram, por exemplo, o surgimento do automóvel,
mas a sua súbita difusão a partir da década de 50, acompanhada de
um bárbaro aumento da velocidade que podem alcançar. Isto já ha-
via sido prenunciado no final do século XIX, quando do surgimento
do bonde elétrico que atropelava transeuntes desatentos pela falta
do costume de se depararem subitamente, ao virar uma esquina,
com um veículo tão inusitado e veloz.
Em pouquíssimos anos, vemos surgir a nossa volta uma série de
facilidades que o avanço da tecnologia nos proporciona com uma
velocidade tal que o homem, seja ele letrado ou não, muitas vezes não
consegue sequer acompanhar. É fácil constatar isso quando vemos os
idosos de hoje subindo as escadas convencionais de um shopping,
enquanto os jovens utilizam a escada rolante, projetada justamente
para poupar os mais velhos. Quando o assunto são as caixas eletrôni-
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cas dos bancos, o choque entre o velho e o novo é ainda mais gritante,
como constata prontamente a fila de jovens impacientes.
Mas os velhos de hoje, que muitas vezes rejeitam um mínimo do
que a evolução tecnológica pode oferecer, formam um grupo que
aos poucos vai desaparecendo. Os idosos de amanhã são hoje crian-
ças que na sua maioria tomam contato muito cedo com boa parte do
que o progresso tecnológico tem a oferecer. Tento imaginar que sen-
sação o próximo século deixará nos idosos dos seu últimos anos. Os
idosos, nossos netos ou bisnetos, os velhos do final do século XXI.
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Língua Portuguesa vira balcão de bobagens
Darcília Simões
Aproveitando a lacuna deixada pelos governos, o comércio
entra em cena e faz um gol: a população teenager, vestibulanda,
passa a ser atendida em língua portuguesa no mesmo balcão onde
compra fast food. Assim a multinacional e o professor de português
passam na prova da boa política.
Isto está acontecendo no Brasil. Uma notável agência comercial
estrangeira entrou a vender sanduíches de língua portuguesa e, de caro-
na, a gestar um novo astro: o professor de português e hambúrguer.
Não discutimos aqui o investimento na divulgação de fatos
gramaticais, no entanto, na qualidade de especialista não só no ver-
náculo mas também em metodologia do ensino de línguas, questio-
namos a impropriedade da forma como tais fatos são veiculados.
Num estágio em que a ciência lingüística e a teoria da variação
vêm promovendo a discussão do “erro” e do “acerto” em língua, o
professor da moda, o do Mc Donald’s, repudia formas como alavancar,
acessar, otimizar (cf. O Globo, 2º caderno - 31-10-97- fl. 1), as quais
comprovam não só a dinâmica da língua mas, sobretudo, a produtivi-
dade do sufixo -ar na vernaculização dos empréstimos lingüísticos.
Este mesmo docente admite o aportuguesamento de hamburguer
e ensina a pluralizar o termo em hambúrgueres. Será casuísmo
lingüístico ou trauma anti-tecnológico. No meio dessa onda, quem
sai perdendo é o consumidor de sanduíches gramaticais que vai con-
tinuar espalhando por aí que a Língua Portuguesa é muito difícil,
pois tem mais exceções que regra.
Outra incoerência: “Falar corretamente não é frescura de quem
não tem o que fazer. Há muita hipocrisia nessa coisa de deixar a
língua de lado” (sic). Os termos que grifamos não cabem no dizer de
alguém que prega a norma culta, pois são usos em sentido gírio: fres-
cura tomado como requinte desnecessário é coisa como hiperônimo
(ou vicário) de mania, hábito etc.
Apesar de concordar com o “co1ega” quanto à falta de domí-
nio do vernáculo por parte de letrados (?) diplomados (até douto-
res), não creio que “consertar” letras de música ou propagandas de
TV seja a solução para um domínio eficiente da norma padrão do
português no Brasil. Pode ser, entretanto, uma saída para uma
melhoria salarial, pois no desespero da baixa remuneração é bastante
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válido que um docente, após 20 anos de exercício profissional, decida
tornar-se um camelô (ou marreteiro, como se diz em Sampa) dos
fatos gramaticais, seguindo a moda de comercia1izarem-se mercado-
rias exóticas tais como bichos de estimação eletrônicos (os tamagoshis).
Help: dicionário de português? Sabe-se que há grandes equí-
vocos neste país, onde uma sem-terra - promovida a sem-roupa -
torna-se estrela de comerciais e de TV; onde o ridículo vende milha-
res de discos; onde o fumo é combatido com propagandas de cigar-
ro cada dia mais atraentes. E pasmem! Intitula-se Help o mais novo
dicionário de Língua Portuguesa. Em suma: é a terra do absurdo ou
o paraíso do non sense.
Na trilha desse festival de “loucuras”, lembramos declaração
do ex-presidente e acadêmico José Sarney para a Rainha dos Baixi-
nhos, quando do lançamento do Dixionário da Xuxa: “Você é a
melhor professora do Brasil!”
E ficamos num impasse entre duas correntes: por um lado, um
programa de TV leva sua apresentadora a receber o laurel de a
melhor professora do Brasil; por outro, um professor contratado
para vender fast food, em venda casada com informações sobre o
idioma nacional, ganha espaço na mídia como nunca o tiveram per-
sonalidades notáveis do porte de Ingedore Koch, Magda Soares
Becker, Walmírio Macedo e outros respeitáveis mestres conhecidos
internacionalmente no âmbito do ensino e da pesquisa.
Concluímos, então, que os conceitos correntes de “professor”,
“ensino”, enfim, “domínio idiomático”. carecem de revisão urgente,
caso contrário, Shakespeare que nos perdoe a horrível paráfrase: há
algo de podre no “reino” brasilis.
Aproveitamos este episódio de merchandising do português e da
figura do professor para fazer uma pergunta a um interlocutor muito
especial: Professor Fernando Henrique, quando é que o magistério na-
cional vai ser remunerado dignamente (sem precisar vender hambúr-
gueres, por exemplo)? Pois só com uma escola eficiente os brasileiros
que apóiam o Plano Real saberiam defender-se sozinhos das propagan-
das, já que estariam realmente preparados para o exercício da cidada-
nia, não acha?
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Teatro vivo
Iremar Maciel de Brito
O teatro é uma medusa que aponta suas cabeças em várias dire-
ções. Cada uma delas, porém, tem uma cara própria. Sorrindo ou
revelando tristeza, atrai e assusta ao mesmo tempo, trazendo a possi-
bilidade do prazer e a ameaça do perigo. Todas, no entanto, preten-
dem atingir um mesmo alvo. Mas, nem sempre isso é possível.
O espectador, esse alvo fixo, parece esperar tudo, sentado em
sua poltrona. Mas isso é apenas uma aparência, pois em sua via-
gem mental tem a mobilidade do vento. Por isso é difícil para o
espetáculo cravar nele seus dentes e inocular o veneno. Quando isso
acontece, rompe-se, definitivamente, a barreira entre o palco e a
platéia, criando a celebração teatral, uma viagem com o encanto da
vida. É nesse momento que a arte do espetáculo atinge sua plenitu-
de, criando o teatro vivo, um jogo do homem com as forças criado-
ras da vida. Assim, acaba o faz-de-conta e instaura-se a verdade.
De acordo com seus propósitos artísticos, o teatro vivo pode ter
sua ênfase na emoção, como prediz a estética aristotélica; na razão,
criando um distanciamento crítico, caminho seguido por Brecht; ou,
ainda, no puro ludismo das técnicas teatrais. Portanto, não depende
do estilo estético a criação do teatro vivo, mas de um relacionamento
verdadeiro entre o oficiante da cerimônia e o crente. Mas, para que
haja verdade nesse relacionamento, é necessário que ele aconteça no
presente, pois o teatro é uma arte que se inscreve no tempo. Infeliz-
mente, num grande número de espetáculos, esse relacionamento é
cristalizado no passado, impedindo sua realização no presente.
No entanto, outros espetáculos conseguem esse relacionamento
vital entre palco e platéia. E, apenas para citar um exemplo recente,
entre outros que conseguiram atingir esse objetivo, apontamos o
espetáculo “Desobediência civil”, de Denise Stoklos, apresentado
em dezembro de 1997, no Teatro Nelson Rodrigues, onde a parceria
entre o palco e a platéia se estabelece a partir de um relacionamento
no tempo presente. Quebra-se a ilusão do tempo passado e tudo
acontece aqui e agora. Uma elaborada criação artística e um relaci-
onamento verdadeiro com o público criam um teatro vivo, contrário
a tudo aquilo que é morto na arte teatral que não persegue esses
objetivos. Assim, a medusa acerta seu alvo.
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O teatro popular no circo
Iremar Maciel de Brito
Do mamulengo nordestino à majestosa encenação da Paixão
de Cristo, o teatro popular abre-se como um leque de gêneros e
estilos. Nele, estão contidas representações folclóricas como o
Bumba-meu-boi ou a Nau Catarineta, mas também o teatro de rua,
feito por artistas anônimos em qualquer praça da cidade.
Entre as estruturas tradicionais do teatro popular, o drama de
circo gozou de grande prestígio na época anterior ao domínio da
televisão. Era ele que enchia de poesia as noites das pequenas cida-
des onde os circos chegavam.
Quando o apresentador anunciava o “drama” uma deliciosa
expectativa tomava conta da platéia. Todos já haviam visto aquela
encenação no ano anterior, com o mesmo elenco, usando o mesmo
surrado figurino e movimentando-se em antigas marcações que há
muito haviam perdido o frescor criativo. Mas mesmo assim o espe-
táculo dominava o público, fazendo-o mergulhar por um momento
num sonho diferente do sonho da realidade.
Quando um ator retorcia o rosto numa careta que lembrava medo,
isso era o suficiente para representar a emoção. Não se exigia dele
nenhum aprofundamento do personagem nem mesmo um certo capri-
cho na composição do tipo. Nesse teatro, o realismo não tinha impor-
tância, pois ele trabalhava mais com índices das ações humanas do
que com a busca de uma perfeição mimética. Assim, as regras da
representação pautavam-se no melodrama romântico, mas eram mui-
to livres e estavam sobretudo relacionadas à reação da platéia: os
momentos que emocionavam o público eram esticados a tal ponto
que parecia criar uma outra escritura dramatúrgica, pautada no exagero
dos traços melodramáticos. Os argumentos que davam origem a es-
ses espetáculos variavam pouco: quase sempre era a história de um
triângulo amoroso, onde a vítima era a ingênua mocinha. No entanto
isso encantava o público e o fazia sonhar.
Qual o seu segredo e a sua magia, se tudo nesse teatro era apa-
rentemente óbvio, pouco criativo e sem vida? Talvez fosse exata-
mente na rusticidade de sua linguagem que residisse o seu encanto,
a sua maneira de criar a magia, uma arte cada vez mais rarefeita no
universo do teatro.
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O cantador de embolada
Iremar Maciel de Brito
Na feira de Campina Grande, um cantador de embolada impro-
visava seus versos, colorindo o espaço entre uma estrofe e outra com
os sons ritmados do pandeiro. Deliciava uma platéia de homens com
a história da primeira noite de um rapaz virgem na zona. Sua poesia,
da qual não restou registro, pois fugiu com o tempo, era semelhante à
de Leandro Gomes de Barros, em “ O peso de uma mulher”: “O
rapaz vê uma moça / Fica por ela encantado / Sedutora e feiticeira /
Que parece um sonho dourado / Os lábios parecem mel, / Mas tem a
taça de fel / No mundo do coração, / O homem passa e não vê /
Depois vem se arrepender / Porém já está na prisão.”
A narrativa, à medida que prosseguia, ficava cada vez mais pi-
cante, até chegar ao clímax de indecência, quando o rapaz era agarra-
do por um bando de prostitutas. Mas, muitas vezes, acontecia algo
inesperado, impedindo a conclusão da história: uma senhora respeitá-
vel, acompanhada da filha menina, aproximava-se para ouvir o
cantador. O artista, sem pensar nem pestanejar, mudava o mote: co-
meçava a louvar os milagres de Nossa Senhora, cantando a conver-
são de um herege diante da imagem da santa que chorava com pena
daquela alma perdida. Assim deixava de glosar o mote da prostituta
para gozar o da Virgem Maria, mudando o tom da cantoria da sátira
licenciosa para o lirismo edificante. E, nessa viagem, carregava o
público consigo, transformando o desenho do sorriso na face da seri-
edade, abrindo as portas da emoção e fazendo a alma sangrar de dor.
O cantador de embolada é antes de tudo um jogador que brinca com
as palavras e as emoções, ocupando um espaço do ludismo na alma
popular ao mesmo tempo em que se transforma em porta-voz de suas
idéias, sejam elas licenciosas ou edificantes. É, por isso mesmo, espe-
lho e reflexo dos homens do seu tempo, como o foram seus antepassa-
dos medievais com suas cantigas de amor e suas sátiras corrosivas nas
cantigas de maldizer.
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