Português: contexto, interlocução e sentido



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Analise as informações apresentadas no capítulo e discuta com seus colegas: quais acontecimentos explicam o surgimento, na literatura, de obras que negarão a imagem de um Brasil sem problemas?

Euclides da Cunha: narrador da guerra do fim do mundo

Euclides da Cunha (1866-1909) foi o pioneiro entre os pré-modernistas na aproximação entre a literatura e a história. Quando publicou a recriação literária da guerra de Canudos, em 1902, fazia somente cinco anos que o sangrento conflito tinha acabado.



Foi o escritor Joaquim Nabuco quem definiu Os sertões como “a Bíblia da nacionalidade brasileira”. Chamar a atenção dos alunos para esse fato, porque ele mostra a importância que os autores do período davam para textos que, como a obra de Euclides, ajudassem a traçar um panorama mais próximo da realidade do Brasil.

Os sertões: “a Bíblia da nacionalidade brasileira”

Os sertões é um livro de difícil classificação. A obra apresenta características de texto literário porque capta, em suas descrições, a sinceridade da alma simples e leal do sertanejo, pronto a seguir um líder e a morrer combatendo a seu lado; de tratado científico, porque analisa as características do solo do sertão nordestino; de investigação socioantropológica, já que se preocupa em caracterizar minuciosamente o sertanejo ou explicar a gênese de Antônio Conselheiro como um líder messiânico; e de matéria jornalística, pois registra em detalhes as lutas entre as tropas oficiais e os revoltosos.

Embora essa mistura de estilos aponte para novas tendências literárias, o livro apresenta uma clara visão determinista, que o liga ao Naturalismo e à visão do ser humano como produto do meio em que vive. Euclides, porém, dá um tratamento regional ao determinismo, antecipando, em cerca de três décadas, marcas da prosa de ficção da segunda geração modernista: o romance regionalista, que será desenvolvido por mestres como Graciliano Ramos, José Américo de Almeida e Rachel de Queiroz, entre outros.

A estrutura do livro

Para criar todo o embasamento científico necessário ao estudo das condições que contribuíram para um conflito como o de Canudos, Euclides da Cunha dividiu sua obra em três partes.

A Terra (primeira parte): apresentação detalhada das características do sertão nordestino, com informações sobre o clima, a composição do solo, o relevo e a vegetação.

O Homem (segunda parte): retrato do sertanejo, em que o texto procura demonstrar o impacto do meio sobre as pessoas. O destaque fica para a apresentação de Antônio Conselheiro e sua transformação em líder messiânico.

A Luta (terceira parte): narração dos embates entre as tropas oficiais e os seguidores de Conselheiro. O livro termina com a descrição da queda do Arraial de Canudos e a destruição de todas as casas erguidas no local.

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Casa de pau a pique. Moradia típica do Arraial de Canudos. s. d.

FLÁVIO DE BARROS – MUSEU DA REPÚBLICA, RIO DE JANEIRO

Linguagem: o barroco científico

O uso da linguagem define o estilo de Euclides da Cunha de modo muito particular entre os pré-modernistas. O emprego constante de expressões que sugerem um conflito interior que não pode ser solucionado fez com que os críticos reconhecessem a marca barroca do seu texto.

III — O sertanejo

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. […]

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. […] Basta o aparecimento de qualquer incidente


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Lembrar aos alunos que Quasímodo é personagem do livro Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo. Vítima de uma monstruosa deformidade de nascença, foi criado na famosa catedral de Paris. Como seu destino é nunca ser feliz, jamais realizará sua paixão por Esmeralda. Morre depois de um ato heroico para salvar sua amada, condenada à forca por um crime que não cometeu.

exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Impertiga-se […] e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias. [...]

CUNHA, Euclides da. Os sertões. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. 2, p. 179-180. (Fragmento).

Raquitismo: definhamento físico.
Neurastênicos: que sofrem de doença mental.
Desempeno: porte esbelto.
Fealdade: feiura.
Impertiga-se (variante de “empertigar-se”): aprumar-se, comportar-se de modo altivo, orgulhoso.
Tabaréu: caipira (regionalismo usado no fim do século XIX).
Canhestro: desajeitado.
Titã: na mitologia, cada um dos gigantes que quiseram escalar o céu para destronar Júpiter.

Nessa passagem, uma metáfora resume a ideia central de toda a caracterização feita: embora a aparência sugira fraqueza e cansaço, o sertanejo é um “titã acobreado”, que surpreende nas situações de emergência. A associação entre Hércules (herói da mitologia grega, homem de força extraordinária, admirado) e Quasímodo (ser disforme, monstruoso, amedrontador) é um exemplo da busca por imagens que sintetizem o que é dito.

Para elaborar essas imagens, o narrador usa frequentemente características contraditórias, destacando o conflito percebido no espaço inclemente do sertão, na vida sofrida dos sertanejos, na resistência dos conselheiristas. Por essa razão, muitos outros exemplos de paradoxos e antíteses povoam o texto de Os sertões: paraíso tenebroso, tumulto sem ruídos, sol escuro, construtores de ruínas, etc.

Também se destaca na construção da linguagem a busca da precisão científica e o desejo de garantir um realismo absoluto ao que é narrado. É a convivência de todas essas características que torna impossível definir Os sertões como um romance. O livro é isso e muito mais, o que explica a importância que tem, até hoje, no conjunto da literatura brasileira.



De olho no livro

Na voz dos sobreviventes, Canudos renasce

Quando o peruano Mario Vargas Llosa resolveu reescrever a história da guerra de Canudos, buscou os relatos, reais ou fictícios, preservados pela tradição oral. Percorrendo os caminhos do interior da Bahia trilhados por Antônio Conselheiro, refez sua história dando destaque para o aspecto humano e para as impressões que ficaram gravadas na memória do povo simples que, 82 anos após o conflito (Llosa percorreu o sertão baiano em 1979), mantinha vivo o mito do beato que veio para salvar os sertanejos.



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Capa do livro A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa.

REPRODUÇÃO

TEXTO PARA ANÁLISE

Leia os textos a seguir para responder às questões de 1 a 4.

Dois olhares para o mesmo conflito

Os textos a seguir apresentam duas visões diferentes sobre a Guerra de Canudos.

Euclides da Cunha, no final de Os sertões, registrava:

[...] Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, [...] caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. 2, p. 513. (Fragmento).

Já Olavo Bilac, escrevendo sobre o mesmo episódio, comemorava:

Enfim, arrasada a cidadela maldita! Enfim, dominado o antro negro, cavado no centro do adusto sertão, onde o Profeta das longas barbas sujas concentrava sua força diabólica, feita de fé e de patifaria, alimentada pela superstição e pela rapinagem! [...]

BILAC, Olavo. Cidadela maldita. In: Vossa insolência: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 412. (Fragmento).

1. Que visão cada trecho manifesta sobre o episódio?

2. Transcreva no caderno as expressões utilizadas por Olavo Bilac em seu texto para caracterizar a vila de Canudos e Antônio Conselheiro.

> Que juízo de valor está associado a elas? Explique.

3. O que pode explicar duas visões tão diferentes a respeito de um mesmo acontecimento histórico?

4. Os dois textos citados circularam em jornais da época. Que repercussão a apresentação de duas visões tão distintas pode ter tido sobre os leitores da época? Os dois textos podem ter contribuído para a polarização de opiniões da população a respeito do conflito? Explique.

Literatura e contexto histórico

Vocês se lembram de outro acontecimento mais recente da história do Brasil que tenha sido alvo de interpretações opostas? Qual?
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Lima Barreto: a vida nos subúrbios cariocas

Lima Barreto (1881-1922) sofreu o preconceito de uma sociedade que discriminava as pessoas com base na cor de sua pele. O escritor foi responsável por compor um retrato de partes dos centros urbanos ignorados pela elite cultural do país: os subúrbios cariocas. Era lá que vivia a pequena classe média composta de funcionários públicos, professores, moças à espera de casamento e uma variedade de outras personagens que povoam a obra do autor. Dá assim voz a uma parcela da população que havia sido ignorada pelos principais escritores românticos e realistas.

Os romances, contos e crônicas de Lima Barreto compõem um painel em que se desenham de forma mais clara os verdadeiros mecanismos de relacionamento social típicos do Brasil no início do século XX.

Isaías Caminha e Clara dos Anjos: a denúncia do preconceito

No primeiro romance publicado por Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, já se pode identificar a denúncia do preconceito como uma das suas preocupações literárias.

A leitura do livro deixa evidente seu caráter autobiográfico: assim como Isaías, Lima Barreto sofreu o preconceito por ser mulato e, também como ele, conseguiu relativo sucesso com a carreira jornalística.

Em Clara dos Anjos, um romance inacabado, o preconceito racial retorna, enfocando agora uma moça que é seduzida por um tipo suburbano, Cassi Jones. Após relatar a humilhação da jovem pela família do rapaz que a desonrou, o narrador conclui:

[...] Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. […]

[...] Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade […], para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam…

BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. In: Vasconcellos, Eliane (Org.). Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 748. (Fragmento).

O aspecto mais comovente da cena, além da desilusão sofrida pela jovem, é a constatação da impossibilidade de vencer uma sociedade acostumada a determinar o valor de uma pessoa pela cor de sua pele.



Policarpo Quaresma: um nacionalista quixotesco

O mais lido e conhecido romance de Lima Barreto é Triste fim de Policarpo Quaresma. O protagonista, Policarpo Quaresma, é um major que trabalha como subsecretário do Arsenal de Guerra. Sua cegueira, contudo, é a pátria. Estudioso das coisas do Brasil, tem uma biblioteca de clássicos sobre a fauna e a flora brasileira, conhece as obras completas dos grandes escritores nacionais, interessa-se pelas tradições e costumes do povo. Esse patriotismo desmedido é ridicularizado por todos aqueles com quem convive, incapazes de perceber a pureza de seu idealismo.

[...] Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. Todas as manhãs, [...] estudava o jargão caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos empregados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo do idioma tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo — Ubirajara. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar o ponto, distraído, sem reparar quem lhe estava às costas, disse em tom chocarreiro: “Você já viu que hoje o Ubirajara está tardando?”.

[...] Sentindo que a alcunha lhe era dirigida, não perdeu a dignidade, não prorrompeu em doestos e insultos. Endireitou-se, concertou o pince-nez, levantou o dedo indicador no ar e respondeu:

— Sr. Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridículo aqueles que trabalham em silêncio, para a grandeza e a emancipação da Pátria. [...]

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. In: Vasconcellos, Eliane (Org.). Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 264-265. (Fragmento).



Amanuenses: funcionários públicos que cuidavam da correspondência, copiavam e registravam documentos.
Chocarreiro: zombeteiro.
Doestos: injúrias, acusações.

Através de Policarpo, Lima Barreto tematiza o embate entre o real e o ideal. Em Policarpo, o patriotismo é um ideal. Ele assume ares de visionário, louco, por não pensar em si, por não se interessar por sua carreira ou tentar obter qualquer tipo de vantagem pessoal. Seu único objetivo é o engrandecimento do Brasil.

O “triste fim” de Policarpo é a perda de todos os ideais, quando percebe que dedicou sua vida a uma causa inútil.

A desilusão final de Policarpo é a desilusão de Lima Barreto, que morreu acreditando ser o dever dos escritores “deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças”. Por esse motivo, o novo Brasil que surgia nos textos pré-modernistas, marcado por grandes desigualdades sociais, não era um país que motivasse o orgulho dos leitores. Mas era um país real.


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TEXTO PARA ANÁLISE

V

A afilhada

Acusado de traição, Policarpo Quaresma espera pela morte e reflete com amargura sobre o nacionalismo ingênuo que o impediu de ver o verdadeiro país que tanto defendeu.

[...] Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. [...]

Desde dezoito anos que o tal patriotismo o absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, do folklore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!

O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.

A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. [...]

Contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância?

E esse seguimento adiantaria alguma coisa? E essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele se vinham oferecendo, sacrificando e as coisas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma opressão, na mesma tristeza. [...]

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. In: VASCONCELLOS, Eliane (Org.). Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 404-405. (Fragmento).



Ferazes: férteis.

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Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, c. 1865. Foto de Georges Leuzinger. No romance de Lima Barreto, após ter participado da Revolta da Armada, Policarpo Quaresma é transferido como carcereiro para o presídio da ilha, onde depois acaba preso, acusado injustamente de traição à pátria.

GEORGES LEUZINGER - INSTITUTO MOREIRA SALLES, RJ

1. O trecho apresenta dois retratos de Policarpo: o que caracterizou a sua vida e aquele que surge diante da morte. Quais são as características de cada retrato?

> Ao refletir sobre sua trajetória, o protagonista se dá conta do que fez em nome de seu patriotismo. Quais foram suas ações?

2. Qual é a imagem idealizada que Policarpo tinha do povo brasileiro?

3. Apesar de saber que a pátria que buscara era um mito, Policarpo ainda mostra esperança de que sua trajetória e seu ideal não tenham sido em vão. Mas essa esperança logo se desfaz. Explique por quê.

> A amargura da personagem é mais forte no trecho final do texto transcrito. Como sua desesperança é apresentada no último parágrafo?

4. De que forma a transformação de Policarpo exemplifica a intenção dos pré-modernistas de criar uma consciência crítica a respeito do Brasil?

Monteiro Lobato: a decadência do café

Monteiro Lobato (1882-1948) começou a sua carreira literária por acaso. Tendo vivido no interior, pôde observar as dificuldades e os vícios característicos da vida rural. Suas observações dão origem a uma longa carta, enviada para o jornal O Estado de S. Paulo. A carta funciona como uma denúncia e chama a atenção das pessoas para um problema que, como tantos outros, era desconhecido por não fazer parte do Brasil “oficial”.


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Essa carta levou o editor do jornal a insistir para que Lobato lhe enviasse mais artigos. Nascia, assim, uma carreira de longa colaboração jornalística. A carta foi importante também por outra razão: é nela que o escritor cita pela primeira vez o nome da personagem a que ele ficará associado para sempre: Jeca Tatu.

O caboclo apresentado como o parasita que incendeia a terra é, de certa forma, o “pai” literário do Jeca, que será apresentado em sua forma completa em outro texto, Urupês (1918). Nesse livro, Lobato traça um minucioso perfil do caboclo que vivia pelo interior de São Paulo, encostado nas fazendas de café, esgotando os recursos da terra para depois mudar-se e continuar com seus hábitos.

As cidades mortas do interior paulista

O aspecto literário mais importante da obra de Monteiro Lobato é a sua preocupação em denunciar alguns dos problemas que marcavam a vida das pessoas do interior. O foco do autor é a região do Vale do Paraíba, que entrou em decadência após o deslocamento das culturas de café para o Oeste Paulista.

Nos contos de Cidades mortas (1919), Lobato caracteriza a desolação provocada nas pequenas cidades que, até pouco tempo antes, prosperavam com o cultivo do café.

Café! Café!

E o velho major recaiu em cisma profunda. A colheita não prometia pouco: florada magnífica, tempo ajuizado, sem ventania nem geadas. Mas os preços, os preços! Uma infâmia! Café a seis mil-réis, onde se viu isso? E ele que anos atrás vendera-o a trinta! E este governo, santo Deus, que não protege a lavoura, que não cria bancos regionais, que não obriga o estrangeiro a pagar o precioso grão a peso de ouro! […]

Veio, porém, a baixa; as excessivas colheitas foram abarrotando os mercados, dia a dia os estoques do Havre e de Nova York aumentavam. Os preços baixavam sempre, cada vez mais; chegara a dez mil-réis, a nove, a oito, a seis. O major ria-se e limpando as unhas profetizava: “Em janeiro o café está a 35 mil-réis”.

Chegou janeiro; o café desceu a cinco mil e quinhentos. “Em fevereiro eu aposto que vai a quarenta!” Foi a cinco.

O major emagrecia. […] O café em março desceu a quatro.

O major enlouquecia. Estava à míngua de recursos, endividado, a fazenda penhorada, os camaradas desandando, os credores batendo à porta. […]

E ninguém o tirava dali. A fazenda era uma desolação, a penúria extrema; os agregados andavam esfomeados, a roupas em trapo, imundos, mas a trabalhar ainda, a limpar café, a colher café, a socar café. [...]

LOBATO, Monteiro. Cidades mortas. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 159-162. (Fragmento).



TEXTO PARA ANÁLISE

Urupês

Na descrição de Jeca Tatu, Monteiro Lobato despe-o da idealização que, para ele, marcava a representação da figura do caboclo.

[...] a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. [...]

Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epitome de carne onde se resumem todas as características da espécie. [...]

De pé ou sentado as ideias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.

De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para “aquentá-lo”, imitado da mulher e da prole.

Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. Há de ser de cócoras. [...]

Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!

Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...

Quando comparece às feiras, todo mundo logo adivinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher [...].

Seu grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço — e nisto vai longe. [...]

Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores — nada revelador de permanência.

Há mil razões para isso; porque não é sua a terra; porque se o “tocarem” não ficará nada que a outrem aproveite; porque para frutas há o mato; porque a “criação” come; porque... [...]

Jeca, interpelado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.

— “Não paga a pena.”

Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive. [...]

LOBATO, Monteiro. Urupês. 37. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 166-170. (Fragmento).



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