Português: contexto, interlocução e sentido


Sorna: indolente, preguiçosa. Piraquara



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Sorna: indolente, preguiçosa.
Piraquara: pessoa que vive no campo, caipira.
Epitome: síntese, resumo.
Entramam: confundem(-se).
Grulha: relativo a tagarelice, falatório.
Modorra: sonolência, apatia.
Página 20

1. O narrador sugere que a figura do caboclo é idealizada indevidamente. Transcreva em seu caderno o trecho em que isso aparece.

> Por que o narrador critica essa idealização?

2. Releia.

“Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...”



a) De que maneira, no trecho destacado, o narrador demonstra a imagem “bonita” que a personagem adquire nos romances?

b) De acordo com o texto, como é o Jeca Tatu na realidade?

3. Essa caracterização do caboclo, vista por muitos como preconceituosa, valeu inúmeras críticas a Monteiro Lobato. Discuta com seus colegas: a imagem do caboclo no texto denota, de fato, preconceito? Justifique sua resposta.

4. De que maneira a crítica à idealização do caboclo reflete um desejo de retratar um Brasil mais “verdadeiro”?

Augusto dos Anjos: poeta de muitas faces

A leitura da poesia enigmática e sombria de Augusto dos Anjos (1884-1914) revela influência de diferentes estéticas do século XIX. Do Simbolismo, o autor recupera o gosto pelas imagens fortes e a preocupação com a construção formal dos poemas. O uso de termos científicos marca a inspiração do Naturalismo. A preferência pelo soneto traz ecos do Parnasianismo.

Embora tenha publicado seu único livro em um momento no qual a literatura brasileira manifestava tendências pré-modernistas, o poeta deve ser visto como um fenômeno isolado.

A marca da angústia e do pessimismo

As divagações metafísicas e a expressão de uma angústia existencial são as características mais fortes da poesia de Augusto dos Anjos. É esse o sentimento que sobressai nos versos do seu mais conhecido soneto.



Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!


O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!


O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga


Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

ANJOS, Augusto dos. Eu. In: Bueno, Alexei (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 280.



Quimera: na mitologia, ser monstruoso que tinha cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente, além de lançar fogo pelas narinas. O termo é usado em sentido figurado para fazer referência às fantasias inalcançáveis, às ilusões, às utopias.

A crença na quimera — fantasia, sonho, ilusão — resume a causa para a desilusão humana. No poema, o eu lírico dirige-se aos leitores para afirmar a impossibilidade de uma vida feliz. Além da morte dos sonhos, as pessoas estão condenadas à mais irremediável solidão. Os gestos de solidariedade devem ser vistos como sinal da desilusão futura. É esse o contexto que explica o terrível conselho final: “Escarra nessa boca que te beija!”.



Linguagem: ciência e símbolos

A linguagem característica dos poemas de Augusto dos Anjos surpreende os leitores. O poeta recorre à ciência para melhor definir suas preocupações com a origem da angústia moral que, a seu ver, atormenta a humanidade.

Augusto dos Anjos adotou como modelo os estudos de Ernest Heckel, biólogo alemão que publicou uma obra relacionando teorias de natureza biológica a interpretações filosóficas sobre a alma e a existência humanas. Por isso, os versos do poeta apresentam termos como psicogênese, trama neuronial, sinergia, morfogênese, carbono e amoníaco.

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,


Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
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Já o verme — este operário das ruínas —


Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

ANJOS, Augusto dos. Eu. In: Bueno, Alexei (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 203.

Obcecado com a ideia das forças da matéria, que pulsam em todos os seres e conduzem ao “nada” absoluto, o poeta usa o verme como símbolo desse processo de decomposição.

A referência ao “sangue podre” assinala mais uma característica da poesia de Augusto dos Anjos: o uso de termos fortes e chocantes, muitas vezes associados às funções corporais (como o escarro de “Versos íntimos”). Por essa razão, muitos críticos da época destacavam o “mau gosto” do vocabulário como um dos defeitos da poesia do autor.



TEXTO PARA ANÁLISE

O Deus-Verme

Neste soneto, o eu lírico trata da morte em sua dimensão física.

Factor universal do transformismo,


Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.

Jamais emprega o acérrimo exorcismo


Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,


Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão…

Ah! Para ele é que a carne podre fica,


E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

ANJOS, Augusto dos. Eu. In: Bueno, Alexei (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 209.



1. Uma das características da obra de Augusto dos Anjos é a incorporação de um vocabulário científico à poesia. No soneto transcrito, quais palavras justificam essa afirmação?

> Além do uso de termos da ciência, o assunto tratado no poema chama a atenção: a “caracterização” do verme que se alimenta dos corpos em decomposição. Qual é essa caracterização?

2. O tema da morte é abordado por muitos poetas, que tratam de sua dimensão espiritual ou sentimental. Como a morte é apresentada no poema “O Deus-Verme”?

> No título do poema, o verme é definido como um “deus” a quem se destina “a carne podre”. Explique de que maneira esse processo de “divinização” dos vermes revela uma visão racional da morte.

3. Por que a poesia de Augusto dos Anjos se opõe à estética parnasiana, que predominava como gosto literário no início do século XX?

> Transcreva no seu caderno, dos versos de “O Deus-Verme”, elementos que podem ter provocado uma reação desfavorável dos leitores habituados ao gosto parnasiano.

Teleológica: (filosofia) diz-se de argumento, conhecimento ou explicação que relaciona um fato com sua causa final.
Acérrimo: muito acre, ácido, amargo.
Contubérnio: camaradagem, familiaridade, vida em comum.
Antropomorfismo: atribuição de características e comportamentos típicos da condição humana às formas inanimadas da natureza ou aos seres vivos irracionais.
Drupas: frutos carnosos, como o pêssego e a manga.
Agras: de sabor acre, ácido ou azedo.
Hidrópicos: que ou aqueles que se caracterizam por inchação ou retenção de líquido.
Vísceras: entranhas.
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Diálogos literários: presente e passado

A saudade é um tema frequente em textos de diferentes autores da literatura contemporânea. Seja o efeito provocado pela ausência de pessoas queridas, a nostalgia em relação a outra época da vida ou a dor pelo exílio, qualquer um desses sentimentos revela, em geral, aquilo que define a saudade: uma conexão entre o que é e o que foi.

O destaque dado a essa questão em textos literários, no entanto, nasceu há alguns séculos e em terras além-mar. Na história da literatura portuguesa, a saudade constitui um elemento tão importante que inaugura uma tradição, atravessa muitos movimentos estéticos e passa a integrar o próprio sentimento de identidade nacional português. No Classicismo, por exemplo, a saudade começa a se delinear como algo que vai além do sentimento individual: era possível lamentar a ausência da Pátria, grande império ultramarino que lentamente começava a se desfazer. Camões, em Os lusíadas, celebra a glória de um povo vitorioso em suas conquistas, mas que estava deixando de ser o que fora um dia, como lamenta no epílogo da obra.

Como você verá no próximo capítulo, no início do século XX, o poeta Fernando Pessoa revisita essa tradição, mostrando, em alguns de seus textos, como a visão do cais evoca memórias que repercutem nos sentimentos e nas percepções individuais. Para ele (e para os portugueses, em geral), o mar está associado à saudade de um tempo glorioso do passado.

Antes, porém, confira, nos textos a seguir, como a saudade e suas diversas formas de expressão atravessaram os séculos e os mares e apareceram nas obras de escritores africanos e brasileiros, contagiados pela colonização portuguesa que levou a esses lugares bem mais que a língua: levou um modo de sentir a ausência de algo.

José Bento e a saudade dos mortos e de si mesmo

7

É vão buscar os mortos


sob os ciprestes,
mesmo que em nós sangrem ainda
palavras e olhares que eles nos deram:
como tentar colher o esplendor de um rosto
que, por muito o termos amado, destruímos,
debatendo as mãos cegas
entre a neve que o lembra sobre os cedros.

Se me detenho aqui,


não venho procurar-te,
de ninguém senão de mim estou afastado:
o céu nos meus olhos alagado,
um rumor ácido
a agredir-me entre a perversão do que me cerca:
a lassidão dos fenos e das asas
prenunciando o despojar dos mastros,
os homens a afundar-se na sua morte,
com um peso estelar de casas,
quase pedras.
Aqui, nem ecos nem pegadas.

A luz, uma coluna que me escolheu para centro.


Um círculo perfeito
no meu redor aceso.

Em ti a raiz das labaredas


que hão-de cercar-me enquanto eu enfrentar
a tua ausência
sobre o lugar
e o tempo.

Lassidão: esgotamento.

(In memoriam)

BENTO, José. In: NEJAR, Carlos (Org.). Poesia portuguesa contemporânea. São Paulo: Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1982. p. 377-378.


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Gabriel Mariano: a saudade de Cabo Verde

Vela do exílio

Acendi hoje uma vela


de estearina na fina
mesinha onde escrevo.
Enquanto ela me ardia
da chama para os meus olhos
velhas lembranças seguiam.
E súbito sobre a parede
da velha casa onde moro
o mapa árido e breve
das ilhas do Cabo Verde.

Que vento não vem ou se agita


no barco em forma de vela
por dentro da casa fechada!
Que voz materna no écran
da ilha difusa difunde

meu nome em projeto?


Acendi hoje uma vela.
E enquanto me ela queimava
por sobre a mesa pessoas
vivas e mortas passavam.

Vela do exílio acendida


na noite de Moçambique:
pesado, inútil veleiro.
Vela do exílio, meu filho
com apenas um sopro apagas
a vela, o exílio não.

MARIANO, Gabriel. In: APA, Lívia; BARBEITOS, Arlindo; DÁSKALOS, Maria Alexandre (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa (Antologia). Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 151-152.



Gabriel Mariano (1928-2002): nasceu em Ribeira Grande, Cabo Verde, África.
Estearina: substância usada na fabricação de velas, sabões, etc.
Écran: superfície sobre a qual se reproduz a imagem de um objeto.

Pare e pense

Observe a imagem a seguir.



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JÚNIOR, A. Saudade. 1899. Óleo sobre tela, 197 × 101 cm.

ALMEIDA JÚNIOR - PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO, SÃO PAULO

Junte-se a seus colegas e analise com eles, em grupo, os detalhes do quadro que podem justificar o seu título. Em seguida, imaginem o que está escrito no papel que a personagem está lendo. Discutam, então, a relação entre essa imagem e os poemas transcritos nesta seção. Apresentem oralmente para a classe as conclusões do grupo.



Para a realização desta atividade, é interessante que haja uma discussão para definir em que consiste o sentimento de saudade tematizado na seção. Esse sentimento pode existir em várias instâncias: a saudade de uma pessoa, de uma época, de uma situação, de um lugar. Também seria importante reler o epílogo de Os lusíadas na íntegra para que se possa perceber como a constituição da identidade portuguesa se fundamenta nesse sentimento relacionado à dissolução do espírito empreendedor das navegações. A atividade proposta baseia-se na observação e na análise do quadro de Almeida Júnior, que mostra uma mulher de aspecto melancólico, com um papel na mão. Os alunos devem supor que esse papel evoca o sentimento de saudade expresso no título da obra. Cabe a eles imaginar a que tipo de situação esse papel está associado para que possam comparar esse sentimento com aqueles evocados pelos poemas desta seção. Muitas possibilidades se apresentam para o desenvolvimento da discussão: De quem seria a carta? O remetente foi embora, está longe ou morreu? A carta traz notícias de longe ou da terra natal? A moça está onde? Longe de casa e daqueles que ama? Por quê? Os poemas apresentam que tipo de saudade? Que elementos dos textos levam a essa hipótese? Dessa forma, pode-se compreender de modo mais concreto o sentimento de saudade e suas implicações nos demais sentimentos que experimentamos. Depois da discussão, cada grupo deverá apresentar, oralmente, suas conclusões para a sala.
Página 24

Capítulo 2 - Vanguardas culturais europeias. Modernismo em Portugal

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BOCCIONI, U. Carga de lanceiros. 1914-1915. Têmpera e colagem sobre papelão, 32 × 50 cm. A renovação toma conta da arte no início do século XX.

UMBERTO BOCCIONI - ACADEMIA DE BELAS ARTES DE FLORENÇA, FLORENÇA

Leitura da imagem

Sugerimos que todas as questões sejam respondidas oralmente para que os alunos possam trocar impressões e ideias.

1. Observe a imagem de abertura. Descreva a cena que ela retrata.

2. O quadro passa a sensação de movimento, própria de um ataque da cavalaria. Analise a imagem e explique como esse efeito é construído.

a) Compare o modo como os cavaleiros e os soldados entrincheirados são representados na imagem. Quem tem maior destaque? Como esse destaque é feito?

b) Por meio dessa representação, o quadro sugere que os cavaleiros serão vitoriosos nesse embate. Explique por quê.

3. No canto superior direito da tela, há uma colagem de recortes de jornais que descrevem os ataques franceses à Alemanha, na região da Alsácia, em 1914. Pode-se dizer que os recortes e a imagem se referem a um mesmo tema. Que tema é esse?

> Os recortes parecem integrados à imagem. Por que isso acontece?

Da imagem para o texto

4. Os leitores do conservador jornal francês Le Figaro foram surpreendidos, no dia 20 de fevereiro de 1909, por um texto de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944). Leia.

O Futurismo

[...] — Vamos, meus amigos! disse eu. Partamos! Enfim a Mitologia e o Ideal místico estão ultrapassados. Vamos assistir ao nascimento do Centauro e veremos logo voarem os primeiros Anjos. — É preciso abalar as portas da vida para nela experimentar os gonzos e os ferrolhos!... Partamos! Eis o primeiro sol nascendo sobre a terra!... Nada é igual ao esplendor de sua espada vermelha que se esgrima pela primeira vez nas nossas trevas milenares.

[...] com o rosto mascarado pela boa lama das usinas, cheio de escórias de metal, de suores inúteis e de fuligem celeste, [...] nós ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:
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Manifesto do Futurismo

1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade.

2. Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a revolta.

3. Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco.

4. Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. [...]

7. Não há mais beleza senão na luta. Nada de obra-prima sem um caráter agressivo. A poesia deve ser um assalto violento contra as forças desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante do homem.

8. Nós estamos sobre o promontório extremo dos séculos!... [...] O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já no absoluto, já que nós criamos a eterna velocidade onipresente.

9. Nós queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo —, o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos anarquistas, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher.

10. Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.

11. Nós cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; [...] os navios aventureiros farejando o horizonte; as locomotivas de grande peito, que escoucinham os trilhos, como enormes cavalos de aço freados por longos tubos, e o voo deslizante dos aeroplanos, cuja hélice tem os estalos da bandeira e os aplausos da multidão entusiasta.

É para a Itália que nós lançamos este manifesto de violência agitada e incendiária, pela qual fundamos hoje o Futurismo, porque queremos livrar a Itália de sua gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários. [...]

MARINETTI, F. T. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 89-92. (Fragmento).



Cofre: capô do carro.
Metralha: metralhadora.
Vitória de Samotrácia: escultura de Nike, deusa da Vitória, representada como uma figura feminina alada sobre a proa de uma embarcação (c. 200 a.C.).
Destrutor: destruidor.
Escoucinham: dão coices.

a) No primeiro parágrafo, Marinetti declara que a mitologia, símbolo da cultura clássica, está ultrapassada. Explique por que essa afirmação mostra o desejo de romper com as referências tradicionais usadas para a produção artística.

b) Quando afirma “Eis o primeiro sol [...] Nada é igual ao esplendor de sua espada vermelha que se esgrima pela primeira vez nas nossas trevas milenares”, o texto cria, metaforicamente, a imagem de um momento de libertação. O que podem significar as imagens do “primeiro sol” e das “trevas milenares”?

5. Releia o segundo parágrafo, em que Marinetti descreve a si mesmo e a seus companheiros. Essa descrição sugere a valorização do progresso. Por quê?

> Ao se referir aos “homens vivos da terra”, o texto pressupõe que existam homens mortos. No contexto do Manifesto, a quem podemos associar os vivos e os mortos? Justifique.

6. Os três primeiros princípios do Manifesto do Futurismo resumem as ideias valorizadas por seu autor. Quais são elas?

> “Não há mais beleza senão na luta.” Observe a imagem de abertura. Podemos dizer que ela incorpora o ideal de beleza futurista? Por quê?

7. Em quais princípios do manifesto o caráter violento dos futuristas é apresentado de modo positivo?

a) Iconoclasta é alguém que destrói os ícones, as imagens. Você diria que os futuristas são iconoclastas? Explique.

b) “Nós queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo [...].” Como essa afirmação polêmica pode ser entendida?

Um agitado início de século na Europa

No início do século XX, a Europa se encontrava em intensa turbulência. Problemas de natureza política e conflitos entre países vizinhos deram início a desentendimentos locais que acabaram provocando, em 1914, a Primeira Guerra Mundial.

Ao lado da instabilidade política, as pessoas tinham também de construir um novo olhar para a vida, agora transformada pelo impacto das descobertas tecnológicas que começavam a causar espanto. Considerado a era da eletricidade, o século XX viu surgir o telefone, o telégrafo sem fio, o aparelho de raios X, o cinema, o automóvel, o avião, invenções que ampliaram o domínio humano sobre o espaço e o tempo.

A ciência descobriu mundos invisíveis com o auxílio do microscópio: vírus, bactérias, seres minúsculos passaram a ser identificados como inimigos muitas vezes mortais. A teoria da relatividade abalou certezas centenárias e provocou uma verdadeira revolução na física. Quando Einstein afirmou a relatividade do tempo e da distância, transformou o modo como as pessoas percebiam a realidade e avaliavam o universo. Nada mais era definitivo, nada era certo.


Página 26

A primeira parte deste capítulo configura-se como um painel das várias vanguardas artísticas que surgiram no início do século XX. Considerando que a abrangência das vanguardas vai muito além das suas manifestações literárias, foi necessário adaptar a seção “Projeto literário”. Por esse motivo, estamos falando de um projeto artístico, que também engloba as intenções que definem a produção literária do período. Explicar isso para os alunos.

Outro grande abalo para a sociedade europeia foi o surgimento da psicanálise. Quando Freud identificou o inconsciente humano, revelou o impacto dessa força desconhecida sobre as noções tradicionais de identidade, personalidade, responsabilidade e consciência. Mais uma vez as certezas ruíram.

As dimensões da vida e do pensamento não podiam mais ser orientadas pelas referências herdadas do passado. Os primeiros anos do século XX foram o cemitério no qual seriam enterradas as convicções do passado e o berço no qual nasceria uma civilização marcada pela incerteza e pela relatividade.

Vanguardas: ventos de inquietação e de mudança

Nas três primeiras décadas do século XX, o cenário artístico europeu também vivia um momento de grande agitação. Diferentes movimentos artísticos, denominados vanguardas, surgiram para estabelecer novas referências para a pintura, a literatura, a música e a escultura.



Tome nota

De origem latina e alemã, o termo vanguarda aparece, já no século XII, associado a uma posição avançada de ataque, por oposição a retaguarda. No século XVIII, aparecem os primeiros registros de emprego metafórico da palavra para indicar aquilo que está em “primeiro lugar”, que tem “precedência”. A partir da Primeira Guerra Mundial, o termo voltou a ser usado com frequência para designar, nas letras francesas, a parte mais radical dos movimentos literários e estéticos, as propostas artísticas mais inovadoras.

O novo século precisava criar as próprias referências estéticas. É nesse contexto histórico-cultural que nascem os vários “ismos”: Cubismo, Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo.

Praticamente todas as vanguardas lançaram manifestos. Esses manifestos eram textos que divulgavam as propostas das novas formas de expressão artística e definiam estratégias formais para alcançá-las.



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BALLA, G. A velocidade do automóvel. 1913. Óleo sobre cartão, 60 × 98 cm.

© BALLA, GIACOMO/AUTVIS, BRASIL, 2016 - BRIDGEMAN IMAGES/KEYSTONE BRASIL - CÍVICA GALLERIE D'ARTE MODERNA DI MILANO, MILÃO

O projeto artístico das vanguardas europeias

Cada uma das vanguardas que surgem no início do século XX apresenta um projeto próprio, mas todas elas têm uma intenção em comum: romper radicalmente com os princípios que orientavam a produção artística do século XIX. Podemos, então, resumir o projeto artístico das vanguardas como um movimento ousado que quer libertar a arte da necessidade de representar a realidade de modo figurativo e linear.

O desafio enfrentado pelos artistas é claro: encontrar uma nova linguagem capaz de expressar a ideia de velocidade, capturar a essência transformadora da eletricidade, o dinamismo dos automóveis. Por esse motivo, toda a produção artística de vanguarda terá um caráter de ruptura, de choque e de abertura. A ruptura se dá com os valores e princípios do passado; o choque, com as expectativas do público. A abertura é marcada pela busca de novos modos de olhar e interpretar a realidade em permanente estado de transformação.

Os agentes do discurso

Nos últimos anos do século XIX, Paris é a capital cultural da Europa e pulsa com a agitação característica da Belle Époque. Jovens de diversos locais da Europa correm para a cidade, buscando acolhida nos ateliês da região de Montmartre ou da Rive Gauche. Pablo Picasso, Georges Braque, Fernand Léger foram alguns desses jovens. A agitação cultural de Paris é imensa. A própria cidade está de cara nova, reformada pelo projeto de desenvolvimento urbano implementado meio século antes pelo barão Haussmann.

É nesse contexto de produção que nascem as vanguardas. Diferentes grupos se organizam em torno de líderes que assumem o papel de propor e divulgar novos caminhos para a arte.

Surgem então os manifestos como meio de dar maior visibilidade às propostas das diferentes vanguardas. O contexto de circulação dos manifestos é o jornal.

As vanguardas e o público

O espírito agressivo das vanguardas, anunciado no Manifesto do Futurismo, é confirmado pela reação — de modo geral, horrorizada — do público à apresentação da primeira obra cubista: o quadro As senhoritas de Avignon, de Pablo Picasso, que mostra cinco prostitutas nuas, com o rosto e o corpo deformados.

Passado o espanto inicial, o público parisiense dos salões e galerias acostuma-se à “nova arte”. Reconhece que os artistas nem sempre seguem os caminhos tradicionais para fazer circular suas ideias. Como quem lança uma mercadoria e pretende acompanhar a recepção dos consumidores, os jovens artistas invadem jornais, revistas e salões, bombardeando o público com suas propostas iconoclastas.
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Literatura e sociedade

Com base nas informações apresentadas no capítulo, discuta com seus colegas: que acontecimentos indicam uma revolução na sociedade e o surgimento de uma arte marcada pela ruptura e pela radicalização das vanguardas?

Cubismo

Em 1907, a exposição da tela As senhoritas de Avignon provoca comoção na cena artística parisiense.

O quadro revela um modo revolucionário de representar a realidade, rompendo com os conceitos tradicionais de harmonia, proporção, beleza e perspectiva. Com essa obra nasce a pintura cubista, e o seu criador, Pablo Picasso, será o grande mestre do Cubismo, que marcou a arte do século XX. Além dele, também se destacarão Georges Braque e Juan Gris.

A multiplicação dos pontos de vista

Os artistas desejam, agora, apresentar relações e não formas acabadas. Para enfatizar essas relações, propõem diferentes pontos de vista a partir dos quais um determinado objeto pode ser observado. É por isso que essa vanguarda se define pela sobreposição de diferentes planos.

Com essa técnica, os cubistas pretendem forçar o observador a questionar a realidade, não aceitando uma interpretação única, linear.

De olho na arte

Mulheres nuas e máscaras africanas

Na tela, cinco mulheres nuas exibem corpos e rostos definidos por formas geométricas. A deformação dá ao observador a impressão de que foram talhadas a golpes de machado. Os braços são disformes, os cotovelos, pontiagudos, acentuando os ângulos. Com essa obra, Picasso destrói o mito da beleza feminina, ao mesmo tempo que alude à diversidade étnica, deixando evidente nos rostos a inspiração das máscaras africanas.



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PICASSO, P. As senhoritas de Avignon. 1907. Óleo sobre tela, 243,9 × 233,7 cm.

© SUCCESSION PABLO PICASSO/AUTVIS, BRASIL, 2016 – MUSEU DE ARTE MODERNA, NOVA YORK

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Máscara africana da tribo Biombo, proveniente da República Democrática do Congo, s. d.

WERNER FORMAN/CORBIS/LATINSTOCK

A literatura cubista

O primeiro manifesto da literatura cubista, de autoria do poeta francês Guillaume Apollinaire, só surge em 1913, bem depois das primeiras exposições das obras de Picasso e Braque. No texto, Apollinaire procura aliar a visão destruidora dos futuristas à ideia de construção de algo novo.

É na poesia que a literatura cubista ganha forma. Explorando a associação entre ilogismo, simultaneidade, instantaneísmo e humor, os poetas cubistas buscam criar novas perspectivas e afirmar a necessidade de manter as coisas em permanente relação. No Brasil, a influência dessa vanguarda aparece na obra de autores como Oswald de Andrade.

Futurismo

Em 1909, a Europa é surpreendida pelo surgimento de uma nova vanguarda: o Futurismo. Com propostas mais organizadas que o Cubismo, o Futurismo é divulgado através de um manifesto assinado pelo seu líder, Filippo Tommaso Marinetti. Alguns trechos desse texto foram transcritos na abertura deste capítulo.

O grande estardalhaço do Futurismo é provocado pela polêmica figura de Marinetti, que lança mais de 30 manifestos definindo diversos aspectos da nova vanguarda. Em todos, a mesma proposta violenta de destruição total do passado; o mesmo fascínio pela guerra que promove a aniquilação dos símbolos do passado; a mesma exaltação pelas formas do mundo moderno: automóveis, aviões, em um eterno culto à velocidade que Marinetti, fascinado pelas novas tecnologias, vê como uma força mística.

Adotando uma perspectiva violenta, agressiva e iconoclasta, os futuristas exaltam “a bofetada e o soco” como meio de despertar o público da passividade em que se encontra.



De olho na arte

A deslumbrante luz das grandes lâmpadas elétricas

O fascínio pela eletricidade dava identidade à arte futurista. Giacomo Balla, inspirado em um dos primeiros postes de iluminação elétrica instalados em Roma, pintou esse quadro em que justapõe os raios de luz descarregados pela lâmpada em setas multicolores. Perdida em meio aos raios, a Lua parece girar ao redor da lâmpada, sugerindo a submissão da natureza às forças da tecnologia.



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BALLA, G. Poste de iluminação. 1909. Óleo sobre tela, 174,7 × 114,5 cm.

© BALLA, GIACOMO/AUTVIS, BRASIL, 2016 – MUSEU DE ARTE MODERNA, NOVA YORK
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Uma literatura agressiva e provocadora

A violência que destrói as certezas e os modelos obriga o leitor a reagir. O processo de recepção da nova arte passa a ser, assim, mais dinâmico e interativo.

Marinetti recomenda que os textos futuristas destruam a sintaxe, apresentando os substantivos “ao acaso, como nascem”. Os verbos devem ser usados no infinitivo, para que o leitor seja levado a participar da construção do sentido do texto. O líder futurista também recomenda abolir a pontuação, os adjetivos e os advérbios. O objetivo é sempre o mesmo: impedir que a literatura continue a exaltar “a imobilidade pensativa”.

O lado sombrio do Futurismo surge, na Itália, com a chegada de Mussolini ao poder. O fascínio de Marinetti pela violência e pela guerra, aliado a um patriotismo exacerbado, faz com que transforme o movimento em uma espécie de porta-voz do regime fascista, a partir de 1919.



Expressionismo

Alemanha, 1910: uma nova vanguarda toma forma, apresentando-se como reação à estética impressionista de valorização sensorial. É o Expressionismo. Contemporâneo do Cubismo e do Futurismo, a base do Expressionismo é o resultado de um processo criativo que supõe a perda do controle consciente durante a produção da obra de arte. A realidade não deve mais ser percebida em planos distintos (físico, psíquico, etc.), mas sim transformada em expressão.

O movimento expressionista é bastante influenciado pela Primeira Guerra Mundial, e seus quadros ressaltam um lado obscuro da humanidade, retratando faces marcadas pela angústia e pelo medo. A mais conhecida tela expressionista é O grito, de Edvard Munch.

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MUNCH, E. O grito. 1893. Óleo, têmpera e pastel em cartão, 91 × 73,5 cm.

EDVARD MUNCH - GALERIA NACIONAL, OSLO

Literatura expressionista: a tradução das vivências humanas

O único manifesto expressionista surge em 1918. Seu autor, Kasimir Edschmid, procura estabelecer os rumos que a nova visão impunha à literatura.

[...] o universo total do artista expressionista torna-se visão. Ele não vê, mas percebe. Ele não descreve, acumula vivências. Ele não reproduz, ele estrutura. Ele não colhe, ele procura. Agora não existe mais a cadeia dos fatos: fábricas, casas, doença, prostitutas, gritaria e fome. Agora existe a visão disso. Os fatos têm significado somente até o ponto em que a mão do artista os atravessa para agarrar o que se encontra além deles. [...]

EDSCHMID, Kasimir. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 111. (Fragmento).

Inspirados por essas palavras, os poetas expressionistas abordam, em suas obras, a derrocada do mundo burguês e capitalista, denunciando um universo em crise e a sensação de impotência do homem preso em um mundo “sem alma”.

Temas como esses garantem aos textos expressionistas um forte caráter negativista, fazendo com que muitas vezes a representação do mundo se faça de forma grotesca e deformada. A literatura expressionista cria também imagens distorcidas da realidade para traduzir as vivências humanas.



TEXTO PARA ANÁLISE

aperitivo

Neste poema, a cidade de São Paulo da década de 1920 aparece em flashes cubistas.

A felicidade anda a pé


Na Praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus

Cigarros Tietê


Automóveis
A cidade sem mitos

ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 126.



1. Nos dois primeiros versos do poema, qual é a imagem inicial da cidade de São Paulo e da “vida” que nela se movimenta?

a) Em que momento do dia se desenrola essa cena?

b) Que imagens são utilizadas para caracterizar esse momento?

Sugerir aos alunos que revejam, no Capítulo 11 do volume do 2º ano desta coleção, os princípios da estética simbolista. Isso irá ajudá-los a compreender por que o Expressionismo não pode ser confundido com o Simbolismo. Para os simbolistas, as experiências sensoriais, desencadeadas pela obra de arte, são o primeiro passo para o indivíduo perceber a existência de outros planos, que vão além do universo visível. Os expressionistas acreditam que, por abrirem mão do controle consciente durante a criação artística, a obra de arte resultante desse processo já contenha a expressão da realidade.
Página 29

2. Explique de que maneira a expressão “o café vai alto” é a chave para compreender o momento retratado no poema. Considere que o poe ma foi escrito por volta de 1925, época em que o café era responsável por 70% a 80% das exportações brasileiras.

> “São 10 horas azuis.” O uso do adjetivo no verso cria um interessante efeito expressivo. A que pode estar se referindo esse adjetivo?

3. No verso “O café vai alto como a manhã de arranha-céus”, dois aspectos da cidade se sobrepõem: o tempo e o espaço. Explique como isso ocorre.

4. Os três últimos versos do poema apresentam outros aspectos da cidade por meio de alguns elementos. Que elementos são destacados pelo eu lírico?

5. O último verso é uma síntese da cidade de São Paulo. O que ela revela sobre o quadro apresentado ao leitor?

6. Explique por que a composição desse poema é comparada a uma pintura cubista.

Dadaísmo

Em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, o romeno Tristan Tzara (1896-1963) espanta o mundo com mais uma vanguarda: o Dadaísmo, ou Dadá, a mais radical e a menos compreensível de todas as vanguardas.

O Dadá vem para abolir de vez a lógica, a organização, o olhar racional, dando à arte um caráter de espontaneidade total. A falta de sentido já é anunciada no nome escolhido para a vanguarda. Segundo o próprio Tzara: “Dadá não significa nada”.

O principal problema de todas as manifestações artísticas está, segundo os dadaístas, em almejar algo impossível: explicar o ser humano. Em mais uma afirmação retumbante, Tzara decreta: “A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a beleza está morta”.



Literatura: a negação de todos os princípios e relações

A falta de lógica e a espontaneidade alcançam na literatura sua expressão máxima. Em seu último manifesto, Tzara diz que o grande segredo da poesia é que “o pensamento se faz na boca”. Para orientar melhor seus seguidores, cria uma receita para fazer um poema dadaísta.

Pegue um jornal.
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.

Agite suavemente.


Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.
O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público.

TZARA, Tristan. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 132. (Fragmento).

Embora muitas das propostas dadaístas pareçam infantis aos olhos contemporâneos, é preciso levar em consideração o momento em que surgiram. Em uma Europa caótica e em guerra, insistir na falta de lógica e na gratuidade dos acontecimentos talvez não fosse um absurdo, mas o espelho crítico de uma realidade incômoda.

Surrealismo

“O Surrealismo não é um estilo. É o grito da mente que se volta para si mesma.” Assim o ator e escritor Antonin Artaud definiu a última das vanguardas europeias.

Fortemente ligado às artes visuais, o Surrealismo é uma vanguarda interessada em adquirir um maior conhecimento do ser humano. Seus seguidores pretendem, por meio da valorização da fantasia, do sonho, do interesse pela loucura, liberar o inconsciente humano, terreno fértil e ainda muito pouco explorado.

O fascínio pelo inconsciente e por todas as formas que vão além da realidade objetiva aproxima os surrealistas da teoria psica nalítica de Sigmund Freud. Para eles, a teoria de Freud é um sinal de que há muito a ser descoberto sobre o ser humano, mas a razão não é o melhor instrumento para essas descobertas, porque ela ignora nosso universo inconsciente. Por isso, as manifestações artísticas produzidas pelos surrealistas são um desafio evidente à organização racional do mundo.

Explorando os limites do real, estudando a loucura, os sonhos, os estados alucinatórios e outras manifestações do inconsciente, os surrealistas produzem uma arte de impacto, que chega até nossos dias nas telas de Salvador Dalí, Juan Miró, Giorgio de Chirico e René Magritte, entre outros.

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DE CHIRICO, G. O som do amor. 1914. Óleo sobre tela, 73 × 59,1 cm. A combinação de elementos na tela desencadeia uma inusitada relação, criando o que Giorgio de Chirico chamou de pintura metafísica. A atmosfera fragmentada e melancólica resultante dessas associações evoca, segundo o autor, o absurdo de um mundo dividido pela Primeira Guerra Mundial.

© CHIRICO, GIORGIO DE/AUTVIS, BRASIL, 2016 – HAMBURGER KUNSTHALLE, HAMBURGO
Página 30

Literatura surrealista: dimensões oníricas

O grande nome da literatura surrealista é André Breton. Em 1924, ele publica em Paris o Manifesto do Surrealismo, em que define o espírito e os objetivos da nova vanguarda.

Na literatura, a liberação do inconsciente deve ser alcançada com o auxílio da escrita automática. No manifesto, André Breton ensina como usar o automatismo para fazer emergir o inconsciente.

[...] Mandem trazer algo com que escrever, depois de se haverem estabelecido em um lugar tão favorável quanto possível à concentração do espírito sobre si mesmo. Ponham-se no estado mais passivo, ou receptivo que puderem. Façam abstração de seu gênio, de seus talentos e dos de todos os outros. Digam a si mesmos que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escrevam depressa, sem um assunto preconcebido, bastante depressa para não se conterem e não serem tentados a reler. A primeira frase virá sozinha, tanto é verdade que a cada segundo é uma frase estranha a nosso pensamento consciente que só pede para se exteriorizar. [...]

BRETON, André. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 194. (Fragmento).

O resultado desse processo é sempre um texto em que as relações lógicas não servem de apoio para o leitor, porque as imagens criadas não encontram equivalente no mundo conhecido. Privado das bases racionais de análise, não resta ao leitor outra saída a não ser entregar-se ao universo de sonho proposto pelo texto.

Ecos brasileiros da literatura surrealista

No Brasil, o Surrealismo lança suas raízes na obra do modernista Murilo Mendes, que procura, em vários poemas, construir imagens que trazem à tona o misterioso inconsciente.



Aproximação do terror

I

Dos braços do poeta


Pende a ópera do mundo
(Tempo, cirurgião do mundo): —

O abismo bate palmas,


A noite aponta o revólver.
Ouço a multidão, o coro do universo,
O trote das estrelas

Já nos subúrbios da caneta:


As rosas perderam a fala.
Entrega-se a morte a domicílio.

Dos braços...


Pende a ópera do mundo. [...]

MENDES, Murilo. Poesia liberdade. In: Picchio, Luciana Stegagno (Org.). Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 2. p. 431. (Fragmento).

A sucessão de imagens apresentadas no poema não permite que o leitor componha um quadro único, racional, em que possa perceber as relações lógicas entre as sequências. A atmosfera criada lembra o espaço do sonho, em que acontecimentos totalmente não relacionados se apresentam enca deados, como se formassem uma sequência lógica.

A herança brasileira das vanguardas

A principal herança das vanguardas europeias para a literatura brasileira, além da influência localizada que algumas delas exerceram sobre certos poetas e escritores, é o impulso de destruir os modelos arcaicos, desafiar o gosto estabelecido e propor um olhar inovador para o mundo. Ruptura e transformação: dois termos que definem bem o espírito da primeira geração modernista, como veremos no próximo capítulo.

Justamente porque tiveram em comum o desejo de questionar posturas convencionais e coragem para ousar, não se pode falar em uma “tradição” específica das vanguardas. Seria até uma contradição pensar que movimentos tão desafiadores estabeleceriam “padrões” a serem seguidos em momentos futuros. Seu legado foi a irreverência diante de todo e qualquer padrão preestabelecido.

Com suas propostas agressivas, iconoclastas, desafiadoras, as vanguardas libertaram a arte dos modelos que, durante séculos, dominaram o olhar dos artistas para a realidade. Em resumo, criaram uma nova arte para um novo mundo e uma nova humanidade.



TEXTO PARA ANÁLISE

O pastor pianista

Uma estranha situação é apresentada neste poema: pianos são “pastoreados”.

Soltaram os pianos na planície deserta


Onde as sombras dos pássaros vêm beber.
Eu sou o pastor pianista,
Vejo ao longe com alegria meus pianos
Recortarem os vultos monumentais
Contra a lua.

Acompanhado pelas rosas migradoras


Apascento os pianos: gritam
E transmitem o antigo clamor do homem
Página 31

Que reclamando a contemplação,


Sonha e provoca a harmonia,
Trabalha mesmo à força,
E pelo vento nas folhagens,
Pelos planetas, pelo andar das mulheres,
Pelo amor e seus contrastes,
Comunica-se com os deuses.

MENDES, Murilo. Poesia liberdade. In: PICCHIO, Luciana Stegagno (Org.). Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 1. p. 343.



Apascento: conduzo ao pasto, pastoreio.

1. O poema apresenta uma cena com elementos estranhos ao real, que remetem ao universo dos sonhos. Que cena é essa? Justifique com passagens do poema.

> O que produz estranhamento nas imagens criadas pelo poema?

2. O título do poema apresenta mais de um significado possível. Qual seria o significado mais convencional da expressão “pastor pianista”?

a) Que significado essa expressão assume no contexto do poema?

b) Quais são os elementos do texto que justificam sua resposta?

3. Na última estrofe, o eu lírico deixa de se referir aos pianos e passa a refletir sobre a natureza humana. Quais são, segundo o eu lírico, as ações desempenhadas pelo homem no mundo?

a) Através de que meios o homem “comunica-se com os deuses”?

b) Explique por que as imagens não provocam mais estranhamento nessa estrofe.

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