. Acesso em: 26 fev. 2016.
Em Clarice Lispector, a experimentação afeta principalmente a estrutura da narrativa. É o domínio da técnica do fluxo de consciência, porém, que se torna a marca registrada da autora.
— — — — — — estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra coisa? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi — na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro. [...]
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 11. (Fragmento).
A paixão segundo G.H. começa assim, com uma série de travessões. O leitor é lançado, sem qualquer aviso, nos confusos pensamentos da personagem. Não se sabe o que foi que ela viveu, nem por que essa experiência teve um impacto tão grande em sua vida. Essa apresentação de uma série de impressões, de reações, de sentimentos configura o fluxo de consciência da personagem. Nas obras de Clarice, essa técnica é usada para permitir que o leitor acompanhe de perto todas as transformações por que passam as personagens no processo de descoberta interior.
Clarice Lispector e Guimarães Rosa trazem a escrita para o primeiro plano, valorizando a elaboração do texto e o trabalho com a linguagem como espaço de construção de mundos específicos.
Literatura e contexto histórico
Considere as seguintes informações:
I. Em 1959, Fidel Castro toma o poder em Cuba.
II. Em 1963, o presidente norte-americano John F. Kennedy é assassinado.
III. Em 1968, ocorrem protestos estudantis em vários países por reformas educacionais e políticas. No Brasil, o presidente Costa e Silva decreta o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em vigor até 1978, que o autoriza a fechar o Congresso, cassar direitos civis elementares e censurar a imprensa.
> Com base nessas informações e nas apresentadas no Capítulo 6, discuta com seus colegas: de que maneira os grandes acontecimentos sociais, culturais e políticos que transformaram o século XX favorecem o surgimento de novas perspectivas estéticas caracterizadas pela experimentação?
Guimarães Rosa: o descobridor do sertão universal
O caráter regionalista que definiu a ficção da geração de 1930 aparece completamente transformado nas obras de Guimarães Rosa. As marcas regionais são evidentes nos termos utilizados, na recriação da fala de jagunços e de vaqueiros do interior de Minas. As questões tematizadas, porém, vão muito além de uma perspectiva regional.
Em suas narrativas, Rosa fala dos grandes dramas humanos: a dor, a morte, o ódio, o amor, o medo. Indagações filosóficas aparecem na boca de homens simples, incultos, deixando claro que os grandes fantasmas da existência podem ser identificados em qualquer lugar, desde um grande centro urbano até um minúsculo vilarejo nos sertões das Gerais.
Em 1952, Guimarães Rosa viajou durante dez dias pelo cerrado mineiro acompanhando uma boiada.
COLEÇÃO PARTICULAR
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As narrativas curtas: contos e novelas
Autor de um único romance, Guimarães Rosa tornou-se conhecido pelo livro de contos Sagarana. Quando a obra surgiu, em 1948, causou surpresa pela linguagem, que recriava o português como língua literária e dava uma dimensão nova ao regionalismo.
Dos contos e novelas de Guimarães Rosa, emerge um mundo sempre marcado pelo confronto de opostos: o arcaico e o moderno, o rural e o urbano, o oral e o escrito.
Os contos de Primeiras estórias podem ser vistos como um conjunto em que o foco está no confronto entre sanidade e loucura (explicitamente tematizado, por exemplo, em “Sorôco, sua mãe, sua filha” e “Nada e a nossa condição”). Além disso, a infância, o amor, a violência e o misticismo retornam como temas de grande interesse para o autor.
A capacidade de apresentar o olhar infantil, presente em alguns contos de Primeiras estórias, atinge seu ponto máximo na novela Campo geral, narrativa extremamente lírica, em que Guimarães Rosa recria o mundo segundo a perspectiva do menino Miguilim, personagem de fundo autobiográfico.
Grande sertão: veredas e os avessos do homem
Riobaldo, protagonista e narrador de Grande sertão: veredas, cresceu na fazenda de seu “padrinho” (na verdade, o pai que não havia reconhecido a paternidade). Essa condição lhe garantiu alguma educação formal. Sua educação real, porém, acontece quando ele se junta a um bando de jagunços e começa a longa viagem pelo sertão das Gerais.
[...] Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. [...] Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.
Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele — dizem só: o Que-Diga. [...] Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!
Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. [...]
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 23-25. (Fragmento).
Torar: ir, viajar.
Arredado: afastado, distante.
Arrocho: aperto.
Gloso: comento, falo.
Rebuço: disfarce.
Recontada em forma de um longo monólogo, a narrativa se passa no interior de Minas Gerais, onde geograficamente se localiza o sertão real associado a esse romance. O texto, porém, povoa esse espaço com as sagas dos seus habitantes, o que o torna mítico. Assim, o sertão se expande, perde suas fronteiras geográficas e reais e passa a simbolizar a busca pelas respostas para as grandes questões humanas: o que é o bem?, o que é o mal?
Riobaldo, guia dos leitores na travessia, aprende a ver a beleza do sertão, enfrenta o medo, torna-se admirado pelos companheiros, descobre o amor. Na sua trajetória, o jagunço descobre que a vida é sempre uma situação de risco — “Viver é muito perigoso”, repete várias vezes ao longo de sua narrativa — e, no sertão, isso significa que as pessoas precisam aprender a se adaptar às condições em que se encontram: “aprender a viver é que é o viver mesmo”.
Nesse sentido, o sertão faz o homem, e a narrativa de Guimarães Rosa mostra esse homem em toda a sua amplitude, revelando os seus avessos, as suas angústias, os seus momentos heroicos e covardes. Vencida a travessia da linguagem e o desafio de acompanhar a “especulação de ideias” de Riobaldo, o leitor aprende a lição maior, aquela que vai lhe permitir superar os seus próprios avessos: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão, é tomando conta dele a dentro...”.
Ilustração de Poty Lazzarotto para a primeira edição de Grande sertão: veredas, 1956.
POTY LAZZAROTTO
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TEXTO PARA ANÁLISE
Campo geral
O trecho a seguir mostra o momento em que a visita de um médico muda a vida do menino Miguilim.
[...] Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. [...] O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: — “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? E agora?” [...]
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
— Olha, agora!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. [...] E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro contar à Rosa, à Maria Pretinha, à Mãitana. [...].
Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.
— “Você está triste Miguilim?” — Mãe perguntou.
Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.
— Pra onde ele foi?
— A foi p’ra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele volta, de manhã, antes de ir s’embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele junto te leva... — O doutor era homem muito bom, levava o Miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. — “Você quer mesmo ir?”
Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até ao fundo, se esfriava. Mas Mãe disse:
— Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. [...]
O doutor chegou. — “Miguilim, você está aprontado? Está animoso?” Miguilim abraçava todos, um por um, dizia adeus até aos cachorros, ao Papaco-o-Paco, ao gato Sossõe que lambia as mãozinhas se asseando. [...] Estava abraçado com Mãe. Podiam sair.
Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim.
E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. [...] O Mutum era bonito! Agora ele sabia. [...]
Olhava mais era para Mãe. [...] Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: — “Não sei, quando eu tiro esses óculos, tão fortes, até meus olhos se enchem d’água...” Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um soluçozinho veio. [...] Nem sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe doces de leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 139-142. (Fragmento).
Carecia: precisava.
Curvelo: cidade de Minas Gerais.
Ofício: profissão.
Algibeiras: bolsos da roupa.
1. Que informações o texto fornece a respeito do doutor José Lourenço?
> Embora a narrativa esteja em terceira pessoa, a perspectiva adotada é a de Miguilim. O que significa, nesse contexto, a afirmação de que o doutor José Lourenço “tudo podia”?
2. Assim que Miguilim colocou os óculos do doutor, passou a ver tudo. Transcreva em seu caderno as expressões que retratam a nova “visão” de mundo do garoto.
a) Como Miguilim reagiu diante dessa nova “realidade”?
b) “Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...” Nessa frase, o uso da linguagem deixa evidente que a perspectiva adotada na narrativa é a do menino. Explique por quê.
3. Explique de que maneira o trecho a seguir mostra que a realidade é captada a partir da óptica infantil de Miguilim.
“Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.”
4. Qual o trecho que mostra o medo e a dúvida de Miguilim em sair de Mutum?
a) De que maneira essas emoções aparecem no trecho?
b) Sua mãe o aconselha a partir, dizendo: “É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar”. A que ela está se referindo?
5. De que maneira a partida comovente de Miguilim é transmitida ao leitor?
> Essa narrativa mostra o processo de amadurecimento de Miguilim. Explique de que maneira a descoberta da miopia e sua partida simbolizam esse amadurecimento.
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Clarice Lispector: a busca incansável da identidade
A menina Haia nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia. Quando veio para o Brasil, em 1922, recebeu o nome que a consagraria como uma das maiores escritoras brasileiras: Clarice Lispector (1920-1977).
Sua estreia aconteceu com a publicação do romance Perto do coração selvagem (1943). A obra desnorteou a crítica, que não estava preparada para a força da narrativa intimista de Clarice.
No mesmo ano de sua estreia editorial, a escritora casou-se com Maury Gurgel, um diplomata de carreira, e viveu por 15 anos fora do país. Com a separação do marido, em 1960, voltou ao Rio de Janeiro, onde permaneceu até sua morte.
Entre os seus romances, destacam-se A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). Entre os vários volumes de contos que publicou, Laços de família (1960) e Felicidade clandestina (1971) trazem algumas de suas obras-primas, como “Amor”, “A imitação da rosa”, “Feliz aniversário”, “Felicidade clandestina”, “Tentação”, “Os desastres de Sofia”. Escreveu também crônicas e textos de literatura infantil.
Clarice Lispector, São Paulo, s. d.
ARQUIVO/FOLHAPRESS
A descoberta do “eu”
A literatura produzida por Clarice Lispector não se preocupa com a construção de um enredo tradicionalmente estruturado, com começo, meio e fim. Ela busca a compreensão da consciência individual, marcada sempre pela grande introspecção das personagens.
Suas narrativas tratam do momento preciso em que uma personagem toma consciência da própria individualidade. Esse momento pode ser desencadeado por situações corriqueiras, como a contemplação de rosas ou a visão de um cego mascando chiclete. Como a autora declarou: “os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”.
São situações narrativas complexas, em que as personagens passam por transformações capazes de abalar a estrutura prosaica de suas vidas. Um texto exemplar desse processo de transformação é o conto "Amor".
Ana, a protagonista do conto, é uma mulher de classe média com uma vida completamente organizada em torno da família. Sua vida é linear: nada sai dos trilhos, tudo ocorre segundo uma rotina prevista e esperada. O perigo está nas horas em que as tarefas domésticas já foram concluídas e ela se vê com tempo em suas mãos. É em um desses momentos que se dá sua descoberta.
Folha de rosto de A legião estrangeira com dedicatória de Clarice Lispector.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, RIO DE JANEIRO
[...] Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. [...]
LISPECTOR, Clarice. Amor. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 21-22. (Fragmento).
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Avistar um cego que mascava chiclete faz com que a vida tão controlada por Ana seja abalada em suas raízes. Essa visão a liberta da rotina de acontecimentos previsíveis e devolve-lhe a possibilidade de uma existência individual. O tormento de Ana prolonga-se por todo o dia até que, de volta ao convívio com o marido e com os filhos, o mundo familiar vai aos poucos recolocando-a em seu papel convencional.
Esse processo de descoberta individual por que passam as personagens de Clarice Lispector é chamado de epifania. O termo faz referência à apreensão intuitiva da realidade por algo geralmente simples e inesperado. Nesse sentido, é a percepção do significado essencial de alguma coisa.
Tome nota
Na obra de Clarice Lispector, epifania significa a descoberta da própria identidade a partir de um estímulo externo (como a visão do cego mascando chicletes, no conto “Amor”). As personagens, nesse momento, descobrem a própria essência, aquilo que as distingue das demais e as transforma em indivíduos singulares.
Uma estrutura recorrente
Nos seus muitos romances e contos, Clarice Lispector trata da condição feminina, da dificuldade de relacionamento humano, da hipocrisia dos papéis socialmente definidos, da busca pelo “eu”. As narrativas apresentam uma estrutura semelhante, que o crítico Affonso Romano de Sant’Anna definiu em quatro passos:
1. A personagem é disposta numa determinada situação cotidiana.
2. Prepara-se um evento que é pressentido discretamente pela personagem (algo como uma inquietação).
3. Ocorre o evento que ilumina sua vida (epifania).
4. Apresenta-se o desfecho, no qual a situação da vida da personagem, após a epifania, é reexaminada.
O trabalho com a linguagem é fundamental para que esse processo de autodescoberta adquira a dimensão intimista que permite, ao leitor, acompanhar os efeitos, na personagem, do momento de iluminação. A autora promove, na forma do texto, uma desconstrução equivalente àquela vivida pelas personagens, fazendo com que a própria linguagem assuma uma função libertária.
TEXTO PARA ANÁLISE
A hora da estrela
Neste trecho, o encontro de Macabéa com Olímpico e o “namoro” dos dois são apresentados pelo narrador.
[...]
Maio, mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus. Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou (explosão) a primeira espécie de namorado de sua vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada-com-queijo.
Ele...
Ele se aproximou e com voz cantante de nordestino que a emocionou, perguntou-lhe:
— E se me desculpe, senhorita, posso convidar a passear? [...]
— Sim, respondeu atabalhoadamente com pressa antes que ele mudasse de ideia.
— E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?
— Macabéa.
— Maca, o quê?
— Béa, foi ela obrigada a completar.
— Me desculpe mas até parece doença, doença de pele.
— Eu também acho esquisito, mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se eu vingasse, até um ano de idade e eu não era chamada porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo. — Parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor: — Pois como o senhor vê eu vinguei... pois é...
— Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de honra.
Englutido: engolido.
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Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com medo que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao recém-namorado:
— Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Da segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que ensopava os ossos. Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo.
Da terceira vez em que se encontraram — pois não é que estava chovendo? — o rapaz, irritado e perdendo o leve verniz de finura que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:
— Você também só sabe é mesmo chover!
— Desculpe.
Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava em desespero de amor.
Numa das vezes em que se encontraram ela afinal perguntou-lhe o nome.
— Olímpico de Jesus Moreira Chaves, mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai. Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar as pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher.
— Eu não entendo o seu nome, disse ela. Olímpico?
Macabéa fingia enorme curiosidade escondendo dele que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso era assim mesmo. Mas ele, galinho de briga que era, arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não sabia responder. Disse aborrecido:
— Eu sei, mas não quero dizer!
— Não faz mal, não faz mal, não faz mal... a gente não precisa entender o nome.
[...]
Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de “operário” e sim de “metalúrgico”. Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo. “Metalúrgico e datilógrafa” formavam um casal de classe. [...]
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 42-45. (Fragmento).
1. No caderno, transcreva do trecho algumas características de Macabéa e Olímpico.
> Considerando a caracterização dos dois, como pode ser interpretada a frase “Eles não sabiam como se passeia”?
2. Transcreva no caderno expressões do texto que revelam os sentimentos de Macabéa por Olímpico.
a) O que essas expressões indicam a respeito da dimensão dos sentimentos da moça?
b) É possível afirmar que Olímpico nutria o mesmo tipo de sentimento pela jovem? Explique.
c) Olímpico é definido pelo narrador como “a primeira espécie de namorado” da vida de Macabéa. O que o uso dessa expressão indica a respeito da relação que existia entre eles?
3. Nos três primeiros encontros dos dois jovens está chovendo. Que sensação a repetição desse fato provoca no leitor?
> Macabéa é caracterizada, ao longo da narrativa, como alguém insignificante, incapaz de qualquer rea ção diante da vida. De que maneira essa característica pode ser percebida no momento em que Olímpico atribui a ela a responsabilidade pela chuva?
4. A ingenuidade de Macabéa é uma de suas características mais marcantes. Como isso fica evidente no último parágrafo?
> Embora tenha a mesma origem, Olímpico não adota a mesma atitude de conformidade diante da vida apresentada por Macabéa. Como a ambição dele é insinuada pelo narrador no último parágrafo?
5. A obra de Clarice Lispector se caracteriza sobretudo pela narrativa intimista, introspectiva, sem preo cupação em tratar explicitamente de questões sociais. Assim, de que maneira a construção de uma protagonista como Macabéa diferencia A hora da estrela de outros textos da autora?
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Diálogos literários: presente e passado
Caso queira apresentar aos alunos outros textos sobre a tradição da crônica como forma de expressão da subjetividade abordada nesta seção, sugerimos a leitura dos seguintes textos desse gênero: “Analfabetismo”, de Machado de Assis, e “O novo manifesto”, de Lima Barreto.
Na atualidade, a crônica segue como contraponto, em uma mesma esfera, para os gêneros em que deve prevalecer uma perspectiva imparcial, como a notícia e a reportagem. Nela, o leitor encontrará sempre um olhar pessoal do autor a respeito de assuntos e temas diversos, revelando uma subjetividade característica.
A tradição da crônica como forma de expressão da subjetividade, no entanto, tem início no século XIX. O gênero foi praticado por alguns nomes bastante célebres na literatura brasileira, como Machado de Assis, José de Alencar e Lima Barreto.
No próximo capítulo, você verá que, no final do século XX e no início do XXI, a crônica se revitalizou e passou a ter espaço cativo em grandes jornais brasileiros. O desenvolvimento da internet nos anos 1990 possibilitou que esse gênero, caracterizado pela flexibilidade de assuntos e estilos, saísse das páginas impressas e ganhasse maior visibilidade no mundo virtual.
Hoje, inclusive, há toda uma geração de escritores que faz uso da crônica e de sua divulgação em mídias eletrônicas como uma forma de expressar sentimentos e reflexões acerca de fatos cotidianos, que perdem assim sua efemeridade e se perpetuam. A publicação de crônicas em blogs e sites aumentou a popularidade do gênero e fez com que alguns autores se tornassem conhecidos do público por seu estilo. Esse sucesso possibilitou a muitos deles que posteriormente reunissem, impressos em livro, os textos veiculados no universo digital.
Para começar a entender como esse gênero se caracteriza e qual a sua importância na literatura atual, veja a seguir as crônicas de dois autores contemporâneos.
Ruy Castro e uma reflexão sobre o mundo virtual
Redes antissociais
A publicação de jornais e revistas on-line abriu um importante canal de comunicação com os leitores. Assim que leem um artigo ou reportagem, eles podem enviar seu comentário sobre o texto ou o assunto de que este trata. Publicado ao pé da matéria, o dito comentário desperta a opinião de outros leitores e, em poucos minutos, está criado um fórum de discussão entre pessoas que nunca se viram, nunca se verão e podem estar a milhares de quilômetros umas das outras.
Ainda bem. Pelo teor de alguns desses comentários, é bom mesmo que não se encontrem. Se um leitor discorda enfaticamente do que leu, pode atrair a resposta raivosa de um terceiro, o repique quase hidrófobo de um quarto e um bombardeio de opiniões homicidas na sequência. Lá pelo décimo comentário, o texto original já terá sido esquecido e as pessoas estarão brigando on-line entre si.
O anonimato desses comentários estimula a que elas se sintam livres para passar da opinião aos insultos e até às ameaças. Na verdade, são um fórum de bravatas, já que seus autores sabem que nunca se verão frente a frente com os alvos de seus maus bofes.
Já com as “redes sociais” é diferente. Elas também podem ser um festival de indiscrições, fofocas, agressões, conspirações e, mais grave, denúncias sem fundamento. E, como acolhem e garantem a impunidade de todo tipo de violência verbal, induzem a que as pessoas levem esse comportamento para as ruas. Será por acaso a crescente incidência, nos últimos anos, de quebra-quebras em manifestações, brigas em estádios, arrastões em praias [...]?
São algumas das atividades que as turbas combinam pelas “redes sociais” — expressão que, desde sempre, preferi escrever entre aspas, por enxergar nelas um componente intrinsecamente antissocial.
CASTRO, Ruy. Redes antissociais. Folha de S.Paulo, 15 jan. 2014. Disponível em:
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