Português: contexto, interlocução e sentido



Yüklə 4,64 Mb.
səhifə5/72
tarix02.08.2018
ölçüsü4,64 Mb.
#66342
1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   72
, há um filme para ilustrar o episódio do regicídio.

O século XX chega a Portugal

A crise política do regime monárquico, iniciada pelo Ultimatum inglês (1890), agravou-se com o assassinato, em fevereiro de 1908, do rei Carlos I e de seu herdeiro, o príncipe Luís Felipe.

Em outubro de 1910 eclodiu a revolução que pôs fim à monarquia portuguesa. O partido democrático, responsável pela condução do país nesse primeiro momento, enfrentou dura resistência dos setores burgueses. Associados ao capital estrangeiro, os burgueses eram politicamente representados pelos partidos conservadores.

Um golpe de estado liderado por Sidônio Pais, em 1917, deu início a um período de ditadura. O assassinato de Sidônio, em 14 de dezembro de 1918, porém, agravou ainda mais a instabilidade política no país.

Os governos republicanos tiveram, de modo geral, uma feição progressista: houve uma evidente ampliação da participação política, foram feitos investimentos na educação, promovendo o ensino livre e levando a cultura às massas populares. O cenário político, porém, permanecia em estado de turbulência, e os governos parlamentares enfrentavam oposição tanto dos setores de esquerda quanto dos de direita.

Uma reação burguesa contra a “corrupção” política deu origem ao golpe militar de 1926. Favorecidos pela desarticulação das forças político-partidárias, os militares prometiam restaurar a ordem pública e impor um duro controle à economia portuguesa. Para desenvolver a nova política econômica foi convocado Antonio de Oliveira Salazar, professor de Finanças da Universidade de Coimbra.

Aos poucos Salazar foi conquistando maior poder dentro do governo até que, em 1933, fez aprovar uma nova Constituição e iniciou a ditadura do Estado Novo, que só chegaria ao fim em 1974.

Modernismo português: primeiros passos

O panorama de instabilidade interna fez com que o povo português manifestasse, de modo acentuado, um sentimento que sempre o caracterizou: o saudosismo.

A lembrança das antigas glórias marítimas que haviam tornado Portugal uma das potências mundiais no século XVI e a lamentação pelo desconcerto que dominou o país após o desaparecimento de Dom Sebastião serviram de berço para o nascimento de uma revista que representaria o primeiro momento do Modernismo português: Orpheu, lançada em 1915.

Nas páginas de Orpheu, o Modernismo português toma forma

Mais do que uma revista, Orpheu foi um marco: símbolo do nascimento de uma geração de escritores que trouxe para Portugal a essência do movimento modernista. Nas suas páginas surgiram as grandes revelações literárias do início do século XX: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José de Almada Negreiros.



Orpheu só teve dois números publicados (um terceiro chegou a ser editado). Os textos que circularam na revista revelam uma clara influência de alguns movimentos da vanguarda europeia, principalmente o Cubismo e o Cubofuturismo. Na proposta de ruptura com o passado, pode ser identificada a influência da estética surrealista, que defendia o abandono da reprodução naturalista da realidade. Ecos futuristas também se fazem presentes, já no primeiro número de Orpheu, nos versos da “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, e no “Ultimatum futurista”, de Almada Negreiros.
Página 32

Almada Negreiros: a ira contra a estagnação portuguesa

Um dos mais ativos e influentes artistas da geração Orpheu foi José de Almada Negreiros (1893-1970). O autor nasceu em São Tomé e Príncipe, mas veio cedo para Portugal, onde estudou no colégio dos jesuítas. Quando ingressou na Escola Internacional de Lisboa, começou a divulgar seus textos e desenhos. Entusiasmado com a possibilidade de transformar a sociedade portuguesa por meio da arte, Almada destaca-se não apenas pelos textos que escreve, mas também por sua excelente produção como pintor, revelando-se um homem perfeitamente sintonizado com as tendências mais modernas da arte na Europa.

Em 1917, o escritor chocou o povo português com a divulgação do “Ultimatum futurista”, no qual fazia um apelo aos jovens para que assumissem a recuperação da pátria e do espírito portugueses, comprometidos pela fraqueza e saudosismo das gerações anteriores. Na exaltação que faz da guerra como mecanismo transformador, fica evidente a influência das ideias do líder futurista Marinetti. Observe.

ULTIMATUM FUTURISTA

ÀS GERAÇÕES PORTUGUESAS DO SÉCULO XX

1917


EU NÃO PERTENÇO a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva.

Eu sou um poeta português que ama a sua pátria. Eu tenho a idolatria da minha profissão e peso-a. Eu resolvo com a minha existência o significado actual da palavra poeta com toda a intensidade do privilégio.

Eu tenho 22 anos fortes de saúde e de inteligência.

[...]


É preciso criar o espírito da aventura contra o sentimentalismo literário dos passadistas.

É preciso criar as aptidões pró heroísmo moderno: o heroísmo quotidiano.

É preciso destruir este nosso atavismo alcoólico e sebastianismo de beira-mar.

[...]

FINALMENTE: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX.



DIGO SEGUNDA VEZ: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX.

DIGO TERCEIRA VEZ: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX.

[...]

O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.



ALMADA NEGREIROS, José de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 649-655. (Fragmento).

Atavismo: herança de características psicológicas, intelectuais ou comportamentais.
Sebastianismo: crença na volta mística de D. Sebastião, rei de Portugal; reacionarismo; teimosia.

Além de uma vasta produção poética, Almada Negreiros também se destaca pelos romances e peças de teatro. Sua presença mais contundente na cena modernista portuguesa, porém, ficará registrada nos inúmeros manifestos, ensaios, crônicas e textos de prosa doutrinária que publicou ao longo dos seus 77 anos.



a

0032_001.jpg

Neste painel da Gare Marítima de Alcântara, de 1936, José de Almada Negreiros, modernista português, registra a presença fundamental do mar e das navegações no imaginário do povo lusitano, promovendo a associação entre o real e o lendário.

© NEGREIROS, ALMADA/AUTVIS, BRASIL, 2016 - GARE MARÍTIMA DE ALCÂNTARA, LISBOA

Se julgar interessante, explicar aos alunos que os três painéis que compõem a Gare de Alcântara foram inspirados em uma história da tradição oral portuguesa, A Nau Catrineta (“Lá vem a Nau Catrineta que traz muito o que contar”). Nas imagens, Almada descreve a fome que acometia os marinheiros (sentados diante de pratos vazios); representa o capitão, ansioso para avistar terra, cercado pelas imagens do diabo e da morte; a triste espera das moças, em um laranjal; a vitória do anjo sobre o demônio, salvando a alma do capitão; e o encontro festivo das famílias em uma feira popular. A imagem reproduzida representa somente o primeiro painel da obra de Almada.

Mário de Sá-Carneiro e a fragmentação do “eu”

Um pouco mais de sol — eu era brasa, / Um pouco mais de azul — eu era além, lamenta-se o eu lírico do poema “Quase”, resumindo em belas imagens a imensa frustração que marcou a vida de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916).

Ao contrário do entusiasmado e combativo Almada, Sá-Carneiro anuncia, em suas obras, não a necessidade de transformar a realidade, mas aquele que será o grande drama do homem do século XX: a fragmentação da identidade, a aflição do indivíduo que se vê sufocado pela multidão e pelas inovações tecnológicas. O autor persegue esse tema tanto nas obras em prosa quanto na poesia que escreveu. A esse respeito, são célebres os versos do poema “Dispersão”.



Dispersão

Perdi-me dentro de mim


Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Página 33

Passei pela minha vida


Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,


Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

[...]


Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me na alma o crepúsculo;


Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal


Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,


E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...

Castelos desmantelados,


Leões alados sem juba...

Paris, maio de 1913

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 61-63. (Fragmento).

Todos os textos que Sá-Carneiro escreveu manifestam uma grande sensibilidade, marcada pela expressão de uma angústia existencialista praticamente insuportável.

A influência do decadentismo e da estética simbolista de fim de século é recorrente nos poemas de Dispersão, nas novelas de Princípio e Céu em fogo, na peça teatral Amizade e, principalmente, no estranho A confissão de Lúcio. Com esta narrativa, Sá-Carneiro leva para a ficção o tema da fragmentação do “eu” e constrói a mais impressionante novela do Modernismo português.

Trilha sonora

Entre eu e o outro

O outro

Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

CALCANHOTTO, Adriana; SÁ-CARNEIRO, Mário de. O outro. Intérprete: Adriana Calcanhotto. Público, 2000. Rio de Janeiro: BMG. © Editora Minha Música/Domínio Público

Os versos de “O outro”, musicados por Adriana Calcanhotto, resumem bem a essência da poesia de Sá-Carneiro, sempre voltada para as indagações sobre a constituição da identidade.

Fernando Pessoa: o poeta de muitas faces

Quando se estuda a obra poética de Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935), é necessário fazer uma distinção entre todos os poemas que assinou com o seu nome verdadeiro, portanto considerados poesia ortônima, e todos os outros, atribuídos a diferentes heterônimos.

Além do escândalo da publicação de Orpheu, que lhe rendeu alguma celebridade, a vida de Fernando Pessoa foi basicamente anônima e solitária. Conhecido apenas por um reduzido grupo de amigos, dentre os quais merece posição destacada Mário de Sá-Carneiro, o autor costumava espantá-los com sua inteligência assombrosa e sua vasta produção poética.

Quando, após sua morte, os críticos descobriram a riqueza de sua obra e o fenômeno da heteronímia, Pessoa finalmente conheceu a fama merecida e hoje é visto como um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos.



0033_001.jpg

Fernando Pessoa. Local e data da foto desconhecidos.

ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL, LISBOA

A poesia ortônima

Alguns temas marcam a poesia ortônima de Fernando Pessoa. Em inúmeros poemas, o tema do “questionamento do eu” é abordado, às vezes de modo mais sofrido e denotando uma grande angústia, às vezes de modo mais casual.



Se julgar interessante, explicar aos alunos que ortônimo significa nome civil completo e correto, declarado pelo próprio indivíduo. No caso da obra de Fernando Pessoa, o termo se fez necessário para diferenciar os textos assinados pelo poeta de todos os outros que atribuiu a seus vários heterônimos. Trataremos especificamente dos heterônimos pessoanos mais adiante, na seção “A poesia heterônima”.
Página 34

a O termo encoberto está relacionado às profecias do sapateiro Bandarra, feitas à época do desaparecimento de D. Sebastião. Segundo os versos de Bandarra, o rei voltaria, “encoberto pela névoa do mar português”, para liderar Portugal em direção a um destino de glória.

A variação de tom, porém, não representa uma diminuição no interesse do poeta em investigar como se constitui a identidade individual. Observe.

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais


Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,


Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

PESSOA, Fernando. Cancioneiro. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 156.

Outra questão que ocupou Pessoa foi a da “sinceridade do fingimento”, condição da criação literária, e que deu origem a alguns poemas muito conhecidos, como o que segue.

Isto

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,


O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio


Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

PESSOA, Fernando. Cancioneiro. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1999. p. 165.

Enleio: aquilo que prende, liga, envolve.

Mensagem: releitura mítica do destino português

Dentre as obras da poesia ortônima de Fernando Pessoa, destacam-se os belíssimos poemas de Mensagem, livro com o qual obteve o segundo lugar em um concurso do Secretariado de Propaganda Nacional português. Foi o único livro publicado em vida por Pessoa (1934).

Nesse livro, o poeta promove uma releitura do destino de Portugal, tendo como base o fenômeno das navegações, a ligação entre os portugueses e o mar e o mito do encoberto, associado ao desaparecimento misterioso de D. Sebastião. a

Os poemas de Mensagem revelam a crença em um futuro no qual Portugal voltará a ocupar uma posição de destaque entre as nações, cumprindo, assim, o destino que lhe foi atribuído pelos deuses.

O infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.


Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.


Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

PESSOA, Fernando. Mensagem. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 78.



Sagrou: concedeu um título ou uma honra.

Nas três partes em que organizou os poemas (“Brasão”, “Mar português” e “O encoberto”), Pessoa reinterpreta os principais símbolos históricos e míticos da cultura portuguesa, sempre enfatizando a vocação do povo para superar todos os obstáculos, movido por uma grandeza de alma que o torna único.

Elemento central na arquitetura poética de Mensagem é o mar oceano, símbolo da transcendência a ser alcançada pela provação individual e coletiva. Como afirma o eu lírico, nos versos finais de “Mar português”: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu”.

A poesia heterônima

O fenômeno da heteronímia resolveu de modo interessante uma questão que perseguiu Fernando Pessoa durante toda sua vida: o desdobramento do “eu”, a multiplicação de identidades.

“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram”, confessou o poeta ao amigo Adolfo Casais Monteiro em carta que explica a gênese dos heterônimos.

Tome nota

Heterônimos são autores imaginados por Fernando Pessoa. Quando assumia a forma de um de seus heterônimos, Pessoa produzia textos com características completamente diferentes dos de sua autoria. Entre os heterônimos, destacam-se Bernardo Soares, autor do Livro do desassossego, e os poetas Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
Página 35

Em termos práticos, o que se observa é que Pessoa criou várias “personas” poéticas (seus heterônimos) e, por meio delas, deu forma a diferentes modos de olhar o mundo. Como veremos a seguir, cada um desses heterônimos contava com personalidade e estilo próprios.

O “mestre” Alberto Caeiro

Autor de uma poesia cuja simplicidade aparente esconde uma complexidade filosófica bastante grande, Alberto Caeiro define-se como o “homem do campo”, “o guardador de rebanhos”.



Alberto Caeiro, segundo Fernando Pessoa

Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Tinha a cara rapada, era louro sem cor, olhos azuis. [...] Como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.

PESSOA, Fernando. Cartas escolhidas. In: QUADROS, António (Org., int. e notas). Obra poética e em prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986. v. 2. p. 342-343. (Fragmento adaptado).

Toda a sua produção poética gira em torno da questão da percepção do mundo e da tendência do ser humano em interpretar o que vê como símbolos de outras coisas. Segundo Caeiro, essa é a razão de não conseguirmos compreender que as coisas são o que são e que este é o seu verdadeiro significado. Observe.

XXXV

O luar através dos altos ramos,


Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,


O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.

PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 222.

Esse tipo de lógica desconcertante está no centro do olhar de Alberto Caeiro para o mundo: a natureza não é constituída por símbolos.

O desafio de uma filosofia de vida como a defendida por Caeiro é evidente: precisamos “desaprender” um olhar definido pela cultura ocidental que insiste em tomar a natureza como símbolo de emoções e sentimentos humanos. Aceitar que o luar é somente o luar é um imenso desafio para “nós que trazemos a alma vestida”, como reconhece o poeta.

Esse modo de encarar a vida aproxima a poesia de Alberto Caeiro da filosofia zen-budista, negando a ideia de qualquer realidade além da que constitui nossa experiência concreta e imediata das coisas.

O lirismo clássico de Ricardo Reis

Ricardo Reis é o heterônimo clássico de Fernando Pessoa. Em todos os poemas que escreveu, revela a influência dos poetas clássicos gregos e latinos. Sua visão pagã foi inspirada pelo mestre Caeiro.

Ricardo Reis, segundo Fernando Pessoa

Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho os algures), no Porto, é médico. [...] Educado num colégio de jesuítas, vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.

PESSOA, Fernando. Cartas escolhidas. In: QUADROS, António (Org., int. e notas). Obra poética e em prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986. v. 2. p. 342-343. (Fragmento adaptado).

Com uma sintaxe de grandes inversões, usando regências desusadas e vocabulário raro, Ricardo Reis dá a seus poemas uma característica bastante diferente da simplicidade observada nos textos de Caeiro. Observe.

As rosas amo dos jardins de Adônis,


Essas volucres amo, Lídia, rosas,

Que em o dia em que nascem,

Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam

Antes que Apolo deixe

O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 259.

Volucres (vólucres): que têm vida curta, efêmeras.
Inscientes: ignorantes, que desconhecem.
Página 36

Esse poema ilustra a influência dos temas greco-latinos na poesia de Ricardo Reis. Todo o raciocínio desenvolvido pelo eu lírico pode se resumir de modo simples: é necessário viver o momento, aproveitá-lo, sem pensar no que veio antes ou no que virá depois.

O exemplo das rosas, que florescem e morrem no período de um dia, é apresentado para encaminhar o apelo dirigido à amada: “Assim façamos nossa vida um dia”. Um dia, nesse caso, não é uma referência a um momento futuro, mas sim uma medida de tempo. O eu lírico deseja viver sua vida de modo pleno, como se a duração de que dispusesse fosse a mesma das rosas.

As angústias do engenheiro Álvaro de Campos

Heterônimo futurista de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos também é conhecido pela expressão de uma angústia intensa, que sucede seu entusiasmo com as conquistas da modernidade.

Álvaro de Campos, segundo Fernando Pessoa

Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 [...]. É engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. É alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se, cara rapada, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o “Opiário”. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

PESSOA, Fernando. Cartas escolhidas. In: QUADROS, António (Org., int. e notas). Obra poética e em prosa. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986. v. 2. p. 342-343. (Fragmento adaptado).

Na fase da “amargura angustiada”, o poeta escreve longos poemas em que um grande desencanto existencial se revela. O mais conhecido deles é “Tabacaria”. Nos trechos que seguem podemos identificar a manifestação de um grande descontentamento consigo mesmo, aliado a uma visão bastante crítica da realidade que o cerca.

Tabacaria

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

[...]
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada


De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

[...]
O mundo é para quem nasce para o conquistar


E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.


Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
[...]

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 362-363. (Fragmento).



Mansarda: sótão, último andar de uma casa, cujas janelas dão acesso ao telhado, água-furtada.

Passados mais de oitenta anos da morte de Fernando Pessoa, ele continua a ser considerado um fenômeno sem igual entre os poetas de língua portuguesa. Não se tem conhecimento, em nenhuma outra cultura, de um autor que tenha se multiplicado em tantos outros e, com cada uma dessas identidades literárias, produzido uma obra tão vasta e de tão grande qualidade.

Os estudiosos do espólio de Pessoa contaram pelo menos 72 heterônimos e semi-heterônimos criados pelo poeta para dar vazão a sentimentos e ideias que, em muitos casos, não chegava sequer a reconhecer como seus. “Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler”, escreveu o autor em um de seus muitos textos a respeito do fenômeno da heteronímia.

O contato com a poesia de Fernando Pessoa (ortônima ou heterônima) revela, portanto, a essência do fazer literário: a capacidade de olhar para o mundo com olhos que, ao mesmo tempo, indagam, interpretam e traduzem uma realidade e os muitos sentimentos por ela evocados.


Página 37

TEXTO PARA ANÁLISE

Leia com atenção o poema abaixo para responder às questões de 1 a 6.

Texto 1

No poema, o eu lírico surpreende-se com um acontecimento que, além de afetar a rotina da cidade, desencadeia uma reflexão sobre sua própria identidade.

Cruz na porta da tabacaria!


Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.


Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.


Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,


E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via.


Ele era fixo, eu, o que vou.
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 383-384.



1. O poema de Álvaro de Campos é estruturado de modo a criar um efeito de monotonia. Que elementos formais produzem esse efeito?

2. O primeiro verso da primeira estrofe revela a reação do eu lírico ao perceber que algo inesperado aconteceu. Que acontecimento é esse?

a) Qual é a reação do eu lírico a tal acontecimento? De que modo ela é sugerida por esse primeiro verso?

b) Ao se dar conta do ocorrido, o estado de espírito do eu lírico se modifica imediatamente. Explique.

3. Por que o acontecimento em questão desencadeia uma reação tão forte no eu lírico? Justifique.

4. Na última estrofe, o eu lírico explicita a razão de ter reagido de modo tão forte à quebra da sua monotonia. Transcreva no caderno os versos em que isso ocorre.

> Qual é a importância do refrão, no conjunto do poema, quando consideramos a reflexão final feita pelo eu lírico?

5. Podemos afirmar que a reflexão desencadeada pela quebra da monotonia relaciona-se ao tema da identidade. Por quê?

6. Álvaro de Campos é o engenheiro, o homem que vive intensamente as transformações trazidas pelo progresso. Por esse motivo, ele é, entre os heterônimos pessoanos, o mais afetado pela crise de identidade que marca a vida nos centros urbanos no início do século XX. De que modo o tema desenvolvido no poema ilustra essa característica?

Leia com atenção o poema abaixo para responder às questões de 7 a 9.

Texto 2

No poema, as estações do ano são apresentadas como importantes símbolos para diferentes momentos da vida humana.

Quando, Lídia, vier o nosso outono


Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura

Primavera, que é de outrem,

Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo atual que as folhas vivem

E as torna diferentes.

PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org.). Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 283.

Outrem: outra pessoa, alguém indefinido que não participa da interlocução estabelecida no momento.
Estio: verão.

7. Ricardo Reis utiliza as estações do ano, em seu poema, como metáforas para diferentes momentos da vida humana. Que momento cada uma das estações simboliza?

> Considerando o sentido metafórico das estações, em que momento o eu lírico se encontra? Explique.

8. As estações do ano são utilizadas como símbolos para que o eu lírico explicite uma determinada filosofia de vida. Qual é ela? Justifique.
Página 38

9. Nos versos a seguir, escritos pelo poeta latino Horácio, o carpe diem foi tematizado pela primeira vez. Leia.

Texto 3

Não indagues, Leucónoe, ímpio é saber;


a duração da vida
que os deuses decidiram conceder-nos,

[...]


Enquanto conversamos,
foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no amanhã.

HORÁCIO. Poesia grega e latina. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1964. p. 185. (Fragmento).



> A filosofia de vida expressa por Ricardo Reis é a mesma apresentada no poema de Horácio? Explique.

Os anos sombrios da ditadura em Portugal

Com a chegada de Salazar ao poder e o início da ditadura do Estado Novo, a repressão passa a ser praticada em larga escala, com a instituição da censura e a criação da polícia política (a Pide).

Em termos administrativos, cria-se uma fachada de tranquilidade, equilíbrio e ordem, apoiada pela realização de inúmeras obras públicas, como a construção de edifícios, de hidrelétricas que, de certo modo, preparavam o país para a industrialização que chegaria na década de 1950. Na verdade, o medo e a insegurança, aliados à passividade e à fragilidade das instituições, formam o verdadeiro retrato de Portugal sob a ditadura salazarista.

É no contexto do início do Estado Novo que surge a revista Presença com a proposta de uma literatura mais introspectiva e intimista.



Se julgar necessário, explique aos alunos que “interregno” significa interrupção, intervalo.

O “interregno”

Entre o fim de Orpheu e o surgimento da revista Presença (em 1927), que marcará o início do segundo momento modernista, aparecem no cenário literário português alguns escritores que demonstram, em suas obras, uma forte vinculação à tradição do Simbolismo/Decadentismo. Nesse período, muitas vezes identificado como “interregno”, destacam-se dois nomes: o de Florbela Espanca e o de Aquilino Ribeiro.

Vivendo em plena agitação modernista, esses escritores não chegam a ser influenciados pelo espírito da ruptura com o passado que caracterizou, como vimos, a primeira geração modernista portuguesa.

Florbela Espanca, “a charneca rude a abrir em flor”

Florbela Espanca (1894-1930), que também escreveu contos muito bem elaborados, consagra-se como uma poetisa de sensibilidade aguda. Definia-se como “filha da charneca erma e selvagem”, aludindo à vegetação de sua terra amada. Precursora do feminismo em Portugal, teve como ídolo o poeta António Nobre, mestre simbolista e autor do “livro mais triste de Portugal”.

Nos vários sonetos que escreveu, nota-se uma opção por certos temas típicos da estética do fim do século, como os cenários outonais, o gosto pelas horas da tarde, a abordagem de estados de alma indefinidos, acompanhados por um tom decadentista. Dor, angústia existencial e profundo sofrimento dão o tom da maioria dos poemas escritos pela autora.

Em alguns poemas, porém, emerge um erotismo poderoso, que sinaliza um olhar feminino marcado pela independência em relação ao convencionalismo da sociedade da época. Observe.



Se tu viesses ver-me...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,


A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesse toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha


A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,


Traças as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...


Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

ESPANCA, Florbela. Charneca em flor. In: Farra, Maria Lúcia Dal (Org., int. e notas). Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 218.


Página 39

Florbela mostrou ser possível atingir a excelência literária dominando uma forma poética específica, o soneto. Revelou-se, assim, uma herdeira digna da tradição portuguesa de mestres como Camões, Bocage e Antero de Quental. Entre suas obras, destacam-se:Trocando olhares (1915-1917), Livro de mágoas (1919), Livro de “Sóror Saudade” (1923) e Charneca em flor (1931, publicação póstuma).



Trilha sonora

Florbela e Fagner: poesia e música

Fanatismo

Minh’alma de sonhar-te, anda perdida


Meus olhos andam cegos de te ver
Não és sequer a razão do meu viver
Posto que és já toda a minha vida

Não vejo nada assim, enlouquecida


Passo no mundo meu amor a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história, tantas vezes lida

[...]


Raimundo Fagner. Ao vivo. Rio de Janeiro: Sony Music, 2000. (Fragmento).

Um dos mais conhecidos poemas de Florbela Espanca, Fanatismo, foi musicado por Fagner no disco Traduzir-se (1981). A beleza do soneto combinou bem com a música e o sucesso foi tão grande que o compositor cearense criou outra “parceria” com Florbela no soneto “Fumo”: “Longe de ti são ermos os caminhos / Longe de ti não há luar nem rosas / Longe de ti há noites silenciosas / Há dias sem calor, beirais sem ninho”.



0039_001.jpg

Capa do CD Ao vivo, de Raimundo Fagner. Rio de Janeiro: Sony Music, 2000.

REPRODUÇÃO

Aquilino Ribeiro: a importância das tradições

Aquilino Ribeiro (1885-1963) dá continuidade à imagem do tradicional escritor português ligado à terra. Sua obra é marcada por um certo tom provinciano, nacionalista, revelado pela reverência a alguns escritores consagrados, que, antes dele, trataram da questão das tradições portuguesas, como Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós.

Consagra-se no cenário literário pelo cuidado com a expressão linguística. Sua obra de ficção desdobra-se em vários temas: o culto da religiosidade, a valorização dos costumes rústicos e a introspecção psicológica. Dentre suas obras, destacam-se: Via Sinuosa (1918),Terras do Demo (1919), Filhas de Babilônia (1920), Maria Benigna (1933) e A casa grande de Romarigães (1957).

Presencismo: os escritores ensimesmados

O lançamento de uma revista literária também marcará o início da segunda geração modernista portuguesa. Em 1927, surgiu o primeiro número da revista Presença — Folha de arte e crítica, que alcançaria um total de 54 números publicados, consagrando-se como a revista literária de maior duração do país.



Tome nota

Considera-se que a segunda geração modernista portuguesa, identificada ao movimento denominado presencismo, estendeu-se de 1927 a 1940, existindo enquanto foi publicada a revista Presença.

Como traço característico da literatura produzida pelos jovens presencistas, observamos a opção por uma certa alienação social. Atuando em um momento de sérias crises políticas, esses escritores preferiram interrogar o sentido da existência humana, criando uma literatura introspectiva.

Não se pode, contudo, afirmar que eles formaram um conjunto coeso, porque havia polêmicas geradas principalmente pelas diferenças ideológicas (conservadoras ou progressistas) em relação à literatura.

O maior mérito dos presencistas foi, na verdade, o de divulgar as conquistas da primeira geração modernista, consolidando a nova visão estética em Portugal. Além disso, suas preocupações existenciais aproximaram a literatura das teorias de Freud sobre o inconsciente humano. Na mesma linha, sofreram a influência das narrativas psicologizantes de Proust e Dostoiévski.

Destacam-se, como autores do período, José Régio (o principal “teórico” do grupo), Miguel Torga, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e Branquinho da Fonseca.



O Neorrealismo português

Para fazer frente à literatura intimista e introspectiva dos autores de Presença, surgiu em Portugal, no final da década de 1930, o chamado movimento Neorrealista. Os autores que divulgaram a nova tendência estética declararam o desejo de enfrentar a ditadura salazarista como proposta definidora de suas obras.

A literatura precisava, segundo esses autores, assumir um caráter mais engajado, vinculando-se à realidade portuguesa do momento. O objetivo da tematização da realidade seria, através dos textos literários, conscientizar a população sobre os males advindos dos anos de censura imposta pela
Página 40

ditadura. A “arte pela arte” presencista devia abrir espaço para a consciência dos problemas enfrentados por Portugal e para o risco representado pela aproximação ideológica entre o Estado Novo e o nazifascismo.



Tome nota

Considera-se que o Neorrealismo português teve início em 1939, com a publicação do romance Gaibéus, de Alves Redol.

Os neorrealistas foram fortemente influenciados pelo romance regionalista brasileiro, principalmente pela obra de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado. Entre seus conterrâneos, adotaram Eça de Queirós como modelo inspirador.

Em linhas gerais, os textos da terceira geração modernista definiam-se por apresentar duas características fundamentais:

• Concepção da literatura como produto de um contexto histórico-social específico, de uma realidade concreta.

• Denúncia da alienação e dos fatores que tornavam possível tal realidade, como a exploração dos trabalhadores, a falta de educação, as precárias condições de saúde e o governo ditatorial.

O fim do Neorrealismo não está associado a uma data precisa. Costuma-se adotar duas referências: a morte de Salazar, em 1968, e a Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974) como marcos possíveis do seu término. É preciso ressaltar, porém, que muitos dos autores portugueses contemporâneos ainda apresentam traços dessa estética em suas obras.

0040_001.jpg

Gaibéu, em Portugal, é o termo utilizado para designar o trabalhador rural que limpa a campina de galhos e ervas daninhas, preparando o campo para a plantação. Capa da 1ª edição de 1939.

REPRODUÇÃO



Alves Redol e os trabalhadores da terra

Antônio Alves Redol (1911-1969) desponta para a literatura portuguesa no ano de 1939, com a publicação do romance Gaibéus. O título da obra refere-se aos modestos camponeses do Ribatejo, cuja vida sofrida e injustiçada é apresentada pelo autor em uma série de episódios que se justapõem, como se formassem “manchas”, símbolo da existência dessas criaturas sem nome nem esperança. Observe.

Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrava-se na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.

O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão.

Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.

A ceifa, porém, não parava, e ainda bem — a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também. E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.

Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável. [...]

REDOL, Antônio Alves. Gaibéus. In: MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 24. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 461. (Fragmento).



Boléu: pancada.
Rabezanos: camponeses.
Jornas: trabalhos contratados por dia.
Fateiras: vendedoras.
Conduto: alimento que se come com pão.

Além de Alves Redol, destacaram-se entre os neorrealistas Fernando Namora, José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira e Carlos de Oliveira.


Página 41

TEXTO PARA ANÁLISE

O poema a seguir refere-se às questões de 1 a 3.

Texto 1

Epitáfio para um poeta

No poema, o eu lírico reflete sobre a morte de um poeta.

As asas não lhe cabem no caixão!


A farpela de luto não condiz
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
A gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Não veem que ele, nu, faz mais figura,
Como uma pedra, ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
Ser-lhe-á conforto:
Deixem-no respirar ao menos morto!

RÉGIO, José. In: BERNARDELLI, Cleonice (Org.). José Régio: antologia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 217.



Farpela: roupa, vestimenta.

1. O poema retrata o momento em que o corpo de um poeta, morto, é preparado para o sepultamento. A quem o eu lírico se dirige?

> Na visão do eu lírico, há algo inadequado no modo como o morto está sendo preparado. Por quê?

2. Podemos afirmar que as roupas do morto são vistas pelo eu lírico como simbólicas de algo negativo. Explique, com base no texto, o que essas roupas simbolizam.

3. No início do poema, uma imagem sugere que o poeta, apesar de morto, é um símbolo da liberdade. Que imagem é essa?

> A partir da caracterização que o eu lírico faz do poeta, é possível depreender uma certa visão de poesia presente no poema. Qual seria essa visão? Explique.

O poema a seguir refere-se às questões de 4 a 8.

Texto 2

Versos de orgulho

No poema, Florbela Espanca revela algumas das características que a definiram como uma mulher de perspectivas muito avançadas para o seu tempo.

O mundo quer-me mal porque ninguém


Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além...


Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo! O que é o mundo, ó meu Amor?


— O jardim dos meus versos todo em flor...
A seara dos teus beijos, pão bendito...

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...


— São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.

ESPANCA, Florbela. Livro de mágoas. In: FARRA, Maria Lúcia Dal (Org.). Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 210.



Oiros: ouros.
Seara: terra cultivada.

4. Embora tenha escrito durante o Modernismo português, Florbela Espanca revela influências, no conteúdo e na forma, que a associam às estéticas do fim do século XIX. Em termos formais, como se estrutura o poema? Esse aspecto formal sugere um afastamento da poesia de Florbela da estética modernista? Por quê?

5. O eu lírico é feminino. Como isso é marcado no texto?

> Qual é o sentimento expresso pelo eu lírico nas duas primeiras estrofes?

6. Como o eu lírico define seu mundo?

7. Leia um trecho de um texto escrito por Florbela para uma revista portuguesa intitulada A mulher (1913).

Texto 3

Mulheres da minha terra! Gatas Borralheiras com o cérebro vazio, que esperam, sentadas à lareira e com estremecimentos mórbidos, a hipotética aparição do príncipe encantado; [...] bonecas de luxo, vestidas como as senhoras de Paris e com a inteligência toda absorvida na decifração das modas, incapazes de outro interesse ou de outra compreensão! [...] Pobres mulheres da minha terra!

ESPANCA, Florbela. Florbela: um caso feminino e poético. In: FARRA, Maria Lúcia Dal (Org., int. e notas). Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XXXVIII.

a) O que esse trecho permite concluir a respeito da opinião de Florbela em relação ao comportamento das mulheres no início do século XX?

b) O aspecto inovador de “Versos de orgulho” é marcado pelo fato de a postura do eu lírico ser totalmente oposta ao comportamento criticado por Florbela. Explique.

8. Os versos finais podem ser lidos como expressão de um desejo de fusão entre os amantes, como símbolo da realização plena. Explique.

> Explique se há uma contradição entre essa imagem e a postura libertária assumida pelo eu lírico.
Página 42

Diálogos literários: presente e passado

Na poesia contemporânea, elementos aparentemente insignificantes e comuns ganham uma inesperada dimensão lírica. Essa tendência de valorizar os fatos cotidianos, porém, não é uma descoberta dos dias atuais. Ela já tem algumas décadas de existência e foi revelada no verso de importantes poetas modernistas, como Manuel Bandeira.

A partir da década de 1920, diferentes autores apresentam aos leitores brasileiros, acostumados ao formalismo parnasiano, como elementos prosaicos podem ganhar contornos cômicos ou simbolizar o mais profundo lirismo. E o que produz efeitos expressivos únicos é o olhar que dirigem para acontecimentos ou cenas aparentemente comuns: qualquer elemento pode ser poético, desde que seja assim visto. No próximo capítulo, você verá como a poesia dos nossos primeiros modernistas desafiou os limites do lirismo tradicional e abriu novas e importantes possibilidades para a criação literária.

Na década de 1970, essa tradição amplia-se com os poetas da chamada Geração Mimeógrafo, cuja produção também é chamada de poesia marginal e para quem poesia e vida deveriam ser algo único.

Mas, antes de conhecer os textos carregados de ousadia e inovação dos autores da primeira geração modernista, veja como alguns poetas contemporâneos transformam o prosaico em lirismo.

Adélia Prado e a beleza da simplicidade

Casamento

Há mulheres que dizem:


Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”

“prateou no ar dando rabanadas”


e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 252.



O estranhamento do cotidiano em Heitor Ferraz

Estrangeiro

O café tomado na esquina


— meio de lado
no balcão
a ponto de observar
a manhã que reproduz
e se mistura
em pernas rápidas
(decomposição do movimento)

O café pago no caixa


— troco, obrigado, cigarro na boca
de mais uma manhã

mais uma manhã


trocando olhares
medindo gestos
(somos todos estrangeiros
nesta cidade
neste corpo que acorda)

e não me misturo


— com essa gente,
não me misturo.

FERRAZ, Heitor. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998. p. 164.


Página 43

Eduardo White e o cotidiano do poeta

O que vocês não sabem e nem imaginam

(Ao Abdul Magide, ao Pilinhas, ao Ungulani, ao Rui, ao Zé Camadjoma e outros)

Vocês não sabem


mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas
e o cansaço que usarei
mais para o fim da tarde.

À hora do costume,


estou no meu respeitoso emprego:
o de Secretário de Informação e de Relações Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
felizes em seus ostentosos cargos,
em suas mesas repletas de ofícios,
os ares importantes dos chefes
meticulosamente empacotados em seus fatos,
a lenta e indiferente preguiça do tempo.

Todas as manhãs tudo se repete.


O poeta Eduardo White se despede de mim
à porta de casa,
agradece-me o esforço que é mantê-lo
alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
me lembra o pão que devo trazer,
os rebuçados para prendar o Sandro,
o sorriso luzidio e feliz para a Olga,
e alguma disposição da que me reste
para os amigos que, mais logo,
possam eventualmente aparecer.

Depois, ao fim da tarde,


já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
[...]

WHITE, Eduardo. In: APA, Lívia; BARBEITOS, Arlindo; DÁSKALOS, Maria Alexandre (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 240-241. (Fragmento).



Eduardo White (1963-2014): nasceu em Quelimane, Moçambique — África Oriental.
Ostentosos:
que impressionam pela importância.
Fatos: ternos.
Rebuçados: doces feitos de calda de açúcar endurecida.
Prendar: presentear.

Nesta atividade, os alunos são levados a analisar uma foto de Thomaz Farkas, que retrata duas mulheres, de braços dados, descendo a escadaria da Galeria Prestes Maia (espaço artístico e cultural da cidade de São Paulo, que tem uma ligação subterrânea entre a Praça do Patriarca e o Vale do Anhangabaú). O que seria uma cena prosaica (duas mulheres descendo uma escadaria em direção a uma passagem subterrânea) ganha contornos artísticos porque obriga o observador a enfrentar uma mudança de perspectiva: o ângulo escolhido para capturar a imagem opõe o cenário claro em que estão as mulheres à escuridão da entrada do túnel, dando a impressão de que elas parecem caminhar em direção a um buraco negro. É justamente essa mudança de perspectiva que revela como uma cena banal (pessoas caminhando pela cidade em um dia comum) pode ser transformada em elemento artístico. No comentário que farão, os alunos devem destacar esses elementos e compará-los aos textos transcritos na seção, pois eles também adotam o cotidiano como ponto de partida para a experiência poética.

Pare e pense

Observe a foto a seguir.



0043_001.jpg

Escadaria da Galeria Prestes Maia. São Paulo, 1946.

THOMAZ FARKAS

Reúna-se com seus colegas, analise a imagem do ponto de vista da forma e do conteúdo e discuta os seguintes aspectos: de que maneira a foto revela a transformação do cotidiano em elemento artístico? Como a imagem pode ser relacionada aos textos apresentados na seção? Em seguida, escreva um comentário sobre a foto, relacionando-a à tradição vista nesta seção. Utilize os poemas aqui transcritos como base para o seu comentário.


Página 44

Capítulo 3 - Modernismo no Brasil. Primeira geração: ousadia e inovação

0044_001.jpg

AMARAL, T. do. A Cuca. 1924. Óleo sobre tela, 73 × 100 cm.

ROMULO FIALDINI - TARSILA DO AMARAL EMPREENDIMENTOS - MUSEU DE GRENOBLE, GRENOBLE

Sugerimos que todas as questões sejam respondidas oralmente para que os alunos possam trocar impressões e ideias.

Leitura da imagem

1. Que elementos da natureza estão presentes na tela de Tarsila do Amaral (1886-1973)?

> O modo como esses elementos foram representados pela artista provoca algum estranhamento no observador? Por quê?

2. Em A Cuca, o uso das cores fortes (“cores caipiras”, segundo a artista) e o modo como os elementos da natureza foram recriados sugerem uma releitura menos formal, mais alegre e irreverente. Como isso fica evidente no quadro?

3. Em fevereiro de 1924, Tarsila escreveu para sua filha Dulce e contou:

Estou fazendo uns bichos bem brasileiros que têm sido muito apreciados. Agora fiz um que se intitula A Cuca. É um bicho esquisito, no mato com um sapo, um tatu e outro bicho inventado.

Disponível em:


Yüklə 4,64 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   72




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin