Português: contexto, interlocução e sentido



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Leitura

As narrativas ficcionais sempre seduziram leitores de todas as épocas e lugares. No mundo contemporâneo, muitos leitores apreciam as narrativas curtas, que focalizam um único conflito e apresentam a sua solução em um breve espaço de tempo. Essas narrativas são conhecidas como contos.

Espaço vital

Nas circunstâncias o conflito (e que outro tema usar?) é inevitável. Primeiro, porque estão sentados lado a lado; segundo, porque se trata de poltronas de avião, cujos braços, na classe turista, são necessariamente estreitos; e terceiro, mas não menos importante, porque ela é gorda. Deus, muito gorda. Transbordaria de qualquer assento, especialmente daquele. Além disso, quer ler; não um pequeno livro de bolso, ou uma revista, ou mesmo um tabloide; não, é um jornal grande que ela escolhe, um matutino. Edição dominical, prometendo longa, longa leitura. Todo o tempo do voo, pelo menos.

— Seu cinto de segurança — diz a aeromoça. Uma jovem, evidentemente bonita; e evidentemente delgada, ainda que sensual, do tipo falsa magra. Ele sorri, tímido, mas não é correspondido; nem o espera; a moça está ali apenas para se certificar do cumprimento das disposições de segurança. Ele tenta, pois, colocar o cinto, mas não consegue: a gorda está sentada em cima. Não é de estranhar: desgraças encadeavam-se em sua vida, de acordo com um superior, perfeito e maligno desígnio.

Suspira. E talvez por causa de seu suspiro, ou por causa da fivela, cuja dureza metálica há de ser percebida mesmo através da espessa camada de gordura de uma nádega descomunal, ela se ergue, ou tenta se erguer — um movimento que ele aproveita para, rapidamente, liberar o cinto. Afivela-o; o clique proporciona-lhe minúsculo conforto: algo funciona, afinal.

O avião decola, jogando bastante — chove torrencialmente —, mas nem por isso ela abandona o jornal. Com os braços abertos, e absorta na leitura, comprime-o contra a janela. Ele decide que está na hora de executar a operação resistência. A primeira coisa a fazer é adverti-la sobre a invasão do espaço alheio. Para isso, encostou o cotovelo (espera, mas não tem certeza disto, que ela o perceba como um duro cotovelo) no braço dela, exercendo discreta pressão.

Nada. Nem notou. Lê.

Ele engole em seco, e passa à etapa seguinte, mais drástica: envolve tentativa de expulsão. O que ele está fazendo agora é empurrar o volumoso braço. Mas, de novo, sem resultado, mais fácil seria remover montanhas (o recurso da fé, que remove montanhas, ali se revelaria inútil). Três (número mágico: três) tentativas são feitas, sem que o monstruoso braço se mova um milímetro sequer.

Na terceira etapa a força bruta dará lugar à sofisticação, à ação planejada. Ele precisa encontrar um espaço entre o braço dela e o encosto da poltrona. Tal espaço será ampliado pela introdução do seu cotovelo, que funcionará como vanguarda, como batalhão precursor. Ao cotovelo, seguir-se-á o seu próprio braço, que, operando como a alavanca de Arquimedes, deslocará a mole de carne e gordura e recuperará o território ocupado.

— Lanche?

A aeromoça, com bandejas. Isso, agora, é um fato novo, que coloca ao mesmo tempo perigos e possibilidades. Ele não pode aceitar o lanche; bem que gostaria de repor a energia (física e emocional) despendida no esforço de garantir o seu espaço, mas não pode retirar o cotovelo da fenda em que a custo se introduziu; de modo que, com um sorriso triste, faz um imperceptível sinal com a cabeça, recusando o alimento. Agora, se ela aceitar... Se ela aceitar, terá de deixar o jornal; terá de estender os braços; por um momento, deixará livre os braços da poltrona; e isso será uma oportunidade de ouro.


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Numa fração de segundo, ela recebe a bandeja, e, com um suspiro de satisfação, acomoda-se na poltrona, deslocando, com seu cotovelo, o cotovelo dele.

Tudo perdido.

Seria preciso recomeçar — mas terá ele forças? Terá tempo? O voo se aproxima do fim, sua vida se aproxima do fim — tem quase cinquenta, sua família não é de longevos, bem pelo contrário, avô e pai morreram, do coração, aos quarenta e poucos. Não é de admirar que uma solução extrema lhe ocorra. Não há outro jeito.

Movendo-se com incrível dificuldade, tira o leve blusão que está usando sobre a camisa de manga curta, expondo o braço, a pele nua do braço. O que vai tentar equivale ao salto-mortal que o trapezista executa no fim do espetáculo, sem rede de proteção. Ao rufar dos tambores corresponde a batida acelerada de seu coração. Respira fundo e — pronto, encostou seu braço no dela.

O que pretende? Não é pouco o que pretende. Quer, nada mais nada menos, que peles se toquem, que poros, coincidindo, transformem-se em canais permitindo o fluxo, o intercâmbio de certa misteriosa energia capaz de siderar barreiras; com o que a vontade dele comandará a dela: tira o braço, ele ordenará mentalmente, e ela, sem sequer saber por quê, obedecerá.

Mas de novo falha. E de novo por causa da aeromoça, a linda, a simpática, a sensual aeromoça, essa moça que na cama enlouqueceria qualquer um, mas que ali, a trinta mil pés de altura, simplesmente cumpre uma função: veio recolher as bandejas. A mulher entrega a sua, e ao fazê-lo retira o braço, interrompendo toda a comunicação sensorial, mental. E logo em seguida volta a ocupar o espaço. Naturalmente.

“Senhoras e senhores, estamos iniciando nosso procedimento de descida...” Oh, Deus, que fazer? Em desespero, ele volta a investir com o cotovelo. Para sua surpresa, não há resistência alguma; ao contrário, o braço dela se retrai, cede docilmente lugar. E ele toma conta do braço da poltrona, de todo o braço, vai mais adiante, já está encostando o cotovelo no peito dela, no seio, e ela nada, nem dá bola, lê o jornal.

Por fim, volta-se para ele:

— Estava lendo sobre um casal que viveu junto setenta e cinco anos — diz, em tom casual. Deixa o jornal de lado, afivela o cinto e olha-o, terna:

— Você me ama tanto como no dia em que casamos?

— Mais — ele responde com um sorriso. O avião pousa, com um solavanco. — Mais.

SCLIAR, Moacyr. Histórias para (quase) todos os gostos. Porto Alegre: L&PM, 1998. p. 105-109.

Análise

1. O conto “Espaço vital” começa com o narrador, em 3ª pessoa, afirmando que um determinado conflito seria “inevitável”. Que conflito é esse?

> Por que ele é considerado “inevitável”?

2. O local em que o passageiro se encontra provoca nele qual sensação?

> Que outros elementos de caracterização do espaço contribuem para intensificar essa sensação?

3. Quais são os procedimentos adotados pelo passageiro para “vencer” o conflito que se estabelece entre ele e a passageira?

> Esses procedimentos surtem algum efeito? Justifique sua resposta.

4. Qual foi o objetivo do autor do conto ao criar um final tão inesperado? Que reação espera provocar no leitor?

a) A caracterização inicial da personagem feminina como uma mulher “muito gorda” pode parecer gratuita e geradora de preconceito. Que novos sentidos essa caracterização e o “conflito inevitável” mencionado na primeira frase ganham ao se saber da relação conjugal dos passageiros? Por quê?

b) Também o título do conto, “Espaço vital”, deve ser reinterpretado em função da relação entre as personagens. Por quê?

5. Considere as caracterizações do homem e da mulher feitas no conto.

a) Você acredita que, se esse conto tivesse sido escrito por uma mulher, essas caracterizações permaneceriam iguais? Por quê?
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b) Atualmente, a possibilidade de questionar estereótipos de gênero em redes sociais permite que essas discussões tenham uma divulgação muito rápida e um alcance muito grande. Você diria que, se Moacyr Scliar fosse criar esse conto hoje, ele apresentaria as personagens do mesmo modo? Justifique.

6. Numa narrativa, o espaço pode ser apenas a representação física de um cenário; ou pode integrar-se aos demais elementos, de maneira a assumir um papel fundamental no desenrolar dos fatos. Considerando essas duas possibilidades, de que forma você classificaria o trabalho com o cenário nesse conto? Justifique sua resposta.

Releia e responda às questões 7 e 8.

“[...] Numa fração de segundo, ela recebe a bandeja, e, com um suspiro de satisfação, acomoda-se na poltrona, deslocando, com seu cotovelo, o cotovelo dele.

Tudo perdido.

Seria preciso recomeçar — mas terá ele forças? Terá tempo? O voo se aproxima do fim, sua vida se aproxima do fim — tem quase cinquenta, sua família não é de longevos, bem pelo contrário, avô e pai morreram, do coração, aos quarenta e poucos. Não é de admirar que uma solução extrema lhe ocorra. Não há outro jeito. [...]”



7. Nesse trecho, o narrador faz referência a diferentes “tempos”. Quais são eles?

8. Por que o segundo “tempo” referido pelo narrador parece deslocado no contexto do conto?

> Depois que o leitor descobre qual é a relação entre as personagens, essa segunda referência temporal ganha novo sentido, auxiliando a construção do sentido metafórico do conto. Explique por quê.

De olho no filme

Lisa Riser precisa superar o medo de aviões. Ao voltar para casa após a morte da avó, uma tempestade provoca um grande atraso no aeroporto e, enquanto espera, Lisa conhece outro passageiro, Jackson Rippner. Surpresa maior acontece quando Jackson exige sua ajuda para, em pleno voo, garantir que um deputado hospedado no hotel em que ela trabalha mude de quarto e, assim, possa ser assassinado.



Pânico no ar

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REPRODUÇÃO



Voo noturno, de Wes Craven. EUA, 2005.

Conto: definição e usos

Uma das características da produção literária contemporânea é a valorização de uma das formas narrativas básicas: o conto.

Por se tratar de uma narrativa curta, o conto não admite muitas complicações em relação ao desenvolvimento do enredo. Pelo mesmo motivo, não é possível trabalhar com um grande número de personagens.

Tome nota

O conto é uma narrativa curta que apresenta os mesmos elementos do romance: narrador, personagens, enredo, espaço e tempo. Diferencia-se do romance pela sua concisão, linearidade e unidade: o conto deve construir uma história focada em um conflito básico e apresentar o desenvolvimento e a resolução desse conflito.

No contexto das diferentes estruturas narrativas, como o romance e a novela, o conto se destaca como aquela que apresenta a estrutura mais simples, justamente porque os princípios que organizam a sua composição são a concisão (poucos elementos estruturais) e a unidade (uma única questão central).

O texto de abertura deste capítulo exemplifica bem a concisão e a unidade características do conto.



Contexto de circulação

Contos costumam ser escritos para publicação em livros. Além disso, circulam em revistas especializadas e também em sites.

Há diferentes tipos de livro em que os contos aparecem: aqueles idealizados pelo autor, que reúne vários textos organizados a partir de um critério pessoal; edições planejadas para divulgar os melhores textos de um mesmo autor; ou, ainda, antologias com contos de diferentes autores, organizados tematicamente (contos de humor, contos de mistério, etc.) ou por sua qualidade.
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Os leitores de contos

Leitores de contos são, em primeiro lugar, leitores de narrativas. Pessoas que encontram, nas narrativas ficcionais, um espaço para reflexão sobre a realidade, que buscam os cenários criados pela imaginação alheia como modo de escapar da realidade estressante em que vivem ou que leem pelo prazer propiciado pelos textos ficcionais.

Além dessas características, comuns a todos os amantes dos textos literários em prosa, os leitores de conto apresentam uma outra, constitutiva do mundo contemporâneo: a falta de tempo, que faz com que busquem narrativas mais curtas.

O século XIX viu as narrativas longas reinarem absolutas na preferência dos leitores. Os romances, que se estendiam por muitos capítulos e eram publicados em periódicos, tinham um público fiel. No século XXI, em plena era da informação e em um mundo no qual a imagem representa o apelo mais sedutor, as narrativas longas foram, aos poucos, perdendo espaço e o conto conquistou a preferência dos leitores. Sua estrutura mais enxuta e sua capacidade de apresentar, desenvolver e solucionar um conflito em tempo relativamente curto parecem ser as principais razões do sucesso dos contos entre os leitores contemporâneos.

Vários temas, vários contos

O gênero conto, por suas próprias características, admite uma grande diversidade temática. Alguns autores acabam por se especializar na criação de contos voltados para temas determinados. É o caso, por exemplo, do argentino Julio Cortázar e do brasileiro Murilo Rubião, que escreveram contos fantásticos, ou seja, narrativas em que a realidade é bruscamente invadida por algum elemento extraordinário sem que haja qualquer preparação ou explicação para isso.

Além dos contos fantásticos, podemos identificar ainda os seguintes tipos, definidos pela temática abordada: contos policiais (ou de suspense), contos eróticos, contos românticos e contos de ficção científica.

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Romancista argentino Julio Cortázar em sua casa em Paris, França, 24 nov. 1974.

MONIER/RUE DES ARCHIVES/LATINSTOCK

Estrutura

O conto é uma narrativa curta, o que torna essencial o planejamento cuidadoso da articulação dos elementos narrativos. Como se trata de uma narrativa ficcional, deve apresentar uma história na qual atuam personagens em um espaço e tempo definidos. Um narrador em 1ª ou 3ª pessoa será encarregado de contar o que acontece com tais personagens, revelando, para o leitor, de que modo espaço e tempo afetam os fatos narrados.

Cabe ao autor decidir exatamente que função foco narrativo, personagens, espaço e tempo deverão desempenhar na história a ser criada, determinando o entrelaçamento dos elementos narrativos. O enredo, resultado da articulação precisa desses elementos, deve ser linear, porque o conto não prevê um longo desenvolvimento da história. Em outras palavras, ao começar, o conto já está prestes a terminar.

Em termos do plano geral, o conto deve apresentar uma determinada ordem (criada pelos elementos da narrativa), que será desequilibrada pelo surgimento de um conflito. A resolução desse conflito promoverá a restauração da ordem. O objetivo do contista, portanto, é apresentar ao leitor uma situação ficcional em que a estabilidade é desestruturada por um conflito cujo desenvolvimento e solução serão o foco da história contada.

De modo geral, a estrutura do conto pode ser vista como o espaço narrativo entre dois momentos de equilíbrio: um que precede o conflito tematizado e outro que segue esse conflito. Por esse motivo, essas narrativas curtas costumam começar pela apresentação de uma situação estável que será perturbada por alguma força. Essa força desencadeia um processo de desequilíbrio do universo narrativo apresentado.

Para atender às exigências estruturais do conto, é necessário dominar os elementos constitutivos da narrativa, porque o modo como serão apresentados e articulados garantirá a qualidade da história criada.

Apresentaremos, a seguir, algumas características importantes desses elementos.

Conto: um problema e uma solução

O escritor Antonio Skármeta, no texto “Assim se escreve um conto”, reforça a importância da solução do conflito como o ponto central da estrutura do conto: “Eu diria que o que opera no conto desde o começo é a noção de fim. Tudo chama, tudo convoca um final”. E esse final deve ter sido precisamente planejado pelo autor, desde a primeira palavra do texto, de modo a garantir que o leitor seja submetido a um processo de tensão crescente à medida que avança na leitura do conto. Justamente porque tem uma estrutura concentrada na apresentação e solução de um conflito, alguns teóricos definem o conto como “um problema e uma solução”.

Foco narrativo

O primeiro dos elementos narrativos a ser considerado no momento de definir a estrutura de um texto ficcional é o narrador, ou seja, quem irá contar a história. O narrador estabelece o ponto de vista a partir do qual a história será contada: trata-se do foco narrativo.



Tome nota

Foco narrativo é a perspectiva a partir da qual uma história será contada. O foco narrativo pode ser de 1ª pessoa ou de 3ª pessoa.

Veremos, a seguir, como o estabelecimento de um ponto de vista tem grande impacto na história a ser contada. Conheceremos, também, diferentes tipos de narrador.


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Optamos por introduzir o conceito de ponto de vista a partir de uma situação real por acreditar que isso facilitará a compreensão por parte dos alunos. É evidente que, no caso dos textos narrativos, sempre estaremos diante da criação ficcional de um ponto de vista.

Ponto de vista: a perspectiva de quem conta uma história

O apelido carinhoso, Baby, parece inadequado para o gigante de 2,03 m e 155 kg. Rafael Carlos da Silva, o Baby, era a última esperança do judô brasileiro de alcançar a meta de quatro medalhas em uma mesma edição da Olimpíada.

Pouco antes de Baby entrar no tatame para enfrentar o sul-coreano Kim Sung-Min, a brasileira Suelen Altheman havia sido derrotada na disputa do bronze dos pesos-pesados femininos.

Para chegar à luta em que conquistaria o terceiro lugar, Rafael Silva venceu quatro lutas no golden score (três minutos de morte súbita, ou seja, em que vence quem pontuar primeiro).

O cansaço de Baby pelas lutas anteriores poderia ter representado uma vantagem para o sul-coreano Kim Sung-Min, mas a vontade de vencer e chegar ao pódio olímpico fez com que o brasileiro superasse todas as dificuldades e ganhasse a luta e o terceiro lugar. Era a sua primeira medalha em uma Olimpíada.

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O judoca Rafael Silva comemora a conquista da medalha de bronze na Olimpíada de 2012.

O nadador Cesar Cielo decepciona-se com o terceiro lugar na Olimpíada de 2012.

FOLHAPRESS

O nadador Cesar Cielo chegou a Londres como favorito na prova dos 50 metros nado livre. Ele havia vencido a mesma prova na Olimpíada de Pequim, quando conquistou a primeira medalha de ouro da natação brasileira. Desde então, seu desempenho em diversas competições mundiais lhe garantiu o status de nadador mais veloz do planeta.

Quando Cielo pulou na água para disputar a final dos 50 metros nado livre, o Brasil parou para assistir à prova. Eram poucas as nossas chances de ouro olímpico e uma das medalhas tidas como certas deveria vir de uma vitória de Cielo nessa prova.

O brasileiro, porém, foi surpreendido pelo francês Florent Manaudou, que completou os 50 metros em 21s34. Em segundo lugar, Cullen Jones marcou 21s54. Cielo chegou em terceiro, com o tempo de 21s59. Por 25 décimos de segundo a tão esperada medalha de ouro escapou do nadador brasileiro.

A comparação das duas fotos torna evidente o que significa observar um mesmo acontecimento a partir de diferentes pontos de vista: Baby se considera um vencedor ao conquistar o terceiro lugar; Cielo, um perdedor. A depender da perspectiva adotada, portanto, modifica-se a interpretação do que aconteceu na Olimpíada de Londres.

Para cada um dos atletas, a conquista da medalha de bronze teve um significado totalmente diferente.

Tome nota

O ponto de vista (ou perspectiva) explicita, nos textos narrativos, o “olhar” adotado pelo narrador para apresentar a seus leitores um acontecimento, personagem ou espaço sobre o qual vai falar. A adoção de uma determinada perspectiva afeta o modo como a história contada é interpretada por seus leitores.


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De olho no filme

Quem atirou no presidente dos Estados Unidos?

Quando o presidente norte-americano é baleado na Espanha, inicia-se uma caçada ao assassino. A ação é relatada a partir de oito perspectivas diferentes, cada uma delas associada a uma personagem que presenciou a cena. Como afirmou o diretor, Peter Travis: “Você não consegue desvendar o mistério deste filme sem ver o mundo do ponto de vista de cada uma dessas pessoas diferentes. [...] Trata-se de um filme sobre a maneira de se ‘enxergar’ as coisas”.



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Ponto de vista, de Peter Travis. EUA, 2008.

REPRODUÇÃO



A relação entre ponto de vista e foco narrativo

O narrador-protagonista

Um dos mais frequentes narradores em 1ª pessoa é aquele que protagoniza a história que conta. Veja o exemplo a seguir.

Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles. São um bocado sensíveis a esse tipo de coisa, principalmente meu pai. Não é que eles sejam ruins — não é isso que estou dizendo —, mas são sensíveis pra burro. E, afinal de contas, não vou contar toda a droga da minha autobiografia nem nada. Só vou contar esse negócio de doido que me aconteceu no último Natal, pouco antes de sofrer um esgotamento e de me mandarem para aqui, onde estou me recuperando. [...]

SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio. Tradução de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, s.d. p. 7. (Fragmento).

Holden Caulfield, o narrador do romance O apanhador no campo de centeio, é um adolescente que conta a história de alguns dias da sua vida. Com um olhar crítico para o mundo, o jovem revela, nesse trecho, seu ponto de vista sobre si mesmo e sobre seus pais.

As palavras e expressões destacadas em verde indicam a visão mais “ácida” que Holden demonstra ter da própria vida. Em rosa destacamos as passagens em que ele manifesta suas impressões a respeito dos pais.

Note que o uso de termos como porcaria, lenga-lenga, chateia, droga delineia o modo como esse narrador em 1ª pessoa vê o seu passado e a expectativa que as pessoas têm em relação a uma história autobiográfica (o que explica a referência ao livro David Copperfield, do escritor inglês Charles Dickens, que conta a vida do menino David de modo bastante sentimental).

Essas palavras indicam, para o leitor, que os acontecimentos narrados no livro serão apresentados a partir de uma perspectiva crítica, negativa, o que ajuda na caracterização de certo cinismo adolescente definidor da personagem. É interessante observar, por exemplo, que a imagem que Holden faz dos pais é um pouco menos dura do que a que faz de si mesmo. Em relação a eles, toma o cuidado de esclarecer que não são “ruins”, são apenas “sensíveis pra burro”.

Analisar as palavras escolhidas por um narrador para caracterizar uma personagem ou situação permite identificar a perspectiva a partir da qual ele conta a história.

O narrador-testemunha

Sempre que uma história é contada por um narrador em 1ª pessoa, o leitor encontra-se diante de uma perspectiva claramente subjetiva. A subjetividade do foco em 1ª pessoa decorre de sua associação imediata a uma personagem. Se o narrador é uma das personagens, todos os acontecimentos, motivações e demais personagens são apresentados a partir do seu ponto de vista particular. Observe este trecho de um conto policial.

[...] A convivência com Holmes não era difícil. Ele tinha hábitos tranquilos e regulares. Era raro vê-lo em pé depois das dez horas da noite, e invariavelmente já havia feito o seu desjejum e saído quando eu me levantava de manhã. [...]

À medida que passavam as semanas, meu interesse nele e minha curiosidade quanto a seus objetivos na vida iam gradualmente aumentando e se aprofundando. Até seu físico era tal que despertava a atenção do mais descuidado observador. Quanto à estatura, passava de um metro e oitenta, mas era tão magro que parecia mais alto ainda. Os olhos eram agudos e penetrantes, salvo durante aqueles intervalos aos quais fiz alusão, e o nariz delgado, aquilino, dava a sua expressão um ar de vigilância e decisão. Também o queixo, quadrado e forte, indicava nele o homem resoluto. [...]

DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Tradução de Louisa Ibañez e Arnaldo Viriato Medeiros. São Paulo: Abril, 1984. p. 17-18. (Fragmento).

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Sherlock Holmes conversa com Watson. 1893. Litografia. Ilustração de uma das primeiras edições com a personagem Sherlock Holmes.

REPRODUÇÃO


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Nesse texto, somos apresentados a um dos mais conhecidos e admirados detetives dos romances policiais: Sherlock Holmes. Quem descreve o famoso investigador inglês é seu amigo e assistente, Dr. Watson. Dizemos que esse tipo de foco narrativo em 1ª pessoa é construído a partir de um narrador-testemunha. Ou seja, os acontecimentos são contados por uma personagem que, embora participe da história, não é o protagonista.

Tudo o que é contado passa pelo “filtro” do seu olhar. Suas impressões sobre os fatos, o espaço e as demais personagens são reveladas não apenas a partir da seleção do que é contado, mas também das caracterizações que faz.

O narrador-onisciente

Quando um escritor pretende que seus leitores acompanhem o que pensam e sentem as personagens de uma história, constrói um foco narrativo em 3ª pessoa e escolhe trabalhar com um narrador-onisciente.

Esse narrador tem conhecimento total dos fatos. Ele acompanha todos os acontecimentos e penetra no íntimo das personagens, revelando suas motivações, desejos e sentimentos pessoais. Observe.

[...]


Sara respirava ruidosamente, em parte por causa do esforço físico, mas também por causa da irritação que estava sentindo. Não era porque o telefone estivesse interrompendo aquele primeiro momento de quietude, quando todo movimento cessa. Era mais porque ela queria muito que não fosse Robin, seu agente, pois não só ainda não estava preparada para perdoá-lo, como ficava irritada por antecipação só de pensar que poderia ser ele do outro lado da linha. Quando ela alcançou o telefone, suas pernas tremiam e seu corpo ainda suava. Ao pegar o aparelho, o plástico morno e liso escorregou de sua mão molhada, caiu no chão e quicou contra a ponta do fio espiralado, girando no ar e batendo na cômoda. Quem quer que estivesse do outro lado da linha provavelmente imaginaria que ela tinha atirado o telefone contra a parede, de modo que não havia a menor possibilidade de parecer equilibrada e razoável agora.

[...]


JOSS, Morag. Música fúnebre. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 17. (Fragmento).

Nesse trecho do romance, apesar de o narrador aparentemente não estar associado a nenhuma personagem, podemos constatar que o olhar de uma personagem sobressai em relação ao que é contado. Isso acontece porque, em qualquer narrativa, sempre será estabelecido um ponto de vista predominante.

Nesse caso, o narrador-onisciente constrói o ponto de vista de Sara, a personagem principal. Sabemos, por exemplo, que sua irritação se deve principalmente à possibilidade de o seu agente, com quem ela não deseja falar, estar do outro lado da linha. Os trechos destacados são um exemplo de como o narrador explicita os sentimentos e as motivações da personagem.

Tome nota

A imparcialidade do narrador em 3ª pessoa é relativa, porque o texto sempre irá revelar diferentes pontos de vista sobre os acontecimentos narrados.

Como um narrador em 3ª pessoa não é uma personagem, ele não representa, na verdade, uma perspectiva única, particular, associada a uma só visão de mundo. Funciona como uma lente mais ampla, que capta e transmite, para o leitor, os sentimentos, emoções e pensamentos mais privados de diferentes personagens. Ao fazer isso, explicita pontos de vista variados sobre os acontecimentos narrados.

De olho no filme

Harold Crick está pronto para partir. Ponto final.”

A vida meticulosamente controlada de um funcionário da Receita Federal vira de cabeça para baixo quando ele constata que todos os seus atos estão sendo “narrados” por uma misteriosa voz feminina. O solitário Harold descobre, para seu espanto, que a voz pertence a uma escritora, Karen Eiffel, famosa por matar suas personagens de modo inusitado. Temendo pela própria vida, Harold precisa encontrar Eiffel e convencê-la a parar de escrever o romance que ele protagoniza.

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Mais estranho que a ficção, de Mark Forster. EUA, 2006.

REPRODUÇÃO



O narrador-observador

Outra possibilidade, associada a um foco narrativo em 3ª pessoa, é a do narrador que, como um observador distante, narra os acontecimentos.

Aquele foi um verão diferente, único. Um verão que começou antes da hora e que desde o princípio deixou estabelecido que se estenderia pelo tempo, atropelando calendários, previsões e memórias.

A casa erguia-se branca no meio da encosta, rodeada de grandes amendoeiras. A encosta descia no rumo do mar, suave no princípio, abrupta no final. Na casa, a rotina estabeleceu-se com os primeiros dias de sol, quando a força do verão mostrou-se com toda a sua impertinência.

Todos os dias, pouco depois das oito da manhã, o motorista saía no carro branco e ia até a aldeia, seguindo veloz pelos quatro quilômetros da estrada que corria sobre as rochas, beirando o mar. Voltava sempre às nove trazendo pão, a correspondência que recolhia no correio e, algumas vezes, um pacote de laranjas. Quarta-feira era o dia em que a cozinheira gorda, negra e tranquila ia com ele. Sentava-se no banco da frente, ao seu lado, e viajava em silêncio, suspirando e olhando o mar. Na volta, trazia duas grandes sacolas de verduras e frutas e um peixe embrulhado em papel claro. Nesse dia, o automóvel branco demorava um pouco mais para voltar.
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A casa era silenciosa e tinha grandes janelões e duas varandas enormes que se abriam para o mar. [...]

NEPOMUCENO, Eric. As três estações. Coisas do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 109. (Fragmento).

Por meio da narração em 3ª pessoa, a cena vai sendo apresentada ao leitor de modo detalhado, com informações sobre tempo (era verão), espaço (a ação se passa em uma casa de praia) e personagens (o motorista, a cozinheira). O leitor acompanha os acontecimentos rotineiros na vida dessas personagens como se estivesse assistindo a uma cena que se desenrola diante de seus olhos.

Por mais minuciosa que seja a apresentação feita pelo narrador-observador, ela não nos informa sobre alguns elementos essenciais para que possamos compreender o que se passa. Poderíamos perguntar, por exemplo, o que sentem aquelas pessoas que circulam pela casa de praia ou em que pensa a cozinheira quando olha o mar e suspira. Essas respostas não são dadas no texto e isso é uma característica de um narrador que apresenta o que observa e nada além disso.

Quem conta a história?

Escolher entre uma perspectiva mais ou menos particular, no momento de contar a história, envolve outras escolhas narrativas. A escolha de um narrador-onisciente (3ª pessoa), por exemplo, permitirá revelar o ponto de vista de diferentes personagens.

A opção por um narrador em 1ª pessoa permite mostrar como determinadas pessoas veem de modo particular (até mesmo distorcido) alguns acontecimentos. Pense nisso quando for escrever uma narrativa.

Personagens: os seres de ficção

Toda narrativa apresenta uma série de acontecimentos, contados por um narrador. Os seres que vivenciam esses acontecimentos são as personagens. Por esse motivo, dizemos que a personagem é um “ser de ficção”, ou seja, um ser criado para participar de um contexto ficcional, interagindo com os demais elementos narrativos e produzindo, como resultado final, o enredo.

Se as personagens, como o narrador, são seres de ficção, isso significa que devem ser criadas pelo autor do texto. No caso dos contos, sua extensão mais curta faz com que as personagens sejam apresentadas aos leitores como seres já inteiramente criados, de cuja vida se pode acompanhar somente um recorte: aquele que é apresentado naquela narrativa.

É importante que o comportamento das personagens seja compatível com as informações que o narrador oferece ao leitor sobre elas. Assim, no conto de abertura deste capítulo, somos apresentados a um homem que se comporta de modo coerente com o que se espera de alguém que se sente oprimido (física e emocionalmente). Os leitores do conto só acreditarão na situação narrativa criada caso o comportamento do protagonista seja verossímil.

Lembre-se

Verossímil é aquilo que parece verdadeiro. No caso das narrativas ficcionais, a verossimilhança é muito importante, porque é ela que garante a coerência da história contada. Ainda que todos os elementos de uma narrativa sejam fruto da imaginação de um autor e não tenham qualquer relação com a realidade, o texto será verossímil se o leitor aceitar que a história contada poderia ser real, porque parece verdadeira.

A criação de personagens verossímeis

No momento de planejar um texto narrativo, alguns aspectos devem ser considerados para garantir que as personagens criadas sejam verossímeis.

A primeira providência a ser tomada pelo autor é garantir que ele conheça as personagens criadas tão bem quanto as pessoas com as quais convive há muito tempo (seus pais, irmãos, amigos, etc.).

Além das características mais objetivas de uma personagem, o autor deve também conhecê-la com relação a seus traços psicológicos, porque deles virá a motivação para suas ações e reações.

A melhor maneira de compreender os motivos (ou desejos) por trás das ações das pessoas é observá-las nos seus comportamentos rotineiros. Podemos imaginar, por exemplo, uma pessoa que adora promover festas. Não apenas festas de aniversário, mas festas semanais, reuniões de pessoas conhecidas e não tão conhecidas assim. Que sentido tem o comportamento dessa pessoa? O que será que ela pretende com tantas festas? Será que procura reconhecimento dos outros? Será que procura carinho? Será que teme a solidão?

As respostas a perguntas como essas permitirão “conhecer” mais profundamente essa pessoa meramente imaginada. Aos poucos nos sentiremos mais íntimos dela, saberemos quais as razões que tem para promover tantas festas, o que deseja alcançar com isso. Quando esse conhecimento ocorrer, podemos transformá-la em personagem de um texto, porque saberemos como ela irá se comportar em diferentes circunstâncias narrativas.



Das páginas dos livros para o imaginário cultural

Personagens que aparecem nos grandes romances de um país acabam por ganhar “vida” e fazer parte do seu imaginário cultural. Tornam-se “conhecidas” até por quem não leu os livros em que aparecem. É o caso do detetive Poirot, criado pela escritora inglesa Agatha Christie, ou de Emma Bovary, do francês Gustave Flaubert. No Brasil, Capitu, a boneca Emília, Gabriela, Rodrigo Cambará, Macabéa são algumas dessas personagens.


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O espaço

Quando fazemos referência ao espaço, em um texto narrativo, podemos identificar dois tipos diferentes.

• O espaço físico: conjunto de elementos da paisagem exterior; trata-se do cenário criado pelo autor no qual será ambientada a ação.

• O espaço interior (psicológico): as vivências da personagem, seus sentimentos, seus sonhos, seus pensamentos, aquilo que permite ao leitor conhecer a motivação para seus comportamentos.

As principais funções do espaço físico são identificar o “lugar” em que transcorre a ação, auxiliar na caracterização das personagens (com elas interagindo, ou sendo por elas transformado) e contribuir para a construção do tempo da narrativa.

Definir o espaço somente como o lugar em que se passa a ação, portanto, é insuficiente: ele também define uma ambientação para a narrativa. Para identificar como se dá a ambientação, precisamos perceber de que maneira o espaço estabelece uma atmosfera, um clima para os acontecimentos a serem narrados. Além da caracterização específica do espaço, participam também da criação desse ambiente aspectos morais, psicológicos, culturais e socioeconômicos das personagens. Todos esses aspectos compõem o que se chama espaço psicológico da narrativa.

Observe como a narradora deste romance estabelece, desde o início da história, um tom narrativo mais leve ao criar uma associação entre o local onde está e a tomada de uma decisão muito importante em sua vida.

Estou num estacionamento em Leeds quando digo a meu marido que não quero continuar casada com ele. David nem sequer está no estacionamento comigo; está em casa cuidando das crianças, e eu só liguei para lembrá-lo de que precisa escrever um bilhete para a professora da Molly. O resto meio que... escapole. É um erro, obviamente. Embora aparentemente eu seja — para minha imensa surpresa — uma pessoa capaz de dizer ao marido que não quer continuar casada com ele, nunca pensei que fosse uma pessoa capaz de dizer isso pelo telefone celular, num estacionamento. É claro que este item específico da minha autoavaliação deve ser revisto. Por exemplo, eu posso me descrever como uma pessoa que não esquece nomes, pois já lembrei de nomes milhares de vezes e me esqueci de apenas um ou dois. Mas a maioria das pessoas diz apenas uma vez — se é que chega a isso — que quer acabar um casamento. Quem escolhe dizer isso pelo telefone celular num estacionamento em Leeds não pode depois afirmar que uma ocasião como essa não tenha sido representativa, assim como Lee Harvey Oswald não podia afirmar que matar presidentes não era uma característica sua. Às vezes nós temos que ser julgados pelas coisas que só fazemos uma vez.

[...]


HORNBY, Nick. Como ser legal. Tradução de Paulo Reis. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p. 9. (Fragmento).

Essa é a abertura do romance, o primeiro contato que o leitor tem com a personagem. É muito significativo, portanto, que o autor decida apresentá-la em um estacionamento quando comunica ao marido que quer se separar dele.

Há uma clara incompatibilidade entre o local em que ela se encontra (e também o fato de estar ligando de um celular) e a gravidade da decisão tomada. É justamente o absurdo da situação que é explorado nessa passagem. O que poderia ser uma decisão dramática, carregada de emoção, é apresentado pela narradora como algo que “escapole” no meio da sua conversa com o marido. A situação é tão inesperada, que ela mesma observa: “nunca pensei que fosse uma pessoa capaz de dizer isso pelo telefone celular, num estacionamento”. O clima narrativo criado pela cena inicial dará o tom do romance, que trata de questões bastante sérias de modo leve.

O exemplo apresentado ilustra, portanto, a importância do planejamento prévio do espaço da narrativa.

O tempo

O tempo de uma narrativa é caracterizado pela duração da ação nela apresentada. Há diferentes “tempos” quando se considera uma narrativa.

• O tempo cronológico: quando os fatos são narrados de acordo com a ordem em que acontecem.

• O tempo psicológico: quando a rememoração do passado desencadeia a narrativa. Nesses casos, é frequente a utilização de flashbacks.

• O tempo histórico: referente ao momento histórico em que se situam os fatos narrados.

Lembre-se

Flashback é o nome que se dá ao recurso de fazer com que a narrativa volte no tempo por meio das recordações do narrador.

A marcação de tempo é estabelecida, em uma narrativa, com a ajuda de elementos linguísticos (flexão de tempo dos verbos, advérbios e expressões temporais). São esses os elementos que permitem ao leitor reconstituir, em termos cronológicos, o desenvolvimento de uma determinada ação.

Algumas narrativas, em função do tempo histórico em que se passam, chegam a tematizar a marcação do tempo. Veja.

“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando” — costumava dizer Ana Terra. Mas entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera a força de mudar-lhe a sorte por completo. Mas em que dia da semana tinha aquilo acontecido? Em que mês? Em que ano? Bom, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente. Mas na estância onde Ana vivia com os pais e os dois irmãos, ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário nem relógio. Eles guardavam de memória os dias da semana; viam as horas pela posição do sol; calculavam a passagem dos meses pelas fases da lua; e era o cheiro do ar, o aspecto das ár-


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vores e a temperatura que lhes diziam das estações do ano. Ana Terra era capaz de jurar que aquilo acontecera na primavera, porque o vento andava bem doido, empurrando grandes nuvens brancas no céu, os pessegueiros estavam floridos e as árvores que o inverno despira, se enchiam outra vez de brotos verdes.

[...]

VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento. Porto Alegre: Globo, 1978. v. 1. p. 73. (O Continente). (Fragmento).



Estância: fazenda.

O romance de onde o trecho foi retirado reconstitui um momento do passado histórico da ocupação da região sul do Brasil, no século XVIII. Naquele tempo, era comum as pessoas serem analfabetas e não terem instrumentos para marcar o tempo (não tinham acesso a calendário nem relógio).

Nesse caso, é o espaço que fornece os indícios a partir dos quais Ana Terra e seus familiares procuram ”marcar” a passagem do tempo: o vento, o cheiro do ar, o aspecto das árvores, a temperatura, a posição do Sol, as fases da Lua são as referências mais concretas da mudança das estações do ano.

Se for necessária uma maior precisão, as personagens terão de recorrer a acontecimentos muito importantes (a expulsão dos castelhanos em 1777, por exemplo), para localizarem, no tempo histórico, algum acontecimento.

A relação entre espaço e tempo

Em narrativas históricas e de ficção científica, a caracterização do espaço auxilia na construção do tempo, porque torna mais “visível” para o leitor o mundo criado, definindo, assim, um determinado momento no passado ou no futuro. Nesses textos, tempo e espaço se definem e completam, de modo a criarem a ambientação perfeita para a ação que irá se apresentar.

No momento de escrever narrativas, portanto, é muito importante planejar como será a construção do espaço e do tempo, porque são elementos que podem contribuir muito para o desenvolvimento da história a ser contada.

Da integração harmoniosa de todos os elementos narrativos (narrador, personagem, espaço e tempo) surge o enredo, a história contada. O enredo só se forma quando o leitor é capaz de visualizar o conjunto resultante da análise de cada um desses elementos, percebendo como interagem e atuam uns sobre os outros, de modo a garantir que o quadro final esclareça as relações de causalidade entre os diversos fatos narrados.



Linguagem

A linguagem dos contos tem como característica essencial algo comum à linguagem dos textos literários: ela deve ser trabalhada pelo autor do texto de modo a alcançar o maior nível de significação.

Como a palavra é o elemento essencial da arte literária, os textos ficcionais são um espaço privilegiado para o trabalho com a criação de imagens significativas, que permitirão ao leitor criar ricas representações mentais do que está sendo contado. As narrativas são também o espaço para o uso conotativo da linguagem, porque o poder simbólico das construções metafóricas favorece a construção de diferentes possibilidades de interpretação.

Outro aspecto a ser considerado é o nível de liberdade na utilização da linguagem. Embora se espere que narrativas ficcionais sejam escritas de acordo com as regras de uso da variedade culta da língua portuguesa, admite-se um uso mais livre quando a linguagem se torna uma das características definidoras das personagens. Observe.

[...] Cinco minutos é tempo de sobra pra uma pessoa pegar no sono, quer ver? Vou pegar no sono em cinco minutos. Boa noite. Estou quase dormindo. Quase. Dormi. Não dormi? Acho que não. Mas vou dormir agora. Senão os pensamentos começam a entrar na minha cabeça e aí, minha filha, nunca mais. Um pensamento puxa outro, que puxa outro, parece até que pensamento tem corda. O negócio é não deixar entrar o primeiro, tá vendo? Foi só começar a pensar em não pensar e quando eu vi já estava pensando em pensamento com corda. [...]

FALCÃO, Adriana. O doido da garrafa. São Paulo: Planeta, 2003. p. 113-114. (Fragmento). © by Adriana Falcão.

Nessa passagem, observamos diversas ocorrências de expressões características da linguagem coloquial. É muito importante que elas estejam presentes nesse texto, porque a situação narrativa criada é de total descontração da personagem: à noite, na cama, tentando dormir, ela vai encadeando pensamentos.

Trata-se de um fluxo de consciência. Pois bem, se esse conto tivesse sido escrito de modo a se conformar inteiramente às características de variedade culta do português, o fluxo de consciência da personagem deixaria de ser verossímil, porque ninguém se preocupa em submeter o pensamento a uma linguagem formal. Nesse sentido, a linguagem pode ser um elemento a mais na caracterização das personagens e, consequentemente, na construção da verossimilhança da narrativa.



Estratégias narrativas

Fluxo de consciência: os misteriosos caminhos do pensamento

Um interessante procedimento narrativo que pode ser utilizado com narradores em 1ª pessoa é o fluxo de consciência. Trata-se de uma técnica utilizada para expressar, por meio de um monólogo interior, os vários estados de espírito e emoções que caracterizam uma personagem. Para criar um fluxo de consciência, o autor apresenta os pensamentos de uma personagem, sem se preocupar em garantir a articulação lógica entre as ideias. Assim, uma série de impressões (visuais, olfativas, auditivas, físicas, associativas) ganham forma diante dos olhos do leitor, recriando, em um universo ficcional, o que se passa na mente humana. A mais famosa obra literária em que essa técnica foi utilizada é Ulisses, de James Joyce.


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A concisão narrativa: produção de conto de mistério

1. Pesquisa e análise de dados

A casa número dezessete era mencionada apenas em voz baixa pelos vizinhos. Conheciam bem os frequentes sons de gritaria, portas batendo e objetos quebrando. Mas numa abafada noite de verão, outra coisa aconteceu, algo bem mais interessante: [...]

Quando o jovem casal que vivia no número dezessete enfim surgiu para ver a cena, com olhos turvos e confusos, o primeiro impulso deles foi de raiva e recriminação. “Você está de BRINCADEI- RA?”, gritavam um para o outro, e também para alguns vizinhos. Mas essa reação logo deu lugar a um espanto silencioso quando se deram conta do absurdo da situação. [...]

TAN, Shaun. Ressaca. Contos de lugares distantes. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Tradução: Érico Assis. p. 37. (Fragmento).

O trecho acima foi oferecido aos leitores de uma revista literária como inspiração para um concurso de escrita de um conto de mistério. Os melhores textos serão publicados em uma edição especial dedicada a esse gênero.

Imagine que você é um leitor dessa publicação e resolve participar do concurso. Escreva seu conto de mistério, seguindo as instruções abaixo.



O objetivo desta proposta é oferecer elementos motivadores para que os alunos escrevam um conto de mistério. Nesse sentido, é importante avaliar de que modo eles foram capazes de incorporar às narrativas as informações básicas sobre personagens, espaço e tempo presentes no trecho citado. Deve-se observar, ainda, se os alunos construíram corretamente uma perspectiva associada a um narrador em 3ª pessoa. Como a tarefa não estabelece se esse narrador deve ser onisciente ou observador, eles podem escolher o que for mais adequado à história a ser contada. Também é muito importante avaliar se os acontecimentos narrados foram motivados e se o comportamento das personagens é compatível com as suas características, de modo que o enredo do conto de mistério resulte verossímil para seus leitores.

Instruções

• Seu conto deve manter o foco narrativo em 3ª pessoa.

• A história criada deve levar em consideração as informações sobre personagem, cenário e tempo presentes no trecho.

• O clima de suspense deve predominar na narrativa, que deve também revelar o que aconteceu de interessante na “abafada noite de verão”.

• Escreva no máximo 60 linhas.

2. Elaboração

>> Como seu conto deve revelar o que aconteceu na “abafada noite de verão”, comece por definir o que pode ter ocorrido para chamar a atenção de toda a vizinhança.

>> Lembre-se de que todo conto deve apresentar, desenvolver e solucionar um conflito. Determine de que modo o acontecimento a ser narrado relaciona-se com esse conflito.

>> O foco narrativo em 3ª pessoa pressupõe uma apresentação mais distanciada das personagens e dos acontecimentos. Não se esqueça disso no momento de escrever seu conto.

>> Lembre-se de que os comportamentos (ações e reações) das personagens precisam ser motivados para garantir a verossimilhança do texto.

• Quais são os motivos para os principais acontecimentos que você irá incluir no seu texto?

• A caracterização da(s) personagem(ns) torna esses motivos verossímeis?

• O que o leitor precisa conhecer sobre a(s) personagem(ns) para aceitar o que está sendo contado?

• A linguagem faz parte da caracterização da(s) personagem(ns)? Por quê?

>> Lembre-se de que toda ação deve transcorrer em algum lugar e durante algum tempo. Tome o cuidado de analisar os elementos de cenário e tempo oferecidos no trecho inspirador do conto. Leve em consideração tais elementos na hora de articular as informações sobre espaço e tempo do seu texto.

3. Reescrita do texto

Troque seu conto com o de um colega. Vocês deverão ler os textos um do outro, observando se a caracterização dos elementos narrativos foi feita de acordo com a orientação apresentada na proposta. Deverão, também, verificar se o texto revela, de modo verossímil, o que aconteceu na noite de verão da qual fala a história.

Todo texto pode ser melhorado: que sugestões você faria a seu colega para reescrever o conto criado por ele, de modo a causar um maior impacto junto ao leitor? Peça a ele que faça o mesmo tipo de sugestões em relação ao seu conto.

Releia seu conto, analisando as sugestões recebidas. Refaça o texto, incorporando as modificações que lhe parecerem mais interessantes.


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Produção de texto

Unidade 7 - Exposição

A capacidade de organizar e apresentar informações de modo claro e coerente está na base dos textos expositivos. Nesta unidade, conheceremos o relatório, um dos gêneros que compartilham uma finalidade básica: expor informações.

Capítulo

18. Relatório, 294

Relatório: definição e usos


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Capítulo 18 - Relatório

Leitura

O texto a seguir foi extraído do Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008, elaborado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Parte de um relatório extenso (4 capítulos, 386 páginas incluindo gráficos, tabelas, mapas, etc.), ele apresenta algumas das características estruturais definidoras desse gênero discursivo. Leia-o com atenção.

Capítulo 2 — Choque climático: risco e vulnerabilidade num mundo desigual

A ciência climática funciona no âmbito da medição. As emissões de dióxido de carbono (CO2) são equacionadas em toneladas e gigatoneladas. As concentrações de gases com efeitos de estufa na atmosfera terrestre são dimensionadas em partes por milhão (ppm). Em conformidade com os dados, é fácil esquecermo-nos do rosto das pessoas que estão mais vulneráveis às alterações climáticas. [...]

O rosto humano das alterações climáticas não pode ser captado e incluído em estatísticas. É impossível separar muitos dos atuais impactos de pressões mais vastas. Outros irão ocorrer no futuro. Não existem certezas quanto ao local, tempo e magnitude de tais impactos. No entanto, a incerteza não é uma causa para a complacência. Estamos conscientes de que os riscos climáticos constituem uma poderosa causa do sofrimento humano, da pobreza e da escassez de oportunidades. Sabemos que as alterações climáticas estão implicadas. E também sabemos que esta ameaça se irá intensificar ao longo do tempo. [...] Neste capítulo focamos uma potencial catástrofe mais imediata: a prospecção de uma recessão do desenvolvimento humano, em larga escala, nos países mais pobres do mundo.

Essa catástrofe não se anunciará como um evento apocalíptico do gênero “big bang”. O que os pobres do mundo enfrentam é um inexorável aumento dos riscos e vulnerabilidades associados ao clima. A fonte desses crescentes riscos poderá ser detectada desde as alterações climáticas até os padrões de consumo e escolhas políticas nos países ricos.

O clima surge, já, como uma poderosa força que influencia as oportunidades de vida dos mais pobres. Em muitos países, a pobreza está intimamente relacionada à contínua exposição aos riscos climáticos. Para as pessoas que dedicam a vida à agricultura, a precipitação variável e incerta constitui uma poderosa fonte de vulnerabilidade. Para os habitantes das áreas urbanas mais pobres, as inundações constituem uma ameaça constante. Por todo o mundo, a vida dos pobres é marcada pelos riscos e vulnerabilidades provocados por um clima incerto. As alterações climáticas irão, gradualmente, elevar esses riscos e vulnerabilidades, pressionando estratégias de intervenção já largamente utilizadas e aumentando as disparidades baseadas no gênero e em outros indicadores de desvantagem.

A escala dos potenciais retrocessos do desenvolvimento humano que as alterações climáticas irão provocar tem sido amplamente subestimada. Fenômenos climáticos extremos como secas, inundações e ciclones são, efetivamente, acontecimentos terríveis. Proporcionam sofrimento, aflição e miséria à vida de todos os que são afetados, submetem comunidades inteiras a forças que estão para além do seu controle e contribuem para uma constante conscientização da fragilidade humana. Quando os choques climáticos se manifestam, as pessoas devem, primeiramente, enfrentar as consequências imediatas: riscos de saúde e nutrição, perda de bens e poupanças, danos de propriedades ou destruição de colheitas. Os custos a curto prazo poderão ter elevadas e manifestas consequências para o desenvolvimento humano.

[...]

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FERNANDO JOSÉ FERREIRA

Fonte: Cálculos de GRDH, com base no OFDA e no CRED 2007.

Os desastres climáticos afetam mais pessoas

Pessoas afetadas por desastre hidrometeorológico (milhões por ano)



Países em vias de desenvolvimento

Países de altos rendimentos da OCDE, a Europa Central e de Leste e a CEI
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Risco e vulnerabilidade

Os cenários das alterações climáticas fornecem um quadro para a identificação de mudanças estruturais nos sistemas climáticos. A forma como estas mudanças se transmitem nos resultados do desenvolvimento humano é condicionada através da interação entre riscos e vulnerabilidades.

O risco afeta a todos. Pessoas, famílias e comunidades estão em permanente exposição a riscos que podem ameaçar o seu bem-estar. A saúde-doença, o desemprego, crimes violentos e uma mudança repentina nas condições de mercado podem, em princípio, afetar a todos. O clima cria um conjunto específico de riscos. As secas, inundações, tempestades e outros fenômenos têm potencial para destruir a vida das pessoas, conduzindo a perda de rendimentos, bens e oportunidades. Os riscos climáticos não se distribuem de um modo uniforme, mas têm um preço bastante elevado.

A vulnerabilidade é diferente do risco. A base etimológica da palavra advém do verbo latino “ferir”. Enquanto o risco implica a exposição a perigos externos em relação aos quais as pessoas têm um controle limitado, a vulnerabilidade mede a capacidade de combate a tais perigos sem que se sofra, a longo prazo, uma potencial perda de bem-estar. Esta extensa ideia pode ser reduzida ao sentimento de insegurança de um potencial sofrimento que as pessoas poderão temer — de que “algo terrível” pode acontecer e que “lançará a ruína”.

As ameaças das alterações climáticas ilustram a distinção entre risco e vulnerabilidade. As pessoas que vivem no delta do Ganges e na parte baixa de Manhattan partilham os riscos de inundações associados ao aumento do nível das águas. Não partilham as mesmas vulnerabilidades. Eis a razão: o delta do Ganges é marcado por níveis de pobreza elevados e por baixos níveis de proteção de infraestruturas. [...]

Os processos através dos quais o risco se converte em vulnerabilidade, em qualquer país, são modelados pelo estado latente do desenvolvimento humano, que inclui as desigualdades dos rendimentos, as oportunidades e o poder político que marginaliza os mais pobres. Os países em vias de desenvolvimento e os seus cidadãos mais pobres estão mais vulneráveis às alterações climáticas. Elevados níveis de dependência econômica na agricultura, média de rendimentos mais baixa, condições ecológicas já fragilizadas e a localização em áreas tropicais que enfrentam padrões climáticos mais extremos são, todos eles, fatores de vulnerabilidade. [...]



Saúde humana e fenômenos climáticos extremos

[...]


O clima irá interagir com a saúde humana de diversos modos. Os que estão menos capacitados para responder às ameaças de mudanças na saúde — predominantemente os pobres em países pobres — irão suportar o peso dos retrocessos na saúde. A saúde-doença é uma das mais poderosas forças que atrasa o potencial do desenvolvimento humano das famílias pobres. As alterações climáticas irão intensificar o problema.

Furacão Katrina — as questões sociodemográficas de uma catástrofe

Quando o furacão Katrina destruiu os diques de Nova Orleans, houve um sofrimento humano e danos físicos em larga escala. À medida que o nível das águas das inundações diminuía, colocava a descoberto as graves vulnerabilidades associadas aos elevados níveis de desigualdades sociais já existentes. Os danos causados pelas inundações sobrepuseram-se a uma cidade dividida, assim como as alterações climáticas irão se sobrepor a um mundo dividido. Dois anos após a tragédia, as desigualdades continuam a travar a recuperação.

Situada na costa do golfo do México, Nova Orleans está numa das zonas de furacões de alto risco do mundo. Em agosto de 2005, as proteções contra inundações, que atenuavam este risco, foram destruídas, com consequências trágicas. O furacão Katrina tirou cerca de 1 500 vidas, deslocou 780 mil pessoas, destruiu ou danificou 200 mil casas, danificou as infraestruturas da cidade e traumatizou a sua população. [...]

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Nova Orleans logo depois da passagem do furacão Katrina: a cidade não estava preparada para enfrentar a enchente que ocorreu como consequência da tempestade provocada pelo furacão. Foto de 10 set. 2005.

SMILEY N. POOL/DALLAS MORNING NEWS/CORBIS/LATINSTOCK

É provável que as alterações climáticas tenham implicações mais vastas para a saúde humana no século XXI. Existem grandes áreas de incerteza em relação às avaliações, refletindo a complexa interação entre a doença, o ambiente e as pessoas. No entanto, na saúde, tal como em outras áreas, o reconhecimento da incerteza não é um motivo suficiente para a inação.

[...]

A malária constitui uma das maiores fontes de preocupação. Trata-se de uma doença que, atualmente, custa cerca de 1 milhão de vidas por ano, mais de 90% em África. Na África Subsaariana, morrem aproximadamente 800 000 crianças abaixo dos 5 anos de idade por ano, em resultado da doença da malária, transformando-a na terceira maior causa de morte de crianças em todo o mundo. Para além destes cenários gerais, a malária causa um enorme sofrimento, retira oportunidades de educação, emprego e produção, forçando as pessoas a gastarem os seus escassos recursos em tratamentos paliativos. A precipitação, temperatura e umidade são três variáveis que mais influenciam a transmissão da malária — e as alterações climáticas irão afetar as três.



[...]
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As alterações climáticas poderão igualmente aumentar a população exposta à dengue. Trata-se de uma doença extremamente sensível ao clima que, atualmente, se encontra confinada às zonas urbanas. A expansão latitudinal associada às alterações climáticas poderá aumentar a população em risco de 1,5 a 3,5 bilhões de pessoas, em 2080. A dengue encontra-se já em altitudes elevadas, em áreas da América Latina anteriormente livres dessa doença. Na Indonésia, as temperaturas mais elevadas levaram à mutação do vírus da dengue, causando um aumento de fatalidades na época das chuvas. [...]

Os governos do mundo desenvolvido têm de dar resposta às ameaças à saúde pública provocadas pelas alterações climáticas. Muitas autoridades [...] reconhecem os problemas especiais enfrentados pelos pobres e pelas populações vulneráveis. Porém, não seria correto os países com sistemas de saúde de primeira classe e com os necessários recursos financeiros combaterem as ameaças de alterações climáticas no próprio país e fecharem os olhos aos riscos e vulnerabilidades enfrentados pelos pobres no mundo em vias de desenvolvimento. É necessária uma ação urgente para proceder a avaliações dos riscos provocados pelas alterações climáticas à saúde pública nos países emergentes, bem como mobilizar recursos para criar um ambiente qualificado para a gestão dos riscos. O ponto de partida para a ação reside no reconhecimento de que os próprios países ricos detêm grande parte da responsabilidade histórica pelas ameaças que, atualmente, desafiam os países menos favorecidos.

PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008. Disponível em:


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