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o contexto da descoberta, ou seja, com as causas, com os fatores sociais, econômicos e psicológicos que levaram à construção de um determinado modelo científico. No campo das chamadas ciências humanas, e mais particularmente no campo do direito, o condicio- namento ideológico é patente. A ciência aqui reproduz claramente o conflito de classes, o choque de culturas e de gerações, de forma que se tem de reconhecer que a razão monológica, a razão apofântica, adequada às chamadas ciências teóricas, não se ajusta à multiplicidade de significados que se pode retirar das fórmulas e expressões jurídicas, as quais além de descrever, prescrevem condutas.
Michel Foucault, conforme registro feito no segundo capítulo (seção 2.3), chama a atenção para o desprezo que o filósofo, homem da verdade e do saber, sempre teve por aquele que não passava de orador, o homem do discurso, que procurava conseguir vitórias valendo-se de meia dúzia de palavras de efeito. Essa associação entre a prática do discurso e o exercício do poder, que aqui ainda é concebida sob a ótica da filosofia do sujeito, abre espaço, de uma pers- pectiva interdisciplinar, para uma aproximação entre a teoria social e a filosofia, para uma nova relação entre o retórico e o filosófico. Em Jürgen Habermas, que também se dedica à análise das relações sociais a partir do advento da técnica, há uma crítica ao domínio da razão instrumental, como concebido por Horkheimer. Mas Habermas, partindo de uma nova teoria da sociedade e da modernidade, além de denunciar essa razão atrofiada, que se limita ao aspecto cognitivo-instrumental, propõe a superação do paradigma, a substituição da razão subjetiva por uma razão intersubjetiva. Esta nova orientação da chamada Escola de Frankfurt, que se aproxima da filosofia pragmática, tem importantes repercussões na analise do abuso dos direitos processuais, como se passará a ver.
Habermas, que pertence à segunda geração de integrantes do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, inicialmente composto por Adorno, Horkheimer Marcuse e Erich Fromm, procurou salvar a teoria crítica do pessimismo em que parecia mergulhada, buscando uma reconciliação entre sujeito e objeto do ponto de vista de uma ação da teoria comunicativa. Entende que a modernidade produziu uma certa perda de sentido, provocada pelo esvaziamento das
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grandes visões de mundo, a par de uma perda da liberdade, resultante do avanço daburocracja. Distancia-se, contudo, davisão de Horkheimer ao defender a tese de que esta modernização, 110 campo da cultura e das artes, acabou liberando o potencial da razão comunicativa, até então sufocado pelas religiões e pela concepção metafísica do mundo. Aqui, os processos de produção dependem cada vez mais dos próprios homens e não da tradição e da autoridade. Sucede que a sobrecarga da capacidade comunicativa no mundo modemo acabou criando condições para uma disjunção entre o mundo vivido, onde as ações, de caráter intencional, são presididas pelo entendimento, e o sistema, que é indiferente às intenções dos atores sociais. Com isto, a racionalidade instrumental, até então circunscrita ao campo administrativo e econômico, foi-se estendendo a outros segmentos da vida social.46 Importante registrar, contudo, que o modelo hermenêutico de Habermas implica uma reconstrução do conceito de mundo da vida, que o distancia da elaboração desenvolvida por Husserl, presa ao paradigma da consciência.47
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(46) Sergio Paulo Rouanet, As razões do lluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p.158-164e 340-345. No mesmo sentido, v. Barbara Freitag, op. cit., p. 62-65.
(47) Nesse passo, Habermas contrapõe o mundo da vida, conceito assim reformulado, à concepção sistêmica, adequada à figura de um observador externo. O modelo sistêmico explica a racionalidade instrumental, avessa ao diálogo, enquanto a noção de mundo da vida permite entender a sociedade da perspectiva interna dos atores, inseridos em situações concretas do cotidiano. Diferentemente do que sucede no conceito husserliano, o mundo da vida, na pragmática-formal dos pressupostos do agir comunicativo, surge na perspectiva de participação e reconstrução dos falantes, compartilhado intersubjetivamente. Esta reformula- ção permite contornar as criticas formuladas,já ao final do terceiro capitulo (seção 3.4), à fenomenologia husserliana, da qual se disse ser ideaIista. Na visão habermasiana, o mundo da vida é composto de três planos estruturais: a) a cultura, que se apresenta como uma espécie de estoque do saber da comunidade, depósito dos conteúdos semânticos da tradição, onde os participantes se abastecem dos modelos interpretativos necessários ao processo comunicativo; b) a sociedade, no sentido estrito, composta dos ordenamentos legítimos que regulam a solidariedade dos participantes com determinados grupos sociais; c) a personalidade, que
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Com efeito, o capitalismo passou a interferir cada vez mais na esfera do mundo vivido, fazendo-se presente em terrenos até então reservados à ação comunicativa, como é o caso da familia, da educação, do lazer. Surgem, assim, as patologias do mundo vivido, como conseqüência da sua colonização, seja pelo sistema político (burocratização) seja pelo sistema econômico (monetarização), num universo totalmente sistêmico, tal qual descrito na seção anterior, quando se fez referência às teorias de Parsons e de Luhmann. Enfim, a ruptura com a tradição e a autoridade se de um lado possibilitou a emancipação de certas esferas da atividade humana, de ou- tro trouxe a possibilidade de um instrumentalismo perverso.48 Embora compartilhando em boa medida o diagnóstico crítico sobre a racionalidade instrumental, feito por Horkheimer, Habermas procura uma alternativa à crítica global da razão, que também refoge ao conceito sistêmico de Luhmann, caracterizado por princípios normativos e instâncias auto-regulatórias da integração social.49
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constitui um conjunto de competências que qualificam um sujeito para participar das interações, permitindo-lhe construir e consolidar sua identidade Quando entra em cena o agir estratégico, o mundo da vida vê-se neutralizado, com o que perde sua força coordenadora da ação, deixan- do de ser fonte de garantia do consenso (Jürgen Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasilei- ro, I 990, Coleção Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estu- dosAlemães, p. 86-101).
(48) Sergio Paulo Rouanet, As razões do lluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 1 58- I 64. Para o autor, a anexação do mundo da vida por parte do sistema, governado pela razão instrumental, conduziu ao que Max Weber chamou de perda de liberdade do homem, crescentemente aprisionado numa armadura de ferro, ou ao que, mutatis mutandis, Lukács denominou de alienação (idem, p. 341-342). Neste exato sentido, ver também Barbara Freitag (op. cit., p. 62).
(49) Habermas entende que o modelo sistêmico é uma descrição adequada das formas de legitimação tradicional, das relações estratégicas, que visam ao poder. Mas nem tudo está perdido para esta racionalidade sistêmica. Há valores, normas e processos de entendimento mútuo que têm de ser analisados sob outro ângulo. A esperança está em reconquistar para o mundo vivido os espaços usurpados pelo sistema, ou seja, contrapor a comunicação à violência, passar de uma ação instrumental para
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A teoria da ação comunicativa situa-se no campo dos atos de fala. Partindo do modelo desenvolvido por Austin e Searle, Habermas passa a distinguir entre ações no sentido estrito e ações Iingüísticas. Nestas, pessoas se comunicam visando a um entendimento acerca de alguma coisa que está no mundo. Na ação não-Iingüística, vale dizer, nas atividades simplesmente orientadas para um fim, o terceiro observador está impossibilitado de dizer acerca das intenções dos falantes, pois ela não revela a partir de si própria o modo como foi planejada. Somente os atos de fala preenchem essa condição. Assim, quando alguém diz condeno, o ouvinte tem a possibilidade de inferir do conteúdo semântico do proferimento o modo como a sen- tença proferida está sendo utilizada. Enfim, as ações lingüísticas são auto-referenciais; nelas o componente ilocucionário determina o sentido do que é dito através de uma espécie de comentário pragmá- tico. Ao dizer alguma coisa, faz-se algo e ao realizar-se uma ação de fala, algo também é dito.50
Habermas registra que somente uma segundapessoa, que abandone a posição de observador extemo, está em condições de captar o sentido performativo de uma ação de fala. Só aqueles que comparti- lham intersubjetivamente a mesma linguagem, o mesmo mundo da
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uma ação comunicativa (op. cit., p. 83-87). Segundo Pietro Barcellona, Habermas tenta reagir ao processo de dessubstanciação, desenvolvido pela teoria sistêmica de Luhmann (no qual o direito é posto por decisão, sem qualquer compromisso com a verdade), buscando um apriorido entendimento, que não é, todavia, confiado à intimidade da consciência mas à vocação universalista da Iinguagem, que nos impõe co- municar segundo o princípio da verdade. Com isto, Habermas opõe-se ao decisionismo de Luhmann (Pietro Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do capital, São Paulo, Icone, 1 995, p. 65-68). Ver também, nesse sentido, a propósito dos pressupostos da teoria da ação comuni- cativa, as considerações de Sergio Paulo Rouanet (As razões do ilumi- nismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 164-166 e 185-187) e de Barbara Freitag (op. cit., p. 62 a 65).
(50) Jürgen Habermas, op. cit., p. 65, 66, 1 i3-122. Para Habermas, a força ilocucionária, diferentemente do que ocorre a Austjn, é um componente racional do ato de fala. O elemento racional não se Iimita à proposição assertórica (Idem, p. 81 e l24).
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vida podem entender a reflexibilidade da linguagem natural. Nesse sentido, dá um importante passo na transição de uma filosofia do sujeito, onde a razão está limitada ao aspecto cognitivo-instrumental, para uma filosofia comunicativa. Trata-se de abandonar aquela perspectiva da razão monológica para recompor a trilogia kantiana (razão cognitiva, razão normativa e razão das vivências subjetivas) na base do reconhecimento de uma comunidade lingüística, que pressupõe a intersubjetividade de pelo menos dois atores voltados para o entendimento mútuo. O sucesso do ato ilocucionário ultrapassa a simples compreensão do que é dito, dependendo do assen- timento racionalmente motivado do ouvinte. Em outras palavras, os fins ilocucionários só podem ser atingidos através da coopera- ção do inter1ocutor.51
Mas afelicidade da ação lingüística, vale dizer, o sucesso dos proferimentos, varia conforme se esteja cuidando de um agir estratégico ou de um agir comunicativo. Trata-se de modos pelos quais os falantes empregam seus conhecimentos visando a uma finalidade, mas de óticas diferentes. No agir comunicativo, o saber é empregado com vista ao entendimento, ao passo que no agir estratégico tem-se em conta a simples ação orientada para um fim, na qual não importam o entendimento, a convergência intersubjetiva. Neste último caso, ingressa-se no universo das relações de poder, onde o interlocutor obedece cegamente a imperativos a fim de evitar sanções. Aqui não se cogita de composição entre os falantes, pois aquilo que se obtém através da força, da ameaça, não é acordo. Quando uma relação de poder é rejeitada, entra em cena um contrapoder, sem que se tenha critério para dizer dajustiça deste ou daquele.52
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(51) Idem, p. 67-70.
(52) No agir estratégico, as influências externas à Iinguagem assumem o papel de coordenação antes exercido pelos atos de fala. Há uma emasculação da força ilocucionária e a linguagem, assim debilitada, passa a preencher apenas as funções de informação que restam quando se retira do entendimento lingüístico a formação do consenso. Nesse contexto, a ameaça cumpre um papel instrumental. Ela não é propriamente um ato ilocucionário porque não visa à tomada de decisão racionalmente motivada por parte do destinatário (Habermas, op. cit., p. 74 e 75).
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Diversamente, no agir comunicativo, hápretensões de validade que podem inclusive ser rejeitadas, criticadas. No agir estratégico, o sucesso da ação depende de uma racionalidade dos planos individuais de ação, ao passo que no agir comunicativo o entendimento depende de uma racionalidade que se manifesta nas condições requeri- das para um acordo obtido comunicativamente.53 É importante dizer, no entanto, que o agir estratégico não se confunde com a ação instrumental. A ação estratégica busca exercer influência sobre as outras pessoas na base de regras racionais de escolha. Na ação instrumental, diferentemente, o objetivo é transformar o mundo por meio de regras técnicas.
Há certas sociedades em que as relações de poder predominam sobre as relações comunicativas e isto por força de um desvio do paradigma da comunicação. Assim como Wittgenstein concebia a figura dos jogos de linguagem espúrios, distorções consistentes em confundir diferentes formas de vida, Habermas entende que a in- cursão das relações de poder no campo da argumentação gera deformações ideológicas, pois trata-se de jogos de racionalidade distintos, deforrnas de vida diversas. E inconcebível conter a riqueza de significações da argumentação no espartilho das demonstrações lógicas ou empíricas. No agir estratégico a linguagem natural é utilizada apenas como meio para transmitir informações, ao passo que na interação comunicativa ela se mostra também como fonte de integração social. Aqueles que interagem no processo de argumentação tem de estar atentos às armadilhas do poder, à possibilidade de manipulações de toda sorte, às falácias.54 A compreensão disto exige que se entenda uma noção até aqui apenas enunciada, qual seja, o conceito de pretensão de validade.
As questões de significado, no campo da pragmática universal de Habermas, não podem ser dissociadas das questões de validade.
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(53) Idem, p. 70, 72, 128 e 130. Também nesse mesmo sentido, Habermas, Consciência Moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo BrasiIeiro, 1 989, Biblioteca Teinpo Universitário, vol. 84, Estudos Alemães, p. 79.
(54) Idem p. 7 1.
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o entendimento possui um conteúdo normativo que ultrapassa o nível da compreensão de uma expressão gramatical. A compreensão de um proferimento implica entender-se com alguém sobre algo com o auxílio de uma expressão havida como válida. Assim, não é possível saber o que significa uma expressão lingüística sem que se saiba também como utilizá-la para entender-se com outrem. Dessa forma, a teoria da ação comunicativa rompe com aquela visão representativa, própria da filosofia do sujeito, que enxerga o problema da validade do proferimento como relação entre a linguagem e o mundo, com o que a validade fica reduzida à verdade. Na linha do neopositivismo, Habermas reconhece que os enunciados não ser vem apenas para representar fatos. Rompendo com aquele reducionismo, diz que a representação constitui apenas uma das três funções originárias da linguagem, que é utilizada também para expressar intenções do falante e firmar relações com o destinatário do proferimento.55
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(55) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães), p. 75 e 77, e Consciência Moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 84, Série Estudos Alemães), p. 79-84. Habermas observa que as teorias do significado mais conhecidas prendem-se a uma única função da Iinguagem, impregnada da relação sujeito-objeto, que só permite pensar o aspecto cognitivo e instrumental do processo comunicativo. A tradição da teoria ontológica da verdade (teoria da correspondência), que se encontra desde a semântica de Frege até o primeiro Wittgenstein, é rompida pela teoria do significado enquanto uso, inaugurada pelo segundo Wittgenstein. Mas a teoria dos atos de fala, segundo Habermas, ao mesmo tempo em que supera a filosofia do su- jeito, ressalta a importância das relações interpessoais, no que transcende também a visão do segundo Wittgenstein, presa ao campo dos jogos particulares de linguagem (Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1 990, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães, p. 74-79, 109- 1 13). Como observa Manfredo Araújo de Oliveira, opera-se em Habermas uma reconstrução da análise lógica, que tem em conta não só a experiência sensória, a observação (à qual ficou Iimitado o positivismo lógico), mas também a experiência comunicativa, a compreenção O intérprete,
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Há de considerar-se, pois, além do aspecto cognitivo e instrumental da linguagem, os aspectos normativo e estético-expressivo. A cada um deles corresponde determinado tipo de proposição, que os locutores invocam visando ao entendimento mútuo: a) aquela que se refere ao mundo objetivo das coisas; b) aquela que diz com o mundo social das normas; c) aquela relativa ao mundo subjetivo das vivências e emoções. O agir comunicativo envolve, portanto, ações de fala nas quais o locutor, valendo-se daforça do argumento, busca convencer o outro não só da verdade da proposição (a), como também de sua correção (b) e de sua veracidade subjetiva (c). No dizer de Habermas, a guinada epistêmica da semântica da verdade está em que não se pode mais considerar a questão da validade de uma proposição como nexo objetivo entre linguagem e mundo. A argumentação não se reduz à tentativa de convencer o outro da verdade daquilo que se afirma (a), envolvendo igualmente uma pretensão de reconhecimento dajustiça das normas invocadas (b) e da sin- ceridade da expressão dos sentimentos do falante (c). Esta nova concepção da verdade, que pressupõe o consenso entre aqueles que participam da ação comunicativa, não decorre de constrangimen- tos lógicos ou empíricos, mas sim da força do melhor argumento, da sua motivação racional.56
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compreendedor do sentido, faz sua experiência fundamentalmente como participante de uma comunicação na base de uma relação intersubjetiva com outros indivfduos (ManfredoAraújo de Oliveira, op. cit., p. 324).
(56) Habermas, Pensamento pós-metaflsico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990, (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Aleinães), p. 80-82, e Consciência moral e agir co- municativo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 84, Série Estudos Alemães), p. 79-84. Como ob- serva o autor, essas pretensões de validade podem ser aceitas inques- tionavelmente (nesse caso, o entendimento consensual pode dar-se de imediato), ou ser recusadas (nesse caso, o Iocutor tem de apresentar novas provas para justificar suas dúvidas, cabendo ao outro apresentar contraprovas parajustificar suas afirmações originais). Inicia-se, assim, um jogo de argumentação, com recíprocas interferências, no qual a posição dos participantes vai-se ajustando até que cheguem a um consenso (Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos
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A reviravolta pragmática de Habermas, assim, busca suas bases num conceito bidimensional de sociedade, considerada em seu sentido amplo. No mundo vivido, tem-se o espaço das interações espontâneas, no qual a verdade é fruto do consenso, este obtido por meio da discussão, onde todos os falantes participam em igualdade de condições. A força do argumento reside na capacidade de convencer os participantes, vale dizer, na capacidade de motivá-los a aceitar uma pretensão de validade, que tanto se pode colocar no nível do discurso teórico (verdade das proposições), do discurso prático (justiça das normas de ação), como também no campo da crítica estético-expressiva (sinceridade dos proferimentos), como vis- to há pouco. Na esfera sistêmica, por sua vez, as ações são regidas por uma racionalidade instrumental, própria da moderna burocra- cia, que foi anexando aquela razão comunicativa, à medida que as sociedades se tornaram mais e mais complexas. A teoria do agir comunicativo, segundo a figura de linguagem utilizada por Barcellona, é o antídoto mais poderoso à lógica funcionalista e à teoria sistêmi- ca, ambas expressão do agir instrumental, que opera segundo o esquema meio-fim, prescindindo, por isso, de qualquer recurso à motivação racional.57
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Aleniães, 1 990, p. 80-82). Diga-se que a princípio seriam cinco as pretensões de validade, que incluem, além daquelas enunciadas, as seguintes: o falante deve escolher um expressão inteligível, visando ao entendimento mútuo — inteligibilidade; o falante deve demonstrar as razões da preferência de um determinado valor em relação a outro — adequação dos padrões de valor (Haberinas, Teorías de la verdad, 1 972, in Haberinas, Teoría de la acción comunicativa: complementosy estudios previos, 4. ed. Cátedra, 1 984, Colección Teorema-Serie Mayor p. 1 33- 1 58). Todavia, como observa Manuel Atienza (op. Cit., p. 306-307), citando José M. Mardones (Razón comunicativa y teoría crítica, Universidad del País Vasco, 1985, págs. 1 10 e ss.), estas duas pretensões de validade acham-se inseridas no contexto da tríade validade-correção veracidade. A inteligibilidade diz com o caráter prévio da situação ideal de fala e a adequação dos padrões defala, que está no campo da critica estética, também se insere como expressão de vivências subjetivas, a par da sinceridade (ou veracidade).
(57) Pietro Barcellona, op. cit., p. 67.
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Como já assinalado, ateoria do agircomunicativo tem um novo enfoque da ação instrumental, que se revela no conceito do agir estratégico, também voltado para o sucesso, no que difere da ação comunicativa, que tem em conta o entendimento mútuo. Na interação estratégica busca-se exercer influência sobre as outras pessoas na base de supostas regras racionais de escolha. De outra forma, a ação instrumental, não-interativa e não necessariamente social, prescinde de qualquer recurso à motivação racional. O que importa é a adequação entre meio e flm, a eficácia de um expediente qualquer para influir sobre o comportamento humano. No agir estraté- gico, as deformações induzidas pela ideologia surgem na forma de influências externas à linguagem, as quais assumem o papel de coor- denação antes exercido pelo entendimento nos atos de fala. Há uma emasculação da força ilocucionária e a linguagem, assim debilitada, passa a preencher apenas as funções de informação que restam quando se retira do entendimento lingüístico a formação do consenso. O ator social, a pretexto de levantar pretensões de validade em relação ao mundo objetivo das coisas (verdade), ao mundo social das normas (correção) e ao mundo subjetivo dos afetos (sinceridade), desenvolve um discurso ideológico que acaba se legitiman- do na atitude passiva do interlocutor, incapaz de fazer a crítica. Resta saber, a esta altura, se o discurso judicial é meio de ação comuni- cativa ou de ação estratégica.
Habermas entende que o direito integra a esfera cultural, um compartimento do mundo vivido que está preservado da ameaça da esfera sistêmica. Neste aspecto, sua visão destoa do ponto de vista weberiano — que vê na dominação legal a estrutura modema do Estado e da empresa capitalista privada —, tanto quanto da análise desenvolvida pelas teorias sistêmico-funcionalistas. Habermas acredita que é possível estabelecer pretensões emancipatórias para os atores sociais na base da ação comunicativa, no que também se liberta da visão pessimista de Horkheimer. Aliás, desta perspectiva instrumental, desenvolvida ao início do presente capítulo, vinculada quase sempre a teorias jurídicas que se proclamam não-ideológicas, a exemplo do formalismo kelseniano, o processo judicial revelou-se campo fértil para a prática da violência simbólica. A ideologia tecnocrática também se faz presente na dogmática processual
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