História do brasil moderno ernesto geisel



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Qual teria sido o principal erro do Plano Cruzado?

Não tinha sustentação. O governo não podia sustentá-lo por muito tempo, não podia durar. Mas nesse problema de inflação, as causas são inúmeras. A inflação cresce quando o governo gasta mais do que arrecada e põe a maquininha para funcionar, fabrican- do dinheiro. Quando os impostos não dão para pagar o que se de- #



ve, o governo emite para custear as suas despesas, porque é fácil emitir. Aí a oferta de dinheiro passa a ser maior do que a de pro- dutos. Para se estabelecer o equilíbrio, eleva-se o preço dos produ- tos. Essa é a primeira causa, a mais simples. É claro que depois existem outros fatores que interferem e vão complicando, mas a origem é essa. Há uma falta de confiança. Nesse campo, os gover- nos sucessivos que tivemos, Sarney, Collor e agora Itamar, não go- zam da confiança pública. Itamar já teve quatro ministros da Fa- zenda. Quem é que pode ter confiança com essa instabilidade mi- nisterial?

Qual sua opinião sobre Fernando Collor? O que aconteceu com ele?

Era um incapaz. Andou vivendo muito no estrangeiro com o cunhado, embaixador Marcos Coimbra, e adquiriu outras concep- ções sobre o país. Desde garoto, em Brasília, Collor era superficial, tinha mania de grandeza. Já como rapazola, consta que foi chegado ao tóxico. É inteligente, falante, bem-apresentado, e enganou o povo todo. O que mais contribuiu para a sua vitória foi o número e a me- diocridade dos outros candidatos. Em segundo lugar foi o espanta- lho do Lula. Eu, que tinha um péssimo juízo dele, inclusive pelo go- verno muito ruim que fez em Alagoas, votei nele no segundo turno para não votar no Lula. No primeiro turno votei no Aureliano. Era um candidato que não tinha chance, mas votei nele porque tinha que votar.

Aí vem novamente o velho problema da democracia. Todo mundo vota no Brasil, o voto é obrigatório. Vota o analfabeto, vota o favelado, o flagelado do Nordeste, e votam os jovens de 16 anos que ainda não têm a cidadania. Qual é o discernimento que essa gente tem para escolher? Eles se deixam deslumbrar pela propagan- da. E a propaganda do Collor foi uma coisa muito séria, com muito dinheiro, muito avião para cá e para lá, muito comício, muito dis- curso de manga arregaçada. Ele ainda era moço, bem-apresentado, e isso impressiona. Muita gente é levada a votar pelas aparências. Muita mocinha de 16 anos que podia votar votou no Collor pela sua estampa. O voto consciente implica saber o que é um presidente da República no nosso regime presidencial, que atribuiçôes tem, o que pode fazer, o que tem que fazer, quais são suas responsabilidades. Mas essas são coisas que a massa dos eleitores não sabe, e, por is- so, na quase generalidade, ela vota pelas aparências. #

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O que o senhor acha da propaganda gratuita na televisão?

Não sou contrário, desde que limitada. Mas a maioria do povo não vê mais essa propaganda. Nem gosta, porque não pode ver a no- vela, não pode ver o futebol. E agora há a propaganda dos partidos. De vez em quando assisto, é lamentável. Por esses dias88 vi a propa- ganda do partido do Collor, dizendo que era preciso lavar o Brasil. O Collor nem tinha partido, fabricou um! Sua candidatura surgiu quando ele passeava na China com um grupinho de amigos. Alguém disse que ele devia ser candidato, e a coisa pegou. Ele embarcou nessa história.

Pelo queficou claro depois, houve quase que uma quadrilha to- mando conta do governo. Os empresários e outros que apoiaram a candidatura Collor não desconfiavam disso?

Um dos problemas que existem e que a gente tem que levar em conta é o poder do sol que nasce. Muitos procuram receber al- guns raios e se beneficiar do calor que dali se irradia. Collor du- rante bastante tempo teve apoio de toda essa gente, apesar das lou- curas que fez. O problema da Zélia: ele concentrou grande soma de poder na mão daquela senhora. Um verdadeiro absurdo! Ela não tinha experiência para o cargo! Collor lhe deu a gestão do Mi- nistério da Fazenda, do Ministério do Planejamento, do Ministério da Indústria e Comércio, fez dela uma superministra. Mas quem era ela? No Plano Cruzado, do Funaro, estava lá embaixo. Era uma economista que estava no quarto escalão. Nunca se destacou. Che- gou a ser professora da Universidade de São Paulo, mas isso não diz muito. Collor entregou todo o poder a ela, e daí saiu muita coi- sa errada, muita bobagem e, segundo dizem, muitos negócios parti- culares.

O governo Collor foi um verdadeiro desastre. Mas conseguiu enganar. O discurso de posse no Congresso veio com essa noção de modernidade, assunto de que já tratei aqui anteriormente. É cla- ro que se a gente puder ser moderno será uma grande coisa, mas vamos ver o que é o Brasil hoje, quais são as deficiências, e va- mos entender que vão ser necessários muitos anos para que o Bra-

88 Este trecho do depoimento foi concedido em 9 de março de 1994. #

sil seja um país moderno. Em matéria de automóveis, ele veio com a história de que os fabricados aqui eram "carroças". Isto é, depreciou a indústria nacional. O carro nacional é carroça por quê?Porque não anda a 200 ou 300 quilômetros por hora? Mas é um carro adaptado às condições das nossas estradas. A velocidade máxima permitida é de 80 quilômetros por hora! Para que querer um carro que ande a 200, se a estrada não comporta que eu ande a essa velocidade? Com isso ele resolveu abrir as portas e impor- tar tudo que era carro estrangeiro. Há muitos que estão felizes por- que podem andar de Mercedes, BMW não sei o quê. Será que o Brasil precisa disso? Depois, dizer que a nossa indústria de auto- móveis produz carroças é bobagem. Basta ver a quantidade de car- ros que são exportados. Collor sempre foi muito superficial, cheio de frases feitas, coisas que agradavam a certa categoria da nossa população. A elite que está lá no alto sempre gostou disso. Mas não conseguiu fazer nada de útil, não produziu nada. O que ele fez foi no sentido negativo. Era apresentável, na televisão empolga- va muita gente, falava com desembaraço. Foi uma ilusão e um de- sastre para o Brasil.

O discurso da modernidade incomodou muita gente, inclusive seto- res nacionalistas das Forças Armadas. Emfunção disso seria pos- sível pensar numa aproximação dos militares com o PT, que tam- bém é nacionalista?

Não sei. Não estou a par nem dos problemas do PT nem dos da área militar. Converso muito pouco hoje em dia, apenas alguns companheiros mais íntimos. Há dias saiu uma notícia na imprensa dizendo que o Lula estava prometendo dobrar o orçamento militar, o que se explicaria pelo fato de que um dos sérios problemas que as Forças Armadas têm hoje em dia é a restrição orçamentária, a penúria de recursos. Essa notícia, evidentemente, era para agradar, para ver se com isso ele teria o apoio da área militar. Mas o que acontece é que a área militar, creio que muito razoavelmente, já há bastante tempo está alheia a esses problemas. Há muito desconten- tamento, ninguém está satisfeito com o soldo, com os vencimentos, com afalta de recursos materiais - houve até um longo período em que não havia dinheiro nem para comida nos quartéis -, mas a área militar está quieta e não interfere. #



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Se Lula vier a ganhar a eleição deste ano de 1994, por exemplo, o senhor acha que não haverá problema militar?

Não. Mas aí as vivandeiras que rondam os quartéis, como di- zia o Castelo, virão insuflar a área militar. Os políticos, os indus- triais, o alto comércio etc. começarão a procurar os militares e a en- cher a cabeça deles para derrubar o governo.

Vários militares lembram que Jango não tinha um serviço de infor- mações eficiente, e por isso não foi informado sobre a conspiração que levou à sua deposição. Se Collor também fosse bem informa- do, não teria chegado ao impeachment?

Acho que não foi um problema de informação. E depois, ele não tinha informações porque não queria ter. Devia ter informações dos amigos, mas não tinha um serviço de informações organizado. Aquele incidente com o Ivan de Sousa Mendes aconteceu porque a au- diência estava marcada, o Collor compareceu após ter criticado vio- lentamente o governo ainda no aeroporto, quis ser recebido, e o Ivan não o recebeu.89 Aí ele saiu com desaforo e chamou o Ivan de "gene- raleco". Como o SNI era malvisto, quando assumiu a presidência re- solveu fazer a bobagem de acabar com o órgão. Não há governo que possa funcionar sem um serviço de informaçôes. O que os Estados Unidos têm? O que a Inglaterra tem? Todo mundo tem o seu serviço de informaçôes. Agora, o que é preciso fazer é evitar que o serviço de informações se deturpe e se ponha a serviço de determinadas pes- soas, de determinadas coisas que não são propriamente afeitas ao go- verno. Mas tem que haver serviço de informações.

Creio que o SNI deve ter tido muita coisa errada, mas o pro- blema não era acabar com o órgão: o problema era corrigir, o que é difícil e exige coragem, decisão, persistência e conhecimento. Era evi- tar que o órgão se deturpasse, se deformasse, se pusesse a serviço de outras causas. Mas todos os governos necessitam e todos sem- pre tiveram serviços de informações, ainda que informais. Getúlio ti- nha lá o seu serviço, que não era oficial, mas existia. Um industrial que dirige uma indústria tem que ter um serviço de informações vol-

89 O incidente entre o então governador de Alagoas, Fernando Collor, e o chefe do SNI, general Ivan de Sousa Mendes, ocorreu em fevereiro de 1988. #

tado para os problemas da sua empresa. Todos nós procuramos nos informar, saber o que ocorre. Dentro de um país como o Bra- sil, isso é uma necessidade crucial. Mas o que acontece é que os ser- viços geralmente se deformam. As pessoas o utilizam no seu interes- se próprio. O problema do Collor não foi falta de informaçôes. O problema era ele mesmo: ele, a família, a mulher, o entourage, os amigos. . .

Quais foram suas impressões sobre o impeachment de Collor?

Achei muito bom. Houve uma mobilização popular muito gran- de, no Rio, em São Paulo e em outros lugares, e as coisas foram num crescendo até chegar ao fim. Os inquéritos da polícia foram desvendando fatos cada vez mais escabrosos. A situação começou a se definir com o depoimento do motorista, que era quem levava os cheques. Aí a opinião pública começou a se formar. Um assunto que foi muito discutido, e que finalmente o Supremo acabou resol- vendo, foi a cassação dos direitos políticos do Collor depois de ele ter renunciado. No dia do julgamento, quando o advogado viu que não conseguiria nada, ele entregou a carta de renúncia, achando que com isso pararia o processo. Mas o Senado resolveu, com o be- neplácito do presidente do Supremo, continuar o processo e cassou os direitos políticos por oito anos. Depois ele entrou com recurso, mas foi mantida a decisão do Senado. Foi uma grande coisa e mui- to acertada.

O senhor até hoje é procurado pelos políticos. Muita gente o procu- rou quando da posse do presidente Itamar Franco?

Muita gente conversou comigo, e eu respondia que não tinha objeções ao Itamar, apesar de sua maneira de pensar ser diferente da nossa. Era um homem de esquerda, tinha uma série de posiçôes adotadas no Senado que agora, no governo, talvez não possa susten- tar, mesmo porque é muito diferente estar no Senado fazendo dis- curso e depois ir para o palácio do Planalto, sentar na poltrona e re- solver os problemas do Brasil. #

27 - Este país tem jeito?

Uma questão ímportante destes últimos temposfoi o plebiscito de 1993. O que o senhor pensa do parlamentarismo e do presidencía- lismo?

Sou presidencialista. O parlamentarismo é próprio de países mais desenvolvidos, mais avançados, de países pequenos, que vivem em um regime unitário, e não em um regime federativo como o nos- so. A França, por exemplo, é um país unitário. A Inglaterra, a Itália, a Espanha, também. Nós somos um país que adotou o modelo ameri- cano, federativo e presidencialista. O único país federativo que adotou o regime parlamentarista foi a Alemanha, mas lá o sistema eleitoral e a própria organização dos estados federados são muito diferentes dos nossos. Tivemos uma curta experiência de regime parlamentar na Re- pública e, antes disso, a experiência do Império. Em um sistema par- lamentar, a toda hora muda o governo. Vem o voto de desconfiança, e o governo cai. A instabilidade, a falta de continuidade administrativa são terríveis. Um país como a França suporta isso porque as bases estão feitas, está tudo organizado, não há nada mais por fazer. Mas e um país como o Brasil? Ter um gabinete durante dois meses, depois vir outro e durar três, quatro meses? Outro problema é a nossa for- mação, a nossa educação política. O nível dos nossos políticos. Há #

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uma boa coleção de elementos capazes, mas a grande massa dos de- putados deixa muito a desejar.

Em relação ao sistema eleitoral, o senhor é a favor do voto propor- cional ou do voto distrital?

Sou a favor do sistema misto. Acho que melhora a representa- ção, porque parte dos deputados, em vez de ser escolhida por todo o estado, é escolhida pelo distrito em que o candidato atua, vive, tem maiores vinculações. Ele aí é mais conhecido dos eleitores, que podem escolher melhor. No sistema proporcional o deputado é elei- to por todo o estado, e a maioria vota nele sem conhecer, sem sa- ber quem ele é. Creio que não se tenciona fazer um sistema distri- tal amplo, único, como já houve no Brasil, no Império e no começo da República, porque aí o problema seria mais complicado. Já te- mos a tradição do voto proporcional e, além disso, o voto distrital puro traria a quebra dos pequenos partidos.

Nosso problema maior é a proliferação de partidos. É um ab- surdo essa quantidade que está aí. São partidos que não têm consis- tência, com programas inteiramente irreais ou que funcionam apenas como um chamariz. Não há convicção em relação aos programas. Há partidos que estão aí apenas para fazer dinheiro vendendo legenda: a pessoa quer ser candidata a deputado, não consegue legenda, e então compra uma num desses partidos pequenos, para poder se candida- tar. Houve até o caso dos deputados cassados que receberam dinhei- ro para mudar de partido. Aí entra outro problema: o da fidelidade partidária, que, para mim, é fundamental. Se se é de um partido por convicção, tem-se que ser fiel a esse partido. Se o partido fecha ques- tão em torno de uma determinada proposta, o deputado é obrigado a votar com o partido. Não pode ser de um partido e querer ter o direi- to de ser um livre-pensador. Durante o período revolucionário, ainda no meu governo, havia fidelidade partidária.

Em sua opinião deve haver um mínimo de votos para que um par- tido consiga se fazer representar?

Ah, sim: o partido que não conseguisse um determinado nú- mero de votos em uma ou duas eleiçôes devia ser extinto. Mas deve haver ainda muito mais restrições para a Justiça Eleitoral aprovar um partido. Nas condições mínimas para a constituição de um parti- #

do, para que ele tenha vida legal, é preciso haver maiores exigên- cias. E depois, no curso das eleições, mesmo que seja um partido aprovado, legalizado, ele deve poder ser eliminado se não conseguir um determinado resultado.

Como o senhor vê a discussão atual sobre a desestatização?

A desestatização está em plena moda. É praticada em vários países, como a Inglaterra, um pouco a França, o México, a Argentina etc., quase radicalmente. Alguns podem e talvez devam desfazer-se de suas empresas estatais, como a Inglaterra, que tem muitos capi- tais, adquiridos ao longo de séculos de domínio universal. Outros, porém, como o México, não tendo esses recursos, se valem da pode- rosa interferência de seu vizinho, os Estados Unidos. A Argentina vende o patrimônio formado pelas suas empresas, inclusive a de pe- tróleo, a fim de obter recursos financeiros para o seu minguado erá- rio. E quanto ao Brasil? Aqui também resolveram privatizar, a exem- plo dos outros, e possivelmente há muita coisa que pode e deve ser privatizada. Contudo, o processo não pode ser generalizado, executa- do integralmente, mas deve levar em conta o que pode e deve ser vendido e, principalmente, o que não deve. É preciso ver também quais os recursos efetivamente disponíveis para o custeio da privati- zação. São poucas as disponibilidades, as quais, além disso, encon- tram normalmente no mercado financeiro aplicações mais rentáveis. Essa situação conduziu o governo, empenhado em levar a termo a privatização, a aceitar, no pagamento das aquisiçôes, títulos da dívi- da pública, inclusive da reforma agrária, de longo prazo e baixo ren- dimento, que eram adquiridos de intermediários espertos com gran- de deságio e aplicados no leilão pelo seu valor nominal. O governo lançou mão ainda de financiamentos a juros relativamente reduzidos para o eventual complemento do custeio da aquisição. Há ainda a considerar o prejuízo de acionistas privados de empresas de capital misto, como a Petrobras, a qual tem grande parte de suas subsidiá- rias vendidas nas condições fixadas.

Qual sua opinião sobre a aposentadoria: deve ser por idade ou tempo de serviço?

Minha opinião é que tem que ser por idade. A pessoa começa a trabalhar aos 14, 15 anos, contribui para a Previdência, e quando #



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atinge os quarenta e poucos se aposenta e vai trabalhar noutro em- prego. A aposentadoria aos 40 anos é um absurdo, a não ser que se trate de um inválido. Acho que devia haver uma idade mínima para a aposentadoria: 60, 65 anos. E isso para todo mundo, civis e mili- tares. O militar conta tempo desde a Escola Militar, porque o cadete já é considerado soldado. Então, se quiser, ele se aposenta com qua- renta e poucos anos. Mas aí deixa de fazer carreira.

O sindicato deve ser único ou plural?

Não vejo por que deva ser único. As áreas, os lugares, são di- ferentes. Assim como não se é obrigado a ter um partido único, pes- soas com idéias diferentes devem poder fundar um outro sindicato. Preferem, contudo, ter o sindicato único, para ter mais força, maior poder de argumentação junto ao governo. Num confronto, num deba- te com o governo, o sindicato único tem maior representatividade.

Qual deve ser hoje o papel das Forças Armadas?

A missão das Forças Armadas é a que está na Constituição. Não há nada mais fora disso. No entanto, essa missão se desvirtuou com uma série de outras atribuiçôes. Houve agora, por exemplo, um acordo do Exército com a prefeitura do Rio de Janeiro para for- mar a Guarda Municipal. Sou contra isso. O Exército não tem nada com isso.

Alguns militares acham que seria pertinente as Forças Armadas colaborarem no combate ao tráfico, na questão social...

Isso são atividades emergenciais que o Exército pode fazer, sem prejuízo da sua função principal, e não em caráter obrigatório. Às vezes, no quartel, há interesse pelas crianças de rua, procura-se orientá-las, discipliná-las, alimentá-las. Isso não é papel do Exército. Pode ser feito ocasionalmente, mas não é sua atribuição. Hoje em dia contudo, dada a situação do país, todo mundo deve estar aberto para cooperar.

Uma outra função do Exército que se verifica na prática, embo- ra não esteja escrito em lugar algum, é a de instrumento da coesão nacional. O Exército serve para assegurar a integridade da nação. Num regime federativo, como nós temos, a tendência dos estados é ter cada vez mais autonomia. Eles gostam da União, do governo fede- #

ral, para sugar recursos, mas afora isso querem ter o máximo de au- tonomia, quase independência - ainda recentemente o Paraná e o Rio Grande do Sul quiseram separar-se da União e fazer a Repúbli- ca dos Pampas. O Exército é um fator de coesão porque o oficial, que é originário de uma região, de um determinado estado, perde a sua característica regional, já que durante a carreira serve em dife- rentes lugares e aprende a conhecer o país. Talvez o oficial do Exérci- to seja quem melhor conhece este país. Hoje ele está no Rio Grande, amanhã está no Nordeste, depois na Amazônia, depois vai para o Ma- to Grosso, depois vem para o Rio. Quer dizer, ao longo da vida vai carregando a mala nas costas, apesar do problema da família, da educação dos filhos. Na realidade, ele passa a ser um cidadão brasi- leiro. Conserva um vínculo familiar com o seu estado de origem, mas não mais tão forte como primitivamente.

Como o senhor vê a questão da defesa da Amazônia e de suas reservas naturais?

Vai ser muito difícil para o Brasil. É uma região distante, de- sabitada, atrasada, com grandes recursos naturais, mas sem agricul- tura. Será um problema complexo que o Brasil irá enfrentar. Toma- ra que eu esteja enganado, mas acho que o futuro brasileiro ali se- rá muito difícil. Recordemos um pouco de história - dizem que a história é a mestra da vida. Vejamos, por exemplo, o problema do Acre. Na época do rush da borracha, lá por mil novecentos e pou- co, a Amazônia contava com muitos retirantes do flagelo da seca, principalmente cearenses, que lá chegavam atraídos por esse produ- to. Foram entrando, invadiram terras da Bolívia, e houve combates com as forças bolivianas, que não conseguiram evitar a invasão dos brasileiros comandados pelo gaúcho Plácido de Castro. A Bolívia, sem maiores forças, resolveu conceder o território do Acre a um sindicato americano que viria explorar a borracha. Assim, a Bolívia traria o americano para o interior da Amazônia. É evidente que, se o sindicato americano conseguisse entrar no Acre e explorá-lo, os brasileiros não teriam condições de continuar na sua tentativa de permanecer naquele território, isso porque, atrás do sindicato ame- ricano estaria certamente o governo dos Estados Unidos, protegen- do e defendendo os interesses dos cidadãos americanos. O que nos salvou foi a sabedoria de Rio Branco, que se entendeu com a Bolí- via e comprou o Acre. Deu dois milhões e meio de libras para a Bo- #



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lívia, e o Acre se tornou brasileiro. E o sindicato americano teve que ir embora. Foi a primeira incursão americana dentro da Amazô- nia. Acho que a Bolívia foi esperta, inteligente. Foi buscar o irmão mais forte para tomar conta. Se não fosse a ação de Rio Branco. possivelmente os americanos estariam lá, a exemplo da conquista parcial do território mexicano.

O que o senhor acha da criação do Ministério da Defesa?

É um bom exemplo de outros países. O ideal seria podermos organizar o nosso, mas há reações. Quem mais reagia era a Marinha - não sei como ela está pensando presentemente. A Marinha reagia porque achava que, diante das condições existentes, da diferença na quantidade dos efetivos, o Exército teria a supremacia e ela ficaria relegada ao segundo plano. Mas também há problemas históricos. No tempo do Império, o Exército era uma instituição miserável, des- favorecida, que pouco valia. O soldado do Exército era recrutado no meio dos malandros da cidade, das favelas, ao passo que a Marinha era a força armada nobre. Os netos do imperador iam para a Mari- nha. Com a República, veio o Floriano, que em seguida dominou a Revolta da Armada. Aí a Marinha se acabou e o Exército cresceu. E desde então criou-se um complexo. Não sei, atualmente, que valor is- so tem. Contudo, pode ser um fator contra a criação do Ministério da Defesa. Mas sou de opinião que se deve unificar as Forças Arma- das num único ministério.

Qual seria a vantagem?

Primeiro, se asseguraria uma maior cooperação entre as For- ças Armadas. Hoje em dia a guerra não é do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, isoladamente. A cooperação e a coordenação entre essas forças numa guerra é essencial, exigindo maior entrosamento entre elas. Além disso, poderia ser muito mais econômico. Há uma série de órgãos em cada um desses ministérios que poderiam ser fundidos. Teríamos uma solução menos dispendiosa, mais econômi- ca. E. do ponto de vista de emprego das Forças Armadas, em vez de haver tendências para o individualismo, haveria cooperação no planejamento. Contudo, não sei se a situação atual está suficiente- mente madura para isso. #


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