. Acesso em: 28 maio 2016.
2º momento — A mesa-redonda
Para pensarmos de maneira mais aprofundada sobre as questões discutidas anteriormente, vamos realizar uma mesa-redonda a respeito do tema: O que pode ser feito para que melhorem os níveis de leitura no Brasil?
O gênero oral mesa-redonda
Mesa-redonda é um tipo de discussão ou conferência em que todos os participantes conhecem bem o assunto tratado. Não há, necessariamente, divergência de opiniões: o objetivo do participante não é, como no debate, convencer os demais participantes e o público de seu ponto de vista, mas, sim, proporcionar um aprofundamento do tema, permitir que o público conheça vários ângulos das questões abordadas. O número de participantes pode variar; porém, em geral, não passa de quatro ou cinco.
Da mesa-redonda que propomos, seria interessante que participassem um ou dois professores que estejam envolvidos com a questão da leitura e possam apresentar suas vivências e opiniões. Também podem ser convidadas pessoas de fora da escola que, por sua atuação profissional, tenham condições de contribuir para a discussão: um escritor, um pedagogo, um psicólogo, um jornalista, etc. Os demais participantes serão alunos.
É importante frisar que os alunos que queiram participar da mesa-redonda como convidados, e não apenas como público, precisarão apresentar uma argumentação sobre o tema discutido. Contudo, os alunos não devem sentir-se intimidados pela presença de professores e especialistas. Eles estarão mostrando o ponto de vista que têm sobre o tema, e isso é muito importante no contexto dessa mesa-redonda, tanto no que diz respeito a compartilhar o que pensam sobre leitura quanto pelo fato de eles, os jovens, serem o foco da discussão.
Organização
O mediador (necessariamente um aluno) ficará responsável por apresentar os participantes e estimular a conversa fazendo perguntas a cada um. Não é necessário estipular tempo para cada fala: a mesa-redonda permite a troca de ideias como em uma conversa.
A audiência (o restante da classe) tem o direito de, no final, fazer perguntas dirigidas a um dos participantes da mesa em particular ou a qualquer um deles. A pergunta deve ser escrita em um papel e entregue ao mediador, que a redirecionará à mesa. O mediador tem ainda a função de encerrar a mesa com uma pequena fala resumindo os principais pontos levantados na discussão e agradecendo aos participantes e à plateia.
Proposta de produção de texto dissertativo-argumentativo
Considere o conteúdo das discussões da mesa-redonda, as estatísticas apresentadas nos textos sobre o tema da leitura e escreva um texto dissertativo-argumentativo destacando:
▸ A importância da leitura para a formação humanística e cidadã de um povo.
▸ As razões pelas quais, provavelmente, uma grande parcela da população ainda não é leitora.
▸ Uma proposta de solução para gerar o aumento do número de leitores no Brasil.
Antes de compartilhar suas ideias com os colegas, verifique se:
▸ seu texto tem um título e este está condizente com o desenvolvimento;
▸ o conteúdo do texto respeita a proposta;
▸ os parágrafos estão relacionados entre si, e o texto como um todo está coerente;
▸ o texto foi revisado e está escrito na variedade-padrão da língua;
▸ o texto apresenta uma proposta de solução para o problema apontado.
Guarde seu texto para compor a antologia a ser montada no fim do ano.
Aproveite para...
... ler
Companhia das Letras/Reprodução
Antes de nascer o mundo, de Mia Couto, editora Companhia das Letras.
Jesusalém abriga cinco personagens, Silvestre e seus dois filhos, Mwanito e Ntunzi, o Tio Aproximado e Zacaria, que se distanciaram dos grandes centros urbanos para esquecer o passado.
O barão nas árvores, de Italo Calvino, editora Companhia das Letras.
Cosme Chuvasco de Rondó revolta-se contra seus pais e resolve viver sobre as árvores. De lá, ele não se exila do mundo; ao contrário, apenas toma o distanciamento necessário para observá-lo melhor. Acervo PNBE.
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, editora Salamandra.
Ao romper com a família, Robinson Crusoé decide percorrer o mundo. Naufraga e luta para sobreviver em uma ilha deserta enfrentando a loucura e o isolamento. Nessa situação, encontra um nativo, o qual batiza de Sexta-feira. Nasce entre eles um laço profundo de amizade e respeito. Acervo PNBE.
... assistir a
O leopardo, de Luchino Visconti (França/Itália, 1963).
Adaptação do romance autobiográfico de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa (1896-1957), retrata a decadência da nobreza siciliana após a unificação da Itália (1870). Considerado uma obra-prima do cinema.
... acessar
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp
Site que disponibiliza, entre outros conteúdos, romances clássicos da literatura brasileira em versão integral e com acesso gratuito. Acesso em: 12 maio 2016.
... ouvir
CD Transfiguração, do Cordel do Fogo Encantado, REC Beat, 2006.
Nesse álbum da banda pernambucana encontra-se a gravação de “Sobre as folhas (O barão nas árvores)”, música do Cordel inspirada no romance O barão nas árvores, de Italo Calvino.
Literatura
Tempo e memória
Não escreva neste livro.
Interdisciplinaridade com: Arte, Geografia, História, Sociologia.
Para começar
O tempo é um conceito bastante paradoxal: está entre os conceitos mais simples e os mais complexos com que a humanidade tem de lidar, desde sempre. Veja o que escreveu Santo Agostinho (354-430), um dos maiores pensadores da História:
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina. São Paulo:
Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores).
Neste capítulo, você vai poder ler textos que abordam diferentes aspectos desse conceito.
1. Agora leia a letra de canção a seguir, que foi composta pelo cantor e compositor baiano Caetano Veloso (1942-), em 1979.
Oração ao tempo
Caetano Veloso
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo, tempo, tempo, tempo
Quando o tempo for propício
Tempo, tempo, tempo, tempo
De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo, tempo, tempo, tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo, tempo, tempo, tempo
O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, tempo, tempo, tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Portanto, peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo, tempo, tempo, tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Luciano Tasso/Arquivo da editora
VELOSO, Caetano. Cinema transcendental. Rio de Janeiro: Universal Music, 2006. 1 CD. Faixa 2.
a) A quem se dirige o eu lírico?
b) Nas três primeiras estrofes, o eu lírico faz elogios a seu interlocutor. De que ele o chama? Por que o elogia?
c) Na quinta estrofe, o eu lírico expressa um pedido a seu interlocutor. Qual?
d) Na sétima estrofe, o eu lírico propõe algo a seu interlocutor. O quê?
e) Sugira uma interpretação do verso “Não serei nem terás sido”, na oitava estrofe.
f) Na nona estrofe, o eu lírico abre uma possibilidade em relação ao que ocorrerá no futuro entre o tempo e o eu lírico. Que possibilidade é essa?
g) Na última estrofe, o eu lírico reitera seu pedido — “peço-te aquilo” — e oferece algo a seu interlocutor. O quê?
2. Por que a canção se chama “Oração ao tempo”? Explique.
Prof. ajude os alunos a perceber que a incessante repetição da palavra tempo (que pode ser classificada como uma anáfora, figura de linguagem que consiste em repetir uma ou mais palavras, frases ou versos) lembra algumas orações religiosas.
3. Converse com os colegas e com o professor: o que vocês acham da visão do eu lírico sobre o tempo?
Comparando textos
Texto 1
O tempo e a memória são temas universais: todos nós, seres humanos, somos marcados pelos traços que pessoas e acontecimentos vão deixando em nossos pensamentos, em nossas emoções e em nossa História. Nesse sentido, a literatura, como não poderia deixar de ser, está repleta de exemplos, visto que grande parte dos autores registra, de alguma forma, os caminhos do tempo e da memória.
O texto que você vai ler a seguir aborda esse tema. Seu autor é José Saramago, um dos mais renomados escritores portugueses dos séculos XX e XXI. Trata-se de uma crônica, gênero híbrido no qual literatura e jornalismo se mesclam. “E o meu avô, também” faz parte de um conjunto de crônicas que foram publicadas originalmente no jornal lisboeta A Capital, entre 1968 e 1969 — ou seja, quando Saramago tinha por volta de 45 anos. Sairia pela primeira vez em livro em 1971.
E o meu avô, também
José Saramago
Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo1 se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas — e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.
Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nestas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.
E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira — ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogação das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.
©dreamstime.com/mimohe
SARAMAGO, José. Deste mundo e do outro. Lisboa: Caminho, 1998.
Samuel Casal/Arquivo da editora
1 Mantivemos a grafia original dos dois primeiros textos desta seção.
carreiro: caminho.
cajado: vara empregada para tanger o rebanho.
rasar: tocar de leve, roçar.
enxó: ferramenta de talhar madeira.
esfinge: personagem da mitologia grega que propunha enigmas aos viajantes; pessoa calada, misteriosa, enigmática.
abonatório: avalizado, declarado autêntico.
cabedal: patrimônio (material ou imaterial).
lobeiro: diz-se de manta listrada e de cores variadas.
Jerónimo: primeiro nome do avô de José Saramago.
Estrada de Santiago
Desde os tempos medievais, peregrinos partem de várias partes do mundo rumo à cidade de Santiago de Compostela, na Espanha, para visitar as relíquias do apóstolo São Tiago Maior, também conhecido como Tiago, filho de Zebedeu (?-44 d.C.), localizadas na catedral da cidade espanhola. Os andarilhos caminham por diversas rotas, algumas traçadas sobre estradas da Roma antiga, saindo da França e de Portugal (isso dependerá de seu ponto de partida). Em 1993, os chamados Caminhos ou Estradas de Santiago foram declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
Vista através do rio Cávado, cidade de Barcelos, Portugal. Essa é uma das cidades que fazem parte do caminho português até Santiago de Compostela.
|
O autor
José de Sousa Saramago nasceu em Azinhaga, uma aldeia portuguesa da província do Ribatejo, em 1922, e morreu na Espanha em 2010, aos 87 anos de idade. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1998), retratou as histórias dos desconhecidos, dos abandonados, dos humilhados. Para o escritor, era preciso rever a História do ponto de vista daqueles que lutaram, que se sacrificaram por ela e que, portanto, fizeram-na de fato. Na época em que escreveu “E o meu avô, também”, trabalhava como tradutor, crítico literário e escrevia crônicas para o jornal lisboeta A Capital.
Fotoarena/Album
1. Nessa crônica, a natureza tem papel essencial na relação do escritor com o avô. Que elementos da natureza afloram as lembranças do autor? Explique como isso se dá apontando passagens do texto.
2. Ao traçar o retrato de seu avô, o escritor estabelece um contraste entre sua sabedoria e ignorância, entre seu conhecimento do mundo e sua falta de reconhecimento social.
a) Releia o trecho abaixo e encontre a palavra que explicita esse contraste. Depois, copie no caderno os termos que contrastam.
“Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam.”
b) Para realçar a sabedoria do avô, o escritor refere-se a si mesmo de modo irônico. Em que trecho isso se dá? Copie-o no caderno e explique de que modo o autor constrói essa autoironia.
c) Em certo trecho, o escritor diz que seu avô poderia ser “um Einstein”. Qual o significado dessa referência? E o que teria impedido seu avô de ser “um Einstein”?
3. Como você já sabe, crônicas são textos em que literatura e jornalismo se misturam. Aponte, nesse texto de Saramago, passagens ou elementos que permitam classificá-lo como crônica.
Texto 2
As memórias também são tema do conto a seguir, que se passa na década de 1980 numa Luanda (capital de Angola, na África) pós-independência, que sofria com a guerra civil (1975-2002). O personagem-narrador é um menino de classe média que rememora um momento importante de sua vida. Seu nome é Ndalu, não por acaso o mesmo do autor do texto (veja sua biografia) e, também, um anagrama de Luanda.
Palavras para o velho abacateiro
Ondjaki
Antigamente as pessoas eram pessoas de chegar. Não sabíamos fazer despedidas.
palavras da avó Catarina
Quando chegamos da praia, o céu estava à espera que as pessoas todas se recolhessem para poder ordenar às nuvens que começassem a largar uma grande chuva molhada, era até raro em Luanda naquele tempo fazer uma ventania daquelas, os baldes no quintal começaram a voar à toa, os gatos nas chapas de zinco não sabiam bem onde era o buraco de se esconderem, os guardas da casa ao lado vieram a correr buscar as akás que estavam encostadas no muro e o abacateiro estremeceu como se fosse a última vez que eu ia olhar para ele e pensar que se mexia para me dizer certos segredos, não sei o que o abacateiro me disse, não soube mais entender e pode ter sido nesse momento que no corpo de criança um adulto começou a querer aparecer, não sei, há coisas que é preciso perguntar aos galhos de um abacateiro velho, cumprimentei o guarda enquanto corria no quintal a segurar os baldes que queriam levantar voo, fui fechar a porta da casa de banho e da despensa, a bomba de água disparou e assustei-me, o vento estava a pôr-me nervoso, olhei a mangueira com mangas verdes, olhei os galhos secos do abacateiro, reparei no encarnado vivo das romãs bem madurinhas ali perto do mamoeiro, olhei as uvas na videira e, enquanto olhava o céu escuro, ainda pensei que era tão estranho aquelas uvas terem um sabor tão nítido a manga adocicada, fui fechar a portinhola da casota onde ficavam as botijas de gás e ainda recolhi duas toalhas que estavam na corda, voltei a entrar na cozinha, com o corpo a pingar de chuva e suor fresco, a t-shirt estava tão molhada que voltei lá fora para deixá-la já pendurada na corda, parei um pouco a deixar a chuva cair sobre a cabeça, fechando os olhos, escutando o ruído que ela fazia cá fora no mundo e dentro de mim também, queria ver quantos pensamentos eu podia inventar — e pensar — ao mesmo tempo que ouvia aquele ruído tipo de música de uma orquestra bêbada, ri, ri sozinho quando abri os olhos e vi a cadeira verde onde às vezes, mas raramente, também o camarada António gostava de ensaiar um sono distraído, caiu a carga de água que o céu tinha prometido pela cor e pelo vento soprado, enquanto a ventania diminuía de repente, a chuva caía como um embrulho gigante de redes de pesca que tivesse escorregado do armário de um pescador que estava lá muito em cima, nas alturas, era tanta água que mesmo ver a casa do Jika estava difícil, o mundo parecia um deserto molhado naquela tarde, ainda conseguia ouvir, mas mal, os passos dos guardas a correr e, entre tantas cascatas de água com a poeira da videira, do outro lado, tipo filme de western, um gato vesgo ficou parado em cima do outro telheiro a olhar para mim — seria o gato vesgo que eu tinha acertado no olho com o chumbo da pressão de ar? —, tive um pouco de medo, lá de dentro, a qualquer momento, a voz da minha mãe podia vir me perguntar se eu era maluco de estar ali com aquela chuva toda a pedir mesmo para ter uma crise de asma complicada, ali fora o gato calmo tinha ficado parado a olhar para mim, olhava mais com o olho vesgo que com o olho que via bem, perto de mim estava um ferro abandonado das obras do vizinho, sempre desconfiei dos gatos calmos, não me mexi, ele sim, devagarinho, saltou até perto das raízes da mangueira, parou de novo, foi a andar muito devagar, parecia que para ele não chovia e fazia um sol que lhe causava preguiça de partir, não me mexi, as mãos estavam na corda, como se eu estivesse preso com as molas de estender a roupa, a água caiu mais forte e de tanto não ver nada tive medo que o gato voltasse às escondidas e me atacasse, decidi entrar em casa, assustei-me com a voz da minha mãe — “o pai e eu estivemos a falar sobre aquele assunto” —, o meu corpo todo molhado, pensei que a minha mãe ia me ralhar de eu estar a trazer a chuva para dentro de casa, espalhando as gotas do meu corpo pelo chão limpo da cozinha, a mesma cozinha antiga que todos nós dizíamos a rir que era do camarada António, a minha mãe tinha os olhos molhados também e um grande silêncio invadiu a casa escolhendo esse espaço entre nós para ficar, eu olhava o chão pingado como se ele fosse muito mais distante, ouvia cada gota cair no chão e ao mesmo tempo pensei que não devia prestar atenção àquilo, pois outra coisa mais importante estava prestes a acontecer — “tu há tanto tempo que falavas nisso, nós estivemos a falar” —, a minha cabeça viajava pelo corredor escuro porque fazia esse domingo cinzento de chuva e ninguém tinha ainda acendido as luzes, a minha cabeça deslocava--se devagarinho e subia as escadas espreitando primeiro a sala onde a minha irmã mais nova tinha acabado de adormecer com o corpo todo cansado da praia e a pele cheia do sal do mar, onde tínhamos passado quase todos os sábados e domingos da nossa infância, eu subia as escadas sem fazer barulho, o meu pai podia ter decidido dormir um pouco e só acordar mais tarde para começar com um café na cozinha e ir ver se na televisão as equipas nacionais estavam a jogar futebol, o corredor lá em cima era um mar pesado de silêncios e isto não é poesia falada, havia ali um silêncio que pesava se uma pessoa se mexesse em qualquer direção, parei, quieto, a escutar a tarde que chovia lá fora, os ecos do comportamento das trepadeiras e das árvores enormes dos vizinhos, podia quase desenhar essas árvores sem olhar para elas, a mais cambuta do lado esquerdo, na casa da tia Mambo, devia ser um abacateiro e era maior que o nosso, tinha folhas gordas e um cheiro sempre poeirento mesmo que chovesse, e do lado direito, na casa da tia Iracema, havia uma árvore que imitava ou era mesmo um pinheiro muito alto e ligeiramente torto onde os pássaros — não sei por quê — gostavam de fazer voo rasante quando traziam minhocas na boca para dar aos filhos que tinham acabado de nascer e ficavam no telhado da tia Iracema a fazer barulho, parei, quieto, a escutar as trepadeiras, as árvores, uma buzina, algumas vozes, o cão do Bruno a ladrar tão longe e o barulho da caneta da minha irmã mais velha a escrever os pensamentos dela de domingo à tarde quando chove em Luanda, o que não se ouvia era o gritinho dos filhos desses pássaros que eu não disse mas são andorinhas, eles deviam estar a tremer de frio e de medo, todo mundo sabe, as andorinhas são como os gatos, não gostam nada da chuva, se calhar é por causa do barulho dos trovões, não sei — “filho, assim a pingar ainda te constipas”—, a porta do meu quarto estava aberta e uma luz nenhuma saía dele entrando no corredor a chamar-me, o mundo cinzento espreitava pela minha janela, entendi que havia uma nesga aberta nos vidros e, por ali, todas as vozes da tarde, da chuva, da trepadeira, das árvores, entravam pelo meu quarto para me dar sinais estranhos que o meu corpo não sabia aceitar, nem a minha cabeça, uma vontade de lágrimas me visitou, cocei a pele da bochecha que era um gesto antigo para falar com as minhas vozes de dentro, pingava menos o meu corpo, o calção molhado deixei junto à porta, entrei no meu quarto de tão poucos anos, fazia-me confusão entender por quê que eu vivia aquele quarto como um espaço antigo, como se eu fosse uma pessoa também de antigamente, e não era — via-se no espelho o meu corpo magro e a pele toda esticadinha a contornar os dedos da mão, os lábios desenhados quando eu os olhava sem compreender as curvas deles, os olhos que eram mais difíceis de olhar porque me traziam aos olhos essa chuva de eles ficarem encarnados — “nós pensamos que, se é realmente o que tu queres, podes ir estudar para outro país” —, pensei que lá nesse país teria outro quarto, mas não este, o antigo, o dos cheiros e das roupas e das músicas e dos livros e das escritas tristes e secretas, da mala com os livros do Astérix, ou A náusea, ou o Cem anos de solidão, ou os “gracilianos” como eu lhes chamava, ou a camisa amarela escura com manchas pretas e acastanhadas que o meu pai trouxe de Portugal e, desde que a vi, soube que amava esse tecido de acalmar os olhos que às vezes choravam em frente ao espelho da incompreensão, porque o corpo mudava, a voz mudava, as mãos no corpo mudavam, era visível que eu preferia acordar mais tarde que acordar mais cedo, era visível, para mim, que ouvia barulhos e sentia cheiros que não podia dividir com ninguém, e a avó Agnette continuava a partilhar as noites comigo, contando, inventando, alterando as estórias todas, as de antigamente, as do presente e as outras, como se o tempo fosse o saco de ar com bolinhas que ela gostava de rebentar, como se, às 2h da manhã entre risos de cumplicidade, olhares de fascínio que acendiam a madrugada, ternuras faladas como se fossem verdades de ofertar — ela me dissesse, devagarinho, com a voz convicta e os factos arrumados caoticamente, que o futuro não era uma coisa invisível que gostava de ficar muito à frente de nós mas antes — ela dizia como frase de adormecimento mútuo —, antes um lugar aberto, uma varanda, talvez uma canoa onde é preciso enchermos cada pedaço de espaço com o riso do presente e todas, todas as aprendizagens do passado, que alguns também chamam de antigamente — “assim a pingar, ainda te constipas” —, a minha mãe disse com chuva nos olhos bem encarnados, o corpo dela encolhido a dar marcha atrás na cozinha, no trajeto que ela tinha feito para vir devagarinho falar comigo, sem me ralhar por eu estar a molhar a cozinha, sem me falar da asma e dos brônquios, sem quase olhar para mim, eu também sem quase saber como olhar para ela, como dizer — a ela e a mim — que essa viagem, essa partida de ir embora, de repente me chegava fora do tempo, num terreno que ia muito além da dor e das lágrimas, num lugar que nenhum escrito meu podia ter conseguido explicar nem nenhuma lágrima conseguiria apagar, a minha mãe retirava devagar o corpo da cozinha, fiquei com os olhos postos nas gotas tombadas no chão, sem poder saber, nunca mais, o que era gota o que era lágrima, como se eu fosse um cego e naquele momento todos os cheiros e todas as dores da infância me pesassem no corpo, e isso estava bem, era normal, mas um peso me fechou os lábios e eu não soube o que dizer à minha mãe, talvez as frases dela trouxessem pedido de resposta, talvez se eu tivesse falado nesse tempo fora do meu corpo ela me tivesse dito, ou mostrado com os olhos, que aquele era, de qualquer modo, o tempo deles, dos meus pais, aí talvez os meus lábios dissessem que esse tempo de sabermos o momento de partir tinha acontecido fora do meu próprio tempo, e que nos últimos anos eu havia estado perdido, triste e confuso, num espaço tão grande que afinal eram apenas duas cadeiras de tecido encarnado, uma secretária, o armário embutido, o sofá-cama encarnado que eu mesmo tinha escolhido e usado essa palavra, “encarnado”, e riram porque era uma palavra de antigamente na boca de uma criança, esse espaço, com esse sofá-cama, com esse colchão fininho, com essas molas fracas, onde eu dormi tanto tempo com a avó Agnette, onde ela me ensinou madrugadas e deu todas as estórias e o desdobrar de todos os tempos que quis dar, esse espaço enorme assim tão pequenino era apenas um quarto, com a enorme janela virada para a trepadeira, que estava perto da poeira dela, que estava perto das flores, que estava perto da botija de gás vazia, que estava perto do contador de água, que estava perto da relva, que estava perto do cacto, que estava perto dos caracóis, que estavam perto das lesmas, que estavam perto da baba, que estava perto do portão pequeno, que estava perto da caixa de correio branca sem cartas, que estava perto da rua, que estava perto de mim — “se tu queres ir para outro lugar, nós também achamos que é melhor”.
Deixei os braços pousarem na madeira inchada e úmida, abri um pouco a janela a pensar que isso de olhar a chuva de frente podia abrandar o ritmo dela, ouvi lá embaixo, na varanda, os passos da avó Agnette que se ia sentar na cadeira da varanda a apanhar fresco, senti que despedir-me da minha casa era despedir-me dos meus pais, das minhas irmãs, da avó e era despedir-me de todos os outros: os da minha rua, senti que rua não era um conjunto de casas mas uma multidão de abraços, a minha rua, que sempre se chamou Fernão Mendes Pinto, nesse dia ficou espremida numa só palavra que quase me doía na boca se eu falasse com palavras de dizer: infância.
A chuva parou. O mais difícil era saber parar as lágrimas.
O mundo tinha aquele cheiro da terra depois de chover e também o terrível cheiro das despedidas. Não gosto de despedidas porque elas têm esse cheiro de amizades que se transformam em recordações molhadas com bué de lágrimas. Não gosto de despedidas porque elas chegam dentro de mim como se fossem fantasmas mujimbeiros que dizem segredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido de criança.
Desci. Sentei-me perto, muito perto da avó Agnette.
Ficamos a olhar o verde do jardim, as gotas a evaporarem, as lesmas a prepararem os corpos para novas caminhadas. O recomeçar das coisas.
— Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó.
— Vão para casa, filho.
— Tantas vezes de um lado para o outro?
— Uma casa está em muitos lugares — ela respirou devagar, me abraçou. — É uma coisa que se encontra.
ONDJAKI. Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007. p. 137-143.
Luciano Tasso/Arquivo da editora
Luciano Tasso/Arquivo da editora
anagrama: permutação de letras em uma palavra ou frase formando outra palavra ou frase.
aká: modo como os angolanos se referiam ao fuzil soviético AK-47.
casa de banho: banheiro.
casota: pequena construção, muitas vezes destinada a abrigar cães.
t-shirt: camiseta.
camarada: forma de tratamento empregada na antiga União Soviética e adotada em alguns países alinhados a esse país.
western: gênero de filmes que retratam a chamada “conquista do Oeste” nos Estados Unidos, no final do século XIX e princípio do século XX; faroeste.
mola: prendedor de roupa.
equipa: time.
cambuta: baixo, pequeno.
se calhar: expressão bastante usada em Portugal e em outros países de língua portuguesa, tem o sentido de talvez ou de provavelmente.
constipar-se: ficar resfriado ou gripado.
nesga: fenda.
facto: nesse contexto, fato, acontecimento.
dar marcha atrás: dar marcha a ré, andar para trás.
secretária: mesa onde se escreve e onde se guardam documentos importantes.
baba: gosma segregada por caracóis e lesmas.
fresco: brisa amena.
bué: muito, bastante.
mujimbeiro: fofoqueiro.
Eleutério Sanches/Coleção Particular
Eleutério Sanches (1935-). Alquimia da árvore, 1991. Óleo têmpera sem tela.
O elemento central da obra é um imbondeiro (também conhecido como baobá), árvore mítica de Angola e símbolo desse país. Note como o imbondeiro, nu e retorcido, transborda a tela e se impõe, cromaticamente, sobre o chão, significando resistência. Alguns de seus galhos estão quebrados, o que pode simbolizar, ao mesmo tempo, destruição e renascimento.
|
O autor
O escritor Ondjaki, pseudônimo de Ndalu de Almeida, nasceu em Luanda em 1977. Seu nome de adoção significa "guerreiro" em umbundo, a língua de origem banta mais falada em Angola. Após terminar o ensino básico, mudou-se para Lisboa, onde se formou em Sociologia. É também poeta, roteirista e pintor. Seus livros vêm alcançando grande êxito e reconhecimento entre o público e a crítica.
D.A Press/Esp. CB/Oswaldo Reis
1. O conto lido é de cunho autobiográfico. Antes de responder às questões, leia o texto a seguir, que ajuda a contextualizar o que estava acontecendo em Luanda na década de 1980, pano de fundo da história. Trata-se de um trecho do programa de entrevistas Roda viva, da TV Cultura, que foi ao ar em 2007, em que o entrevistado era Ondjaki.
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/238/entrevistados/ondjaki_2007.htm
Colônia de Portugal desde o século XV, Angola lutou contra os portugueses de 1961 a 1975, quando conseguiu a independência. Mas, o que poderia ser o início de um período de paz, marcou uma das lutas mais sangrentas da história da África. Os três grupos nacionalistas que se uniram na luta pela independência se dividiram depois em uma guerra pela disputa do poder: O MPLA, Movimento pela Libertação de Angola; a FNA, Frente Nacional de Libertação de Angola; e a Unita, União Nacional para Independência Total de Angola. O conflito cresceu de tal modo, que tomou dimensão internacional. O MPLA ganhou apoio da União Soviética e de Cuba. A Frente e a Unita, que depois se juntaram, foram apoiadas pelos Estados Unidos. Só após a queda do império soviético, em 1989, e o fim da Guerra Fria, é que surgiram algumas tentativas de paz. Mas, um acordo final só foi conseguido em 2002, depois de mais de 25 anos de uma guerra civil que colocou Angola na lista dos países mais pobres do planeta. Ondjaki nasceu e viveu a maior parte de sua vida em meio a esse conflito. Faz parte da primeira geração de angolanos que cresceu em um país independente, embora em guerra. Sua literatura, no entanto, não é exatamente um eco dessa guerra. É um diálogo entre memórias e questões sociopolíticas. Uma história na voz de uma criança repleta de recordações. E que fala de esperança e encantamentos, vividos numa terra sofrida.
RODA VIVA. Disponível em:
Dostları ilə paylaş: |