APOGEU E FIM DA BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA
E aqui tudo se complica ainda mais, pois ninguém soube explicar por que as fontes são árabes e não gregas, cristãs ou romanas. Abd al-Latif e Ibn al-Kifti, os dois historiadores, eram árabes doutos e conhecedores do pensamento aristotélico. Segundo alguns especialistas no tema, esses historiadores acusaram Omar I para deslegitimar assim sua corrente dinástica e apresentar ao mundo árabe Saladino (1137/38-1193), o herói das cruzadas, como um salvador, um sultão contrário a Omar I.
Abd al-Latif e Ibn al-Kifti na verdade conheceram e admiraram Saladino. No caso de Ibn al-Kifti (morto em 1248), formado no Cairo, há um aspecto controverso: seu livro intitulado Tarikh al-Hukama {Crônica de homens sábios) se conserva apenas num resumo feito por al-Zawzani em 1249, como assinalou A. Dietrich. Assim como se perderam 26 livros seus sobre medicina e filosofia, podem ter-se perdido informações determinantes no resumo hoje preservado.
De qualquer forma, a hipótese da destruição da biblioteca de Alexandria por parte dos árabes chegou ao Ocidente e começou a se fortalecer no século XVII. O orientalista inglês Edward Pococke (1604-1691) divulgou essa idéia em sua tradução de 1649 do livro Specimen historiae arabum de Bar Hebraeus. Em 1656, contribuiu para reforçar essa possibilidade quando apareceu sua edição dos Anais, de Eutíquio, em árabe e latim. Seu filho Edward (1648-1727) completou o quebra-cabeça do incêndio da biblioteca quando publicou a descrição do Egito de Abd al-Latif.
Edward Gibbon, na História da decadência e queda do Império Romano (1776-1788), contestou os historiadores árabes, por sua distância cronológica dos fatos e porque no mundo muçulmano a prática habitual era conservar os livros e não destruí-los.
A polêmica se manteve desde o século XVIII. No século XIX, o doutor Le Fort se atreveu a afirmar que foram os cristãos e não os árabes os causadores da destruição da biblioteca de Alexandria, diante de um auditório em Paris. O bispo de Orleans, monsenhor Dupanloup, desmentiu e acusou Le Fort de distorcer os dados. Um professor chamado Chastel publicou um artigo hesitante e apoiou a idéia de Le Fort. Na Espanha, a discussão interessou o padre Tomás Câmara, que revisou e refutou esse texto, sem provas, numa célebre e facilmente esquecível Contestação à história do conflito entre a religião e a ciência de João Guilherme Draper (Valladolid, 1880).
IX
Atualmente, a tese dos árabes perdeu força e deu origem a novas hipóteses. Limito-me a repassar três delas:
1. Os romanos. Durante uma rebelião em Alexandria ocorrida em 215, segundo disse Dion Cássio, as tropas romanas de Caracala saquearam o museu. Em 272, quando a rainha Zenóbia de Palmira atacou Alexandria, as perseguições contra bibliotecários e livros foram impiedosas. O historiador Ammiano referiu-se, ao descrever a época, ao "agora perdido lugar chamado Bruquion, duradouro domicílio de homens de prestígio".
Em Bruquion estavam os palácios reais e o museu. Em 273, Aureliano devolveu a cidade a Roma, mas seus soldados não respeitaram a biblioteca. Depois de Zenóbia, o imperador Diocleciano promoveu anos mais tarde o desaparecimento de todos os escritos de magia e alquimia até 297. Muito supersticioso, acreditava que os alexandrinos podiam aprender a converter metais em ouro com o objetivo de comprar armas. Diocleciano também perseguiu centenas de cristãos, como disse Anastácio, o Bibliotecário, e destruiu os livros sagrados com fogo. Diocleciano mandava destruir os livros no mercado. Um registro antigo relatou que a Acta Martyrum era bastante cara porque muitos exemplares desapareceram.
Chama a atenção a abundância de registros de censura e perseguição contra livros cristãos na África. Os textos eram confiscados. Segundo o testemunho de Zenófilo, em Cirta, cidade da Numídia, por volta do ano 395, os textos cristãos eram recolhidos para serem destruídos. Em Abitínia, o bispo Fundano entregou os livros sagrados ao magistrado, que ordenou sua queima, mas quando os soldados ergueram a fogueira pública choveu e as obras foram salvas.
2. Um terremoto. Pelo menos 23 terremotos assolaram Alexandria entre 320 e 1303. No verão de 365, um terremoto devastador acabou com muitos prédios. De fato, a equipe de Franck Goddio, do Instituto Europeu de Arqueologia Submarina, encontrou no fundo das águas do porto centenas de objetos e pedaços de colunas que demonstram que parte da cidade de Alexandria foi submersa.
3. A negligência. Os diversos embates políticos e militares resultaram na falta de orçamento e interesse pelas atividades da biblioteca. Os bibliotecários saíram em busca de cidades mais tranqüilas, como Roma, para nomear uma delas, e o trabalho de cópia foi progressivamente abandonado. Essa hipótese não é em absoluto descartável.
X
Ao falar dessa destruição sistemática da biblioteca de Alexandria, deve-se lembrar o número de obras nos depósitos. Segundo a Carta de Aristeas, havia vinte mil rolos, e o plano do rei era alcançar meio milhão. Aulo Gelio e Amiano Marcelino coincidiram na cifra de setecentos mil rolos. Georgius Syncellus falou de cem mil livros. João Tzetzes, comentarista bizantino, quis chegar à média ao se referir à divisão da biblioteca: 42.800 manuscritos no Serapeum e 490 mil no museu, dos quais quatrocentos mil estavam editados e noventa mil aguardavam edição.
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