Passaram uma corda em volta do pescoço e apertaram cada vez mais
para sufocá-lo aos poucos até o completo desfalecimento.
Desmaiado, Juliano foi arrastado até um cubículo fétido, onde ficavam
as lixeiras com restos de comida da carceragem. Ao ficar consciente,
percebeu que estava no meio da sujeira. O cubículo fedia, o chão estava
coberto de moscas e de baratas grandes e pequenas que se movimentavam
por todo lado. Tentou espanar os insetos, mas desistiu: a dor era tamanha
que preferiu ficar assim mesmo, encolhido no chão, imóvel. Observou
uma barata em seu braço e não fez nada. Ela parou em cima do ferimento
do pulso que ainda sangrava, mas ele não reagiu. Delirou:
- Te invejo, menina. Aproveita, que é sangue bom!
Havia dois dias que não comia e não bebia, não sabia mais distinguir
a origem das dores na área do estômago, barriga, quadril. Estava quase
totalmente surdo. Precisava de apoio de alguém para levantar e se manter
em pé. Sem nenhum senso de direção, ele pôs os braços sobre os ombros
de dois carcereiros que o levaram, com os pés arrastando, até a sala do escrivão
da delegacia. O funcionário já o aguardava com um texto redigido
de sua suposta confissão. Ele usava as duas mãos para conseguir assinar
o documento, sem nenhuma leitura prévia.
Em seguida foi arrastado pelos carcereiros até o camburão que o
aguardava para a transferência para o presídio de Salvador. Foi jogado
de bruços no chiqueirinho, a gaiola de ferro onde ficavam os presos em
remoção. Ficou na mesma posição em que caiu e adormeceu quase instantaneamente.
Só acordou quando jogaram água no seu rosto, já na área de recepção
dos novos presos da cadeia. Ainda atordoado, ele não conseguia responder
o questionário, uma peça importante da principal documentação dos
detentos, o prontuário. Foi três vezes ao banheiro, mas não conseguiu
aliviar as dores da bexiga por causa da contenção urinária. Pediu para ir
à enfermaria e a resposta do funcionário foi padrão.
- Seu pedido entrou na fila!
- Preciso ir já! - insistiu Juliano.
- Que pressa é essa, Carioca? Estamos em agosto, talvez em novembro
a gente te libere uma aspirina - debochou o funcionário.
- Chame um médico, um enfermeiro.
- É problema grave? Onde?
- É, na bexiga. Ela vai explodir.
- Grave é coração. A ordem é perguntar: parou de bater? Se o preso
responder sim, então eu devo chamar um médico, entendeu, Carioca?
- ironizou um funcionário.
Enquanto aguardava o funcionário escolher o número de sua cela, Juliano
tentou encontrar um jeito de se livrar do líquido retido. Sentou num
banco de concreto sob o sol do meio-dia e logo começou a transpirar por
todo o corpo. Baixou a cabeça para proteger o rosto dos raios solares e
viu o suor escorrer dos braços e das pernas. Isso o tranqüilizou e aliviou
um pouco a tensão da bexiga.
- Parabéns, Carioca. Você vai ter um xadrez especial. O Havaí - avi
sou um carcereiro.
Era a cela mais quente do presídio, daí o apelido Havaí. Um retângulo
de oito metros quadrados, com dois de largura e quatro de comprimento,
onde estavam amontoados 28 detentos, 29 com Juliano.
A única ventilação vinha de uma abertura estreita e gradeada no alto
da parede do fundo. Antes do carcereiro abrir a porta feita de barras de
ferro paralelas, ele sentiu o cheiro de suor e urina que vinha lá de dentro.
Mesmo assim se animou: qualquer coisa agora era melhor do que ser o
alvo das barbáries dos carrascos.
Já sabia que a chegada ao xadrez era sempre um momento tenso, imprevisível,
cheio de ameaças subliminares, mas Juliano estava confiante
na receptividade.
Sempre ouviu dizer que quem era odiado pela polícia tinha respeito
redobrado na cadeia. Por isso acreditava que as marcas de tortura por
todo o corpo seriam a melhor credencial, dispensariam outra forma de
apresentação. Nos códigos dos prisioneiros, garantiriam solidariedade
imediata.
A porta formada por barras paralelas de ferro foi aberta pelo carcereiro
e Juliano avançou três passos à frente, dois à direita e parou. Era
estratégico se acomodar na “praia”, a área mais próxima da saída e a das
mais indesejadas. A pior de todas era a do banheiro, o “boi”, usado em
caso de extrema lotação do xadrez.
Resolveu esperar o final do dia para ver como o pessoal se organizava
na distribuição do espaço exíguo. Eram 29 homens num lugar planejado
para acomodar no máximo oito. Lá no fundo alguns descansavam deitados
lado a lado na forma de valete em posições invertidas, a cabeça de
um próxima aos pés do que estava deitado ao lado.
A parte alta das grades da porta era o guarda-roupa do xadrez, onde
eram amarradas as calças, as camisas, as toalhas e pendurados os calçados.
Impossível saber, nos primeiros momentos, onde guardavam ou
escondiam as coisas mais valorizadas, como cigarro, material de higiene,
papel de carta, dinheiro, drogas. Se estivessem à vista, de imediato Juliano
saberia quem mandava na cela.
Outra pista para identificar o chefe era descobrir quem estava ocupando
as áreas tidas como nobres do xadrez, que eram as mais próximas
das paredes.
Dormir encostado na parede era um “privilégio”. Quem conquistava
esse espaço dormia com alguém encostado em apenas um lado do corpo.
E durante a madrugada não era pisoteado por aqueles que se obrigavam
a caminhar sobre os companheiros para chegar até o banheiro. Por isso, a
parede era sempre reservada ao chefão. Ele esperou a hora do jantar para
mostrar ao novato Juliano quem mandava ali dentro.
Ainda com as mãos trêmulas, Juliano tinha dificuldade em equilibrar
o prato de alumínio quente.
Estava agachado com as costas apoiadas nas grades da porta e ansioso
para comer depois de um jejum de 50 horas. Ele abriu o prato e aspirou
com prazer o vapor da comida aquecida, uma mistura de arroz, feijão,
macarrão e pedaços de carne assada com molho de tomate. Ele dobrou ao
meio a tampa redonda de alumínio para a usar como talher.
- Gostei disso aí que você tá usando - disse um homem de bermudas,
baixo, musculoso, que estava em pé ao lado de Juliano, e tão próximo
que nem dava para ver o rosto dele.
Juliano olhou para a tampa de alumínio acreditando que a sua colher
improvisada estivesse despertando curiosidade. Não estava. O segundo
comentário soou como uma ordem.
- Gostei desse teu cordão. Vô curti esse bagulho no meu pescoço -
disse o suposto chefe do xadrez.
- Bacana mesmo! - respondeu Juliano sem levantar a cabeça, demonstrando
maior interesse na comida que ainda não havia provado.
- Qualé, você ainda não entendeu? Passa logo esse cordão, cara - gritou
o estranho, já irritado.
Juliano pôs o prato de comida no chão e tão logo se levantou ficou
cara a cara com o estranho, que já imaginava ser o chefão do xadrez ou
alguém sob as ordens dele. Os outros presos se afastaram para assistir à
briga que parecia inevitável.
- Seguinte, cara. Você não acha melhor a gente queimar um baseado
e mudar de assunto? - sugeriu Juliano.
- Olha só, isso aí é a marca de paz e amor, não é? Tu é chegado, malandro?
Poe no meu pescoço, põe.
- Posso tirar do meu pescoço, não, cara. Eu fiz uma promessa, tá
entendendo? - disse Juliano, ainda procurando convencê-lo a mudar de
idéia.
- Que promessa, caralho?
- Uma mina, uma gata. Ela fez eu jurar que só daria esse cordão pra
quem chupar meu pau melhor do que ela chupou. Vai encarar?
A ousadia de Juliano surpreendeu o provocador, que se calou, e provocou
gargalhadas gerais, inclusive do chefão. Ele afastou os dois que se
Posicionavam para a troca de socos e se apresentou ao novato.
- Gostei de ver, na moral! Eu sou o responsa, Bira do 37.
- Juliano, com todo o respeito.
- Tu aprontou legal, hein? Os homens te arrebentaram, cara... Tu parece
um monstro.
À medida que as horas foram passando, os efeitos das pancadas apareciam
pelo corpo. Os pés inchados pela hemorragia pareciam duas botas
escuras de cano longo. As feridas nas juntas do joelho estavam inflamadas.
Havia três machucados ainda em carne viva nas costas. Mas o que
mais impressionava era o rosto, que parecia o de um lutador de boxe surrado
do primeiro ao último round. Os olhos e as faces inflaram em duas
bolhas roxas, que cobriam da sobrancelha até a linha do nariz. Os lábios
normalmente grossos dobraram de tamanho e tremiam, assim como as
mãos e os braços. Sentia fortes dores nos rins, estava febril e faminto.
- O faxina vai cuidá de você, cara. Qual é o teu artigo, 157? - perguntou
Bira.
- Doze! - respondeu Juliano.
- Com tudo em cima?
- Cento e cinqüenta gramas, por aí. Mas apresentaram só 50.
- Melhor!
- Melhor nada, não faz diferença. É flagrante igual.
- Quem é o teu povo lá no Rio?
Juliano falou de Pedro Ribeiro, Carlos da Praça e quando começou
a falar da já famosa guerra da Santa Marta, virou o centro das atenções.
Todos queriam saber como foram os combates e muitos detalhes sobre a
quadrilha de Cabeludo. Ficaram impressionados com a atuação dele no
bonde de Orlando Jogador. Juliano começou a conquistar solidariedade
espontânea. O próprio Bira ofereceu o seu pequeno banco para que ele
jantasse numa posição menos desconfortável. E bateu com a caneca de
alumínio nas grades, um código que anunciava novidades na cela.
O preso responsável pelo recolhimento do lixo das celas era o único
que tinha livre circulação pelos corredores. Ele aproveitou suas andanças
para informar da chegada de um homem do Rio à cadeia. Muitos já
sabiam das péssimas condições físicas de Juliano, pois o viram chegar
arrastado pelos carcereiros. Alguns usaram-no para enviar mensagens de
apoio e algumas coisas para amenizar o sofrimento.
Da cela onde estavam os presos primários vieram várias camisetas,
que agora, amarradas umas às outras, viraram a almofada de Juliano. O
pessoal do xadrez ao lado mandou o “aquecedor”, dois metros de fio de
cobre. Uma extremidade foi presa à fiação elétrica e a outra, mergulhada
na única panela de alumínio, aqueceu a água que foi usada para a limpeza
dos ferimentos. Analgésicos e antitérmicos foram enviados da cela em
frente, mas foram educadamente recusados por Juliano
- Guardem para quando a situação piorar. Por enquanto, preciso de
outro tipo de remédio.
Bira realizou o desejo de Juliano logo depois da passagem do carcereiro
que fazia a contagem dos presos nas celas. Nesse dia, a checagem
funcionou como toque de recolher. A maioria ficou em silêncio para ouvir
as histórias do novo companheiro de cela, que à noite ganhou um
cobertor de lã e uma raridade que estava no esconderijo de Bira.
- Obrigado, meu pai, por mais um dia em sua terra maravilhosa, meu
pai. Minhas treze almas benditas, sabidas, entendidas...
Juliano rezou enquanto Bira preparava o cigarro de maconha. Finalizado
o ritual, o chefe da cadeia acendeu o baseado e sem aspirar a fumaça
o ofereceu a Juliano.
- A primeira tragada é sua, campeão - disse Bira.
Juliano novamente agradeceu com orações improvisadas para agradar
os parceiros de cela.
- Obrigado, Nosso Senhor do Bonfim, obrigado pela paz e mordomia.
Obrigado, São Jorge...
Enquanto o baseado passava de mão em mão, Juliano falou de seus
planos de guerra para o dia em que voltasse ao Rio de Janeiro. O efeito
da maconha estimulou o exagero na explicação do plano, como se tivesse
formando um grupo e uma estratégia de ação para eles. Na verdade, Juliano
falava de um sonho, um desejo de vingança que veio alimentando,
com apoio de Carlos da Praça, desde a morte de Cabeludo e de sua conseqüente
expulsão da Santa Marta.
- Jurei voltar para tomar o morro! O povo me espera - exagerou Juliano,
enquanto alguns presos já bocejavam de sono. Passado o efeito da
maconha, ele começou a demonstrar cansaço. Alguns presos sugeriram
que descansasse e ofereceram seus lugares perto da parede. Mas ele só
aceitou depois de muita insistência de Bira, que quase o obrigou a deitar-
se no melhor espaço da cela, junto àparede, que já estava forrado com
um cobertor de lã.Juliano só acordaria 15 horas depois, com a chamada
do carcereiro.
- Júlio Mário Figueira? Vem comigo até a sala dos prontuários.
Ele foi levado até uma sala do prédio da direção da cadeia. Recebeu
água, comida, curativos nos ferimentos. Mas ninguém explicou os motivos
do isolamento. Ele ficaria mais de uma semana sozinho em uma
cela na área administrativa, até ser informado da chegada de um “alvará
de soltura” em seu nome, assinado por um juiz corregedor da Justiça da
Bahia. Na manhã do dia seguinte, um advogado, o”Dr. Marcos”, o aguardava
na portaria.
- Caralho! É você, Marcão? Como você sabia que eu tava aqui, cara?
-perguntou Juliano ao “advogado” Marcos.
- Você tá irreconhecível, Juliano! Botaram pra arrebentá! - respondeu
Marcão.
- Os tiras daqui são foda, cara!
A única exigência que fizeram foi a troca do uniforme da cadeia pela
roupa normal. Juliano teve que deixar a calça cinza e a camiseta bege na
portaria e nada mais. Como ele chegara sem nenhum objeto pessoal de
valor, nada precisava ser recolhido na cela. Para ir embora, bastou assinar
o alvará ali mesmo e o amigo Marcão pegar de volta na recepção da
portaria a carteira falsa da Ordem dos Advogados do Brasil.
Eles passaram devagar pelos portões de ferro que foram se abrindo.
Juliano ainda tinha parte do rosto coberto pelas manchas escuras das hemorragias
internas, mas já não sentia tantas dores. Ainda tinha os pés inchados.
Teve dificuldades de pisar descalço no piso de asfalto, que estava
quente por causa do sol do meio-dia. Os ferimentos já estavam cobertos
por uma casca grossa, inflamada em alguns pontos.
A caminho do estacionamento, ele chorou e riu ao mesmo tempo e
rezou em voz alta.
- Obrigado, meu Pai, que essa liberdade seja eterna.Vós sois meu
advogado na vida e na morte. Siga meus inimigos para que os olhos do
mal não me vejam...
O carro do amigo o impressionou.
- Lindão, zerinho, cara. Onde tu roubô esse bagulho? - perguntou
Juliano.
- No aeroporto, o dono deve estar viajando. Gostou? - respondeu
Marcão.
- Carro de dotô mesmo, Dotô Marcos!
- Vamo precisá muito dele. O Da Praça mandô a gente rapá fora logo
pela estrada.
- Vambora já!
- Já, não. Preciso acertá as contas com o cagüeta.
- Deixa pra lá, cara.
- Ordens são ordens. Ele entregô você e ainda deu o prejuízo pro Da
Praça.
- Vambora, cara, vambora!
- Pode dá mole, não, juliano. É território novo. Tem que se impô na
moral. Não adiantou Juliano insistir. O contrato de Marcão com Carlos
da Praça previa duas tarefas, resgatar Juliano da cadeia com documentos
falsos e dar uma lição no homem que delatou à polícia a localização de
sua primeira base de venda de cocaína na Bahia.
No final da tarde do mesmo sábado da fuga de Juliano, a segunda
parte da missão começou a ser cumprida. Marcão e dois mercenários se
apresentaram ao delator como agentes da Polícia Federal e o convidaram
a participar de uma missão de busca de traficantes no litoral de Salvador.
No barco, a uns 500 metros da praia, o delator foi algemado e lançado ao
mar com um saco de areia amarrado ao corpo.
Na manhã de domingo, bem cedo, Marcão e Juliano estavam na estrada
rumo ao Rio de Janeiro.
- Em que praia a gente pára primeiro? - perguntou Juliano.
- Que praia, cara. Vamos, tocá direto, no pau! - respondeu Marcão.
- Preciso dá um mergulho pra tirar essa zica, cara!
- Tá louco. A guerra é segunda-feira.
- Então! Preciso pedi proteção aos deuses do mar, cara.
- A quadrilha já tá te esperando.
- Vai esperá mais um pouco. Toca pra praia!
Mergulhos rápidos, e para não perder tempo, voltaram para a estrada.
Decidiram viajar à noite e durante a madrugada, mas não resistiram.
Exaustos, pararam num hotel às margens da estrada para descansar e
telefonar para o Rio.
- Alô, Carlos, como vai meu tio? - perguntou Juliano
- Onde vocês estão? - perguntou Carlos da Praça.
- Perto, no Espírito Santo - respondeu Juliano.
- E a guerra, cacete! O Zaca foi preso. Temos que aproveitar para
atacar logo, não pode passar desta segunda-feira, porra!
- Segura essa guerra, Carlos. Posso perdê, não. Já tamo chegando,
segura aí!
No final da tarde de segunda-feira, o carro dirigido por Marcão avançava
pela ponte Rio-Niterói. Ele viu no horizonte à esquerda a montanha
da guerra iluminada pelos últimos raios de sol e a pedido do amigo acelerou
forte. Era março de 1991, exatamente três anos e sete meses depois
de ser expulso. Juliano estava perto de cumprir a promessa que fizera aos
amigos e à família: tomar de volta o poder da Santa Marta.
CAPÍTULO 12 A RETOMADA
Mas pra você formar no bonde tem que ter disposição.
Porque de dia e de noite, pode crer, a chapa é quente. É melhor
pensar direito, se tu quer formar com a gente.
Na onda da madrugada o bonde já tá formado.
(Funk proibido)
O reencontro no morro Cerro Corá provocou euforia, mas eles combinaram
que só haveria festa se houvesse vitória. Eram mais de 50 homens
em preparativos para a guerra, mas o pessoal da antiga Turma da
Xuxa estava mais preocupado em pôr em dia as histórias vividas durante
os quase quatro anos de separação. O grupo se desfez quando a maioria
foi expulsa do morro na guerra de 1987.
Alguns mantiveram contato através dos parentes que continuaram
morando na Santa Marta. Do grupo original de 16 jovens, cinco estavam
ali para ingressar no bonde que iria atacar a Santa Marta a qualquer momento:
Mendonça, Alen, Juliano, Du e Claudinho. Nenhum deles mantivera
os cabelos descoloridos como no passado. Mudaram de visual e de
atividade.
- Você ficou sabendo do Renan, Juliano? - perguntou Du, que continuava
morando na casa da família de Paulista.
- Grande Renan. Um dia sumiu com a pistola automática do Da Praça,
lembra, no bonde do Cabeludo? - disse Juliano.
- Pois é, depois da morte do Cabeludo, ele e o Mendonça queriam
assumi o lugar do tio, sabe cumé? Chegou a formá uma quadrilha, um dia
apareceu com um carro novo lá no pé do morro...
- Onde ele teve morando nesse tempo? - perguntou Juliano.
- Passou um tempo na Tabajara, depois foi pro Azul e por último no
Vídigal.
- Vidigal do Parrick, amigão. O Renan tava fechando com os irmãos
de lá?
- Sei não. O certo é que passaram o rodo nele lá.
- Brinca, não? Dívida?
- Ninguém sabe. Tem muito matadô por aí, tem muita mineira.
- Mas o pessoal do Vidigal, o que fala?
- Fala coisas diferentes. Não foi dentro da favela, foi na entrada, o
Renan tava a caminho.
Quebraram. Acharam o corpo cheio de azeitona sete meia cinco.
Quebraram também um moleque junto, parece que avião do Vidigal, mas
talvez fosse amigo, parceiro de assalto. Ele andava roubando de moto,
com um parceiro na garupa.
- Caralho! Primeiro o Adriano, depois o Renan. Já morreram dois da
nossa turma - comentou Juliano.
No mesmo dia, Juliano procurou os melhores amigos do passado para
tentar convencê-los a reforçar o bonde, mas não teve sucesso. Mentiroso
não aceitou o convite porque abandonara o crime desde o dia em que foi
preso quando passava de carro pela praia do Leblon na companhia de
amigos armados, que carregavam 50 gramas de pó. Acusado de formação
de quadrilha, passara meses na cadeia. Depois que saiu da prisão, voltou
a estudar e a morar na favela, mesmo sob o domínio de Zaca, mas nunca
mais se envolveu com drogas. Estava cursando a faculdade de comunicação
social e esperava trabalhar em jornal, desejo que tinha desde a
infância e que estava relacionado com o seu apelido. Nas cadeias do Rio
de Janeiro, os presos costumavam chamar os jornais de “mentiroso”. Ele
explicou a Juliano que torceria por uma vitória dele na guerra, mas que
não iria acompanhá-lo. Juliano também procurou Flavinho, apesar de ele
próprio ter recomendado o seu afastamento do tráfico na guerra de 1987.
Sabia que o amigo tinha virado taxista, mas o procurou mesmo assim
porque soube do envolvimento dele em um assalto a banco no centro da
cidade. Julgou que ele pudesse ainda estar envolvido em ações criminosas,
mas se enganou. De fato, Flavinho e o falecido Renan, acompanhados
de mais quatro assaltantes armados, invadiram uma agência bancária
e recolheram dos caixas um valor equivalente a 50 mil dólares, dinheiro
que pretendia usar na compra de seu próprio táxi. O carro em que trabalhava
era de uma empresa particular que cobrava dele 50 dólares por dia
de aluguel. Flavinho precisava trabalhar entre oito e dez horas para faturar
o valor do pagamento da diária. Só depois da décima segunda hora de
trabalho começava a ganhar para si mesmo. Vivia revoltado, achava que
era explorado pela empresa. Por isso, resolveu assaltar banco para montar
a sua própria frota e poder explorar os outros também. Mas Flavinho
não chegaria nem a aplicar o dinheiro do primeiro roubo, por causa de
um erro primário durante a fuga. Ele, Renan e os quatro parceiros usaram
apenas um carro para fugir. O carro cheio de homens nervosos chamou a
atenção da polícia.
Tiveram que entregar todo o dinheiro do roubo. E Flavinho, para se
livrar da prisão em flagrante, teve de arranjar mais 10 mil dólares com
os seus parentes, para honrar o acerto com os policiais. Chegara a pedir
dinheiro emprestado a Juliano e nunca pagaria a dívida. Por vergonha do
episódio, Flavinho foi morar em outra favela, onde recebeu a visita de
Juliano.
- Eu sou um fracassado, parceiro. Acho que meu destino é morrer
dirigindo táxi - disse Flavinho ao recusar o convite do amigo.
Careca tinha saudades da mãe e das irmãs gêmeas que continuaram
morando na Santa Marta apesar da expulsão deles em 1987. Ele e o irmão
Vico adoravam a mãe carinhosa e batalhadora, que os criou sozinha desde
a separação do marido Tibinha. Nos últimos anos Careca trabalhava
como motorista de um líder comunitário no Engenho de Dentro. E antes
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