O dono do morro dona marta



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encenar e narrar uma luta imaginária contra quem a havia agredido.

- Um cruzado de esquerda no olho direito, um de direita no olho esquerdo.

Direita, esquerda, direita, esquerda... Um direto no nariz, direto

no queixo...Pela manhã, parava na porta do prédio para tentar descobrir,

pela intuição, quem era o agressor ou a agressora. Desconfiava de algumas

pessoas. De um jovem, gordo, míope, que saía de casa uniformi


zado, pontualmente às sete horas da manhã, para aguardar o transporte

escolar.


Enquanto esperava, comia o sanduíche preparado pela mãe para a

hora do lanche no colégio. Luz desconfiava dele porque era um sovina.

Quando o transporte chegava, ele preferia jogar o resto do sanduíche no

lixo a dá-lo para uma criança faminta da rua. Também desconfiava de

uma mulher que aparentava mais de 70 anos e do marido, provavelmente

aposentado. Tinha razões para não gostar do casal, que nunca respeitou

o espaço que ela ocupava na calçada. Durante os quatro anos em que viveu

ali ela procurava manter a área limpa. Varria, lavava, recolhia o lixo

dos amigos de rua e dos passantes. Nunca um único morador do prédio

a ajudou na limpeza, O casal, além de não colaborar, ainda sujava mais.

Era dono de um cachorro de raça nobre. Diariamente o casal permitia,

em seus passeios matinais, que o cão urinasse e defecasse justo no espaço

onde as crianças dormiam. Luz contou para Juliano e Romerito que

quando acordava com o mau cheiro ao lado, rogava uma praga:

- Um dia eu ainda vô assaltá a casa desses coroas só pra cagá na cama

deles - dizia para si mesma.


CAPÍTULO 4 MALDADE, COVARDIA

Já nas primeiras trocas de confidências, Luz e Juliano descobriram

que tinham muita coisa em comum, além de cigarros de maconha. No

ano de 1986 os dois buscavam nas ruas uma alternativa aos caminhos que

a família esperava que seguissem. Embora suas histórias fossem diferentes,

ambos romperam a habitual trajetória de pais trabalhadores pelo envolvimento

com grupos de adolescentes infratores e jovens criminosos.

Os dois eram de famílias migrantes, vindas do Nordeste, e foram criados

num ambiente familiar abalado pelo alcoolismo.

Luz guardava más lembranças do pai, que pouco parava em casa, em

Jacarépaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, devido às freqüentes viagens

de vendas pela Marinha Mercante. Quase sempre voltava bêbado e violento

com a mulher e os cinco filhos. As brigas invariavelmente tinham

uma causa: a implicância com o caçula, por causa da pele mais clara. O

pai achava que não era seu filho. Batia na criança, tentava arrancar seus

cabelos “não tão crespos” quanto os dele, A mãe, quando o socorria,

também era surrada com extrema violência. Às vezes o pai parecia enlouquecido.

Numa noite de Páscoa, tentou explodir a família. Prendeu todos na

cozinha e colocou fogo na mangueira do bujão de gás. Assustados com as

labaredas, mulher e filhos reagiram a socos, pontapés, cadeiradas. Quase

mataram o pai. A surra acabou com a interferência dos vizinhos, que o

levaram para o hospital, onde ficou internado durante dois meses.

A mãe, empregada doméstica, aproveitou a internação do marido para

se separar dele. Luz, com seis anos, foi morar com a avó num barraco

de três cômodos que abrigava oito filhos e netos. Livrou-se do pai, mas

continuou sofrendo agressões dos homens.

Uma noite Luz acordou com o peso do tio Benê sobre seu corpo de

menina. Ele a tinha agredido de forma tão violenta que desmaiara por alguns

minutos. Quando retornou à consciência, sentia dores e desespero.

Tinha nove anos de idade, inocente para compreender o motivo da dor

e do sangue entre as pernas, mas já madura o suficiente para saber que

significavam maldade e covardia. Razões fortes o bastante para querer


evitar para sempre a companhia de tios, sobrinhos, primos, qualquer parente

que pudesse atacá-la novamente. A resposta de Luz para o estupro

foi o silêncio.

Antes do amanhecer fugiu para não encarar o descaso da avó, que

nunca soube protegê-la. Saiu de casa sem avisar ninguém, calada, só com

a roupa do corpo e uma boneca. Seguiu pelas ruas escuras com a intenção

de ir para bem longe de Jacarepaguá e o mais depressa possível.

Logo percebeu que não seria fácil se livrar da família. Seus passos estavam

sendo seguidos bem de perto. Tentou fingir indiferença e acelerou

o passo. Não resolveu. O perseguidor andou mais depressa. Luz correu.

Parou. Escondeu-se atrás de uma banca de jornal. Sem conseguir livrar-

se, apelou para a briga, jogando pedras no cachorro, um velho vira-lata

da família...

- Demônio!

Para não perder tempo, desistiu de brigar. Afinal, embora morasse

na mesma casa, o cachorro nem nome tinha, não chegava a representar

alguém da família que queria esquecer. Era tão maltratado quanto ela.

Vivia abandonado no quintal, sem abrigo, à espera de restos de comida.

Decidiu deixar que o cão a perseguisse de longe e seguiu viagem. Mas a

distância entre eles foi diminuindo à medida que Luz ia perdendo o fôlego.

No final do dia estavam amigos.

O vira-lata acabou passando a Luz os primeiros ensinamentos da vida

de rua. Mostrou que o segredo para atravessar avenidas de grande movimento

era ter calma, muita calma. Deixava o cão ir à sua frente e seguia

os passos dele, estrategicamente lentos ou rápidos, dependendo do fluxo

de carros. Descobriu também que, muitas vezes, parar no meio de uma

avenida larga podia ser uma forma de evitar o atropelamento, facilitava

para o motorista desviar o carro para um lado ou outro da pista.

Dois dias depois de fugirem de casa, o vira-lata ganhou um nome,

Felicidade. E Luz já havia escolhido a rua Hilário Gouveía para morar

em Copacabana.

Para Juliano, Copacabana, em 1986, também representava uma oportunidade

de fuga da opressão paterna. Os conflitos com o pai, Romeu,

nunca foram explícitos. Juliano foi educado para não reclamar e não

chorar mesmo quando era surrado. O filho obedecia. Ele tinha sete anos
quando o pai o agrediu com um soco no peito, tão violento que o lançou

contra a geladeira, amassando a porta. Em vez de choro, apenas um comentário

com a mãe, Betinha, testemunha da cena:

- Papai mostrou que é forte mesmo, hein, mãe!

Desde criança era proibido de brincar fora dos limites de visão dos

pais, que passavam o dia na birosca, um micromercado de bebidas e gêneros

de primeira necessidade comprado com as economias de cinco

anos de trabalho como chefe de cozinha de um restaurante de Botafogo

e que funcionava no térreo do barraco de dois pavimentos. Desde que

chegou do Ceará, Romeu forçava a clausura dos filhos por temer que eles

sofressem influência dos malandros ou que fossem vítimas de algum ataque

dos Irmãos Coragem, homens violentos, matadores, de uma família

que mandava na favela no final dos anos 70 e começo dos 80, os Lino.

O domínio dos Lino afetava diretamente a família de Romeu. Os Irmãos

Coragem costumavam violentar as mulheres e ele tinha três em

casa, as filhas Zuleika e Zulá e a esposa Betinha. Um agravante era a

condição de migrante. Os Lino discriminavam os forasteiros, odiavam

os nordestinos, especialmente se fossem paraibanos. E Betinha viera da

Paraíba. Por causa dos Lino, Juliano era obrigado pelo pai, desde criança,

a passar a maior parte do tempo no andar de cima da casa cuidando

das duas irmãs mais jovens. Só depois que entrou para a escola, aos oito

anos, passou a conhecer um pouco alguns vizinhos, mas sempre sob estreita

vigilância.

Estudava pela manhã. À tarde era obrigado a ajudar o pai e a mãe

na birosca, sem receber pagamento algum. Na birosca, Juliano assistia

diariamente à transformação do pai. Pela manhã, quando estava sóbrio,

Romeu era ativo, disciplinado, rigoroso com a higiene do bar e de pouca

conversa com a mulher e os fregueses. À tarde, quando começava a beber

rabo-de-galo, uma mistura de pinga com vermute, perdia a disposição

para o trabalho e o bom humor.

Romeu não gostava que o freguês falasse com Betinha, tinha por ela

um ciúme doentio. Não permitia que usasse batom ou qualquer maquiagem,

nem que vestisse uma roupa nova em hora de trabalho. Muitas vezes,

por desconfiar que ela gostara do assédio de algum homem, Romeu

fechava a birosca mais cedo para surrá-la.
Durante a infância das crianças, Betinha suportou as agressões sem

reclamar. Mesmo que o ferimento sangrasse, nunca foi ao hospital nem

deu queixa à polícia ou pediu socorro aos vizinhos que acreditavam na

harmonia do casal. Mas, em segredo, ela cultivou o desejo de libertar-se

do marido.

No começo da adolescência dos filhos, envolveu-se com o eletricista

Edésio, que apareceu no morro para trabalhar na obra de expansão da Associação

de Moradores. E não escondeu a paixão de ninguém. O romance

levou à separação imediata do casal e revolucionou a vida de Betinha.

Os filhos foram morar com ela em um outro barraco no beco Padre Hélio.

Separada, Betinha passou a visitar os amigos e a se divertir nos pagodes

e festas do morro. Livre da opressão do marido, passou a freqüentar os

bailes da quadra da escola de samba, onde chamava atenção pelo jeito

extravagante de dançar. Gostava de imitar a cantora Gretchen, famosa

por rebolar no palco de costas para o público.

Era aplaudida pelos homens e repreendida pelo filho Juliano. Ele tentava

convencê-la a ser mais discreta.

- Pára com isso, mãe. Isso pega mal - disse Juliano na primeira vez

que assistiu ao show particular de Betinha na quadra.

- Mal por quê? - perguntou Betinha.

- Todo mundo comenta: olha lá o bumbum da mãe do Juliano!

- Já vi tudo. Me libertei do Romeu, mas fiquei com a cópia em casa..

Romeu se limitava a pagar uma pensão fixada pela Justiça num valor

equivalente a cinco dólares. Para sustentar a casa, Betinha trabalhava

como auxiliar de enfermagem na Casa de Saúde Dr. Eiras, em Botafogo.

Nessa época, dos três filhos, só Juliano estava empregado. O serviço era

na birosca do próprio pai, que continuava a não pagar salário. Ele tinha

que transgredir as regras sovinas de Romeu para levar alguma coisa para

casa.

Para compensar o trabalho não remunerado, Juliano roubava mantimentos



da birosca com ajuda da irmã mais nova, Zuleika. Uma vez por

semana os dois dormiam na casa de Romeu. Na hora em que ele saía para

buscar pão lá embaixo, no asfalto, eles invadiam a birosca e recolhiam

das prateleiras vários pacotes e latas de alimentos. Zuleika também tirava

um pouco de dinheiro miúdo do caixa e levava tudo para a mãe. Enquan
to isso, Juliano voltava para a cama e fingia dormir até a hora em que o

pai o chamava para ir à escola. A escola era o caminho da liberdade.

Du era o parceiro preferido nos estudos. Moravam no mesmo beco

Padre Hélio e saíam dali juntos para a Escola Municipal México. Eram

pontuais na chegada à escola, igualmente para fugir dela: às sete da manhã

em ponto estavam na sala para assistir à primeira aula. Às oito horas

já estavam pulando o muro para ir fumar maconha com os amigos da

Turma da Xuxa.

Durante parte da adolescência, Juliano, Du e Mendonça foram estudantes

que se ausentavam muito da escola, ocupavam-se em descobrir os

caminhos que os levassem a uma vida mais interessante que a dos pais.

Abandonaram os estudos na quinta série do antigo primeiro grau, depois

de serem reprovados quatro vezes por excesso de faltas. Voltavam cada

vez mais tarde para casa, apesar das críticas que ouviam de suas mães.

Juliano ainda temia o pai violento e mal-humorado. Mas já não respeitava

a autoridade dele.

O envolvimento com a Turma da Xuxa mostrou a Juliano o quanto

ele estivera deslocado em relação aos outros adolescentes. Apesar dos

pequenos espaços de lazer na favela, todos davam um jeito de praticar

esportes e ele nem mesmo futebol sabia jogar. Nos bailes, como nunca

dançara em público, limitava-se a observar os outros. De moda também

entendia pouco. Era Flavinho quem o orientava sobre como se vestir. Era

falante, mas tinha poucas histórias interessantes para contar. Os amigos

o consideravam tímido com as moças. Namorava “firme” com a menina

de uma família muito próxima dele e que conhecia desde criança, Marisa,

sobrinha da sua segunda “namorada” no morro, Bety. Os amigos

debochavam da escolha, mas nunca de forma explícita para evitar o risco

de deixá-lo furioso. Juliano sempre protegeu a namorada das práticas

promíscuas dos amigos. Um dos programas preferidos, quando havia dinheiro

suficiente, era sair da praia em grupo para namorar num motel.

Inseguro, com medo de não ter um bom desempenho, Juliano parava no

caminho para tomar uma supervitamina: uma mistura de leite, banana,

aveia, castanha, ovo, amendoim e açúcar. Nunca participou das brincadeiras

de sexo grupal, e criticava quem trocasse de parceira ou mantivesse

relações na frente dos amigos.
- Na Marisa ninguém toca - dizia.

Mas dentro da favela, Juliano e os amigos também tinham em comum

preferências religiosas. Du, Adriano, Mendonça, Renan, Mentiroso

e Doente Baubau frequentavam diariamente à tarde o Terreiro da Maria

Batuca para brincar com os irmãos Careca e Vico. Ficavam no salão até

a noite, mesmo depois do início dos cultos da macumba, para ver os

irmãos, percussionistas, tocarem os tambores do terreiro. Foram influenciados

pela religião, embora não fossem fiéis seguidores.

Paulo Roberto era a exceção, levava a sério a religião. Todos aprenderam

com ele que Xangô simbolizava a Justiça. E que as crianças eram

identificadas como Erês e nossa Senhora Aparecida como Iansã.

Freqüentavam o terreiro, participavam dos cultos, acreditavam nos

trabalhos dos orixás, mas todos se consideravam católicos, inclusive

Careca e Vico, assim como o pai deles, Tibinha, e o avô João Bento.

Tinham enorme respeito pelos padres, que chamavam de padrinhos da

Santa Marta.

Eram crianças quando conheceram padre Velloso, que se tornou notório

no meio eclesiástico pela liderança entre os seguidores da doutrina

social da Igreja. No início da adolescência receberam das mãos do padre

Velloso a hóstia da primeira comunhão e um livro sobre o papel libertador

da trajetória de Jesus Cristo na terra. E ouviram dele pregações

revolucionárias.

- Jesus Cristo, se vivesse no interior do Brasil, seria filho de uma família

sem-terra. Se fosse de uma grande cidade, seria um favelado como

vocês. Num lugar ou no outro, seria um inconformado, um lutador.

Juliano e Du freqüentavam as capelas e adoravam ouvir histórias do

catolicismo. Juliano aprendeu com os padres a venerar as gravuras, os

“santinhos”, as Imagens em cerâmica de São Judas Tadeu, de São Benedito,

Santo Expedito, de Santa Teresinha, Santa Gertrudes, do Arcanjo

Jesus e a de Nossa Senhora Aparecida. Ouviu muitas histórias na igreja

sobre os santos. Descobriu que São Judas Tadeu era um menino pobre

da Palestina, primo e amigo de bairro de Jesus Cristo. E que virou santo

por ter previsto as punições dos hereges, martirizados, queimados vivos.

Aprendeu com os padres que ele deve ser evocado em situações de extremo

risco, como durante as perseguições da polícia e nos tiroteios contra
os inimigos. Nossa Senhora Aparecida, segundo os padres, era a santa

protetora dos pobres e marginalizados.

A história que mais impressionou Juliano foi a de Santo Expedito,

um guerreiro, legionário chefe de uma falange, que viveu em Roma três

séculos depois de Cristo. Os padres contaram que as circunstâncias da

morte dele foram semelhantes às de muitos jovens traficantes executados

nas guerras do morro. Santo Expedito foi surrado durante vários dias e

depois decapitado numa praça. Há três versões para o desaparecimento

do corpo: teria sido jogado na rede de esgoto da cidade, dado como alimento

aos animais ou ainda esquartejado e misteriosamente enterrado

pelo povo catecúmeno.

Os padres tentaram convencê-los de que esses três santos, se fossem

contemporâneos deles no Brasil, também seriam revoltados, mas que lutariam

por motivação social. União virou palavra de ordem nesta fase de

formação religiosa da Turma da Xuxa. A proximidade com os religiosos

da Igreja Católica durou parte da infância e adolescência. As famílias

moravam na parte baixa do morro, bem perto da capela em que assistiam

à missa, a de Nossa Senhora Auxiliadora. No caso de Juliano, vizinho da

Associação de Moradores, a proximidade era ainda maior. Ele passava

parte do dia no prédio da entidade, criada em 1964, seis anos antes dele

nascer, por influência do padre Velloso e de seus colegas da Congregação

Mariana Nossa Senhora das Vitórias.

Desde cedo, a mãe Betinha lhe contava que, sem os padres, a vida na

favela teria sido bem pior. Falava com a experiência de quem enfrentara

filas intermináveis para disputar água potável nas três fontes do morro. E

que à noite acendia velas e lampiões a querosene para iluminar o barraco

e o botequim de Romeu.

Na década de 1940, os barracos da Santa Marta abrigavam dezenas de

famílias vindas do interior fluminense e de ex-escravos que migraram de

Minas Gerais. Naquela época o Rio tinha menos de 100 favelas, abrigo

de 140 mil pessoas, a maioria migrantes. Os pais de Juliano chegaram no

final dos anos 50, quando começou a grande invasão nordestina no morro

e em toda a cidade, então Distrito Federal. Em 60, o Rio já tinha perto

de um milhão de pessoas em condição de extrema pobreza, um terço da

população amontoada em 180 favelas. Os migrantes erguiam seus barra
cos na parte mais alta, para fugir da vigilância dos guardas-florestais que

expulsavam quem derrubasse árvores para construir moradias.

A perseguição dos guardas-florestais só acabou quando um vizinho

poderoso se tornou aliado da favela. O amigo de padre Velloso, o bispo

auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Hélder Câmara, muito

antes de se tornar um cardeal famoso no Brasil, teve um papel importante

na vitória dos moradores da Santa Marta. Notório defensor da Teologia

da Libertação, em oposição à linha conservadora do Vaticano, Dom Hélder

Câmara chegou ao Rio para morar no bairro de Botafogo nos anos

40, quando eram erguidos os primeiros barracos no meio da floresta do

morro Dona Marta. Fixou moradia na rua São Clemente, no pé da montanha.

Ajudou a construir os prédios das Universidades Católicas do Rio,

base da futura PUC, Pontifícia Universidade Católica, e das sedes da

CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no Rio de Janeiro,

e da entidade que primeiro levou o apostolado social para as favelas, a

Cruzada São Sebastião.

Dom Hélder defendia a fixação das favelas, o que na prática significava

levar os benefícios da urbanização aos seus moradores. Enfrentava

a oposição dos lacerdistas e de parte da imprensa, que queriam expulsar

os pobres dos morros da zona sul, território que pretendiam exclusivo dos

ricos e da classe média.

Sua primeira vitória começou com uma transgressão da lei. Apesar

das proibições ambientais, Dom Hélder mandou derrubar várias árvores

do morro para a construção das capelas de Nossa Senhora Auxiliadora,

bem perto da casa de Juliano, e a de Santa Marta, no pico do morro. As

duas igrejas tornaram-se um marco de suas obras sociais. Transformou a

favela na principal beneficiária do Pacto Nacional Populista, que fundia

as ações do segmento progressista da Igreja às práticas da política de

proteção aos pobres de Getúlio Vargas.

As capelas deram força para a fixação da favela, contra a campanha de

remoção promovida por Carlos Lacerda desde os anos 40. Muitas vezes

abrigaram trabalhadores sem teto, que chegavam em massa do Nordeste

atraídos pela oferta de emprego nas obras da construção dos prédios de

Copacabana. Também foram os padres progressistas da Igreja Católica

que deram os primeiros passos na urbanização da Santa Marta.
O avô de Careca e Vico, João Bento, era um dos imigrantes que estiveram

à frente das primeiras obras coletivas incentivadas pela Igreja

Católica. Mestre-de-obras, João Bento inaugurou a pavimentação das

escadarias escorregadias, que nos dias de chuva infernizavam a vida dos

moradores. Tocou a obra com custo quase zero, usando pedaços de tijolos

e o refugo de alvenaria das construções dos prédios de Copacabana,

onde trabalhava mais de dez horas por dia.

Nos raros dias de folga, enchia uma carroça com o material que recolhia

nas construções e levava para a favela. Os amigos que trabalhavam

nas feiras de rua e nos mercados públicos contribuíam com caixotes de

madeira usados para embalar frutas e legumes. Nas mãos de João Bento,

caixotes de madeira fina e restos de tapumes viravam parede nova de um

barraco, que não parava de se expandir para receber parentes e amigos. A

base de estuque, uma mistura de barro e cimento, dava a sustentação ao

barraco, que só podia crescer para o alto. A área de expansão possível da

favela era um retângulo de 61 mil metros quadrados limitado nas laterais

por terrenos particulares da Embaixada de Portugal e do “Fedorento”,

como era chamado o laboratório Forever. Na parte baixa, as divisas eram

com os terrenos da sede da Prefeitura do Rio e dos prédios residenciais

de Botafogo. E, no alto, a grande barreira eram as rochas com declive

quase vertical. Restava para os pedreiros mais criativos, como João Bento,

sobrepor os barracos para erguer tortuosos edifícios de alvenaria e

madeira com três, quatro e até cinco pavimentos.

Os padres estimulavam a cópia das invenções arquitetônicas de João

Bento. Aos poucos o terreno foi se transformando num emaranhado de

barracos interligados por um labirinto de becos e escadarias pavimentadas.

A água potável da rede pública também só chegou à Santa Marta, em

1960, por influência de Dom Hélder Câmara. Ele buscou apoio externo

e se envolveu pessoalmente na construção de um reservatório ao lado da

capela do pico do morro. Financiou a compra de tijolos e cimento com o

dinheiro de doações à paróquia São Sebastião. E para erguer a obra criou

um sistema de mutirão administrado pelo seu seguidor, padre Hélio, para


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