. Acesso em: 6 jul. 2015. (Fragmento).
Conheceremos, a seguir, alguns dos poetas que enfrentaram o desafio de encontrar uma voz verdadeiramente africana na língua do colonizador.
Crianças comemoram a libertação de Guiné-Bissau do domínio português em manifestação organizada pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde), 1974.
ALAIN DEJEAN/SYGMA/CORBIS/LATINSTOCK
Cabo Verde: olhos voltados para a imensidão do mar
Dos seios da ilha ao corpo da África
O mar é ventre
E umbigo maduro
E o arquipélago cresce
FORTES, Corsino. Raiz e rosto. In: Árvore & tambor. Lisboa: Dom Quixote, 1986. p. 36. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2015.
No início do século XX, já era possível identificar, em Cabo Verde, a presença de uma elite local consciente dos principais problemas da população das ilhas que constituem o arquipélago. São intelectuais (professores e jornalistas) e comerciantes que, concentrados principalmente em São Nicolau, Santo Antão e São Vicente, mantêm-se em contato com os principais movimentos literários portugueses.
A principal influência, porém, será exercida pelos modernistas brasileiros. Poetas como Jorge de Lima, Manuel Bandeira, romancistas como Graciliano Ramos e Jorge Amado, além do sociólogo Gilberto Freyre, animam os escritores cabo-verdianos a retratarem aspectos da realidade local em seus textos.
O lançamento da revista Claridade, em 1936, criou um importante espaço para que poetas como Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes divulgassem poemas em que os signos locais ganhassem uma roupagem mais lírica. Observe a seguir.
Barcos no porto em São Vicente, Cabo Verde, 2010.
MICHELE FALZONE/JAI/CORBIS/LATINSTOCK
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Poema do mar
O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!
O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...
O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!
O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...
O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres,
nos portos estrangeiros...
O Mar!
dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!
Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!
BARBOSA, Jorge. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 125-126.
Morna: música típica de Cabo Verde, cantada em ritmo lento ou moderado, acompanhada por instrumentos de corda como violão, violino, viola e cavaquinho.
Barcos de pesca se transformam em mercado de peixes quando os pescadores retornam à praia, em Santo Antão, Cabo Verde, 2012.
LORENTZ GULLACHSEN/PHOTOGRAPHER’S CHOICE/GETTY IMAGES
ELOAR GUAZZELLI
O mar que se estende no horizonte, símbolo de aprisionamento e de liberdade, é um elemento inseparável da vida de um povo insular. Em seus versos, Jorge Barbosa se vale da onipresença do mar para evocar outros símbolos da identidade cabo-verdiana, como a sensualidade de suas mulheres ou o canto da Morna.
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Autor mais descritivo e intimista, Jorge Barbosa ainda não encontra solução para os dilemas dos seus compatriotas que não seja a evasão do mundo conhecido.
Em António Nunes, poeta da geração seguinte aos claridosos, vamos encontrar a releitura poética das marcas da exploração sofrida durante o período colonial, bem como a consciência de que as consequências desse período produziram chagas sociais difíceis de apagar.
Ritmo de pilão
Bate, pilão, bate,
que o teu som é o mesmo
desde o tempo dos navios negreiros,
de morgados,
das casas-grandes,
e meninos ouvindo a negra escrava
contando histórias de florestas, de bichos, de encantadas...
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e a casa-grande perdeu-se,
o branco deu aos negros cartas de alforria
mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor...
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
desde o tempo antigo
dos navios negreiros...
(Ai os sonhos perdidos lá longe!
Ai o grito saído do fundo de nós todos
ecoando nos vales e nos montes,
transpondo tudo...
Grito que nos ficou de traços de chicote,
da luta dia a dia,
e que em canções se reflecte, tristes...)
Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e em nosso músculo está
nossa vida de hoje
feita de revoltas!...
Bate, pilão, bate!...
NUNES, António. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 143-144.
Morgados: bens inalienáveis e indivisíveis que, em função do falecimento de quem os possuía, eram destinados ao primogênito.
Moçambicana usa pilão para socar arroz, c. 1999.
ADRIAN ARBIB/CORBIS/LATINSTOCK
Passado o momento de retomar, poeticamente, as marcas da exploração e do sofrimento, muitas vozes cabo-verdianas começaram a buscar uma expressão lírica mais independente.
Mário Fonseca, por exemplo, atribui novo sentido ao campo semântico da fome, fortemente associado aos sofrimentos históricos. Veja, a seguir, como o sentido dos termos associados a esse campo é expandido pelo poeta.
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Viagem na noite longa
Na noite longa
minha alma
chora sua fome de séculos
Meus olhos crescem
e choram famintos de eternidade
até serem duas estrelas
brilhantes
no céu imenso
E o infinito se detém em mim
Na noite longa
uma remotíssima nostalgia
afunda minha alma
e eu choro marítimas lágrimas
enquanto meu desejo heroico
de engolir os céus
se alarga e é já céu
Tenho então
a sensação esparsamente longa
de vogar no absoluto
FONSECA, Mário. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 163-164.
Vogar: navegar, ser impelido sobre a água por remos ou velas. No poema, o sentido foi expandido para representar, metaforicamente, uma navegação no absoluto.
A lírica amorosa também encontra voz em alguns poetas como Vera Duarte e Filinto Elísio. A forma poética, renovada, busca a expressão mais concisa para os sentimentos e revela, no uso do termo em inglês, o seu caráter contemporâneo. Observe.
Acerca do amor
Do amor só digo isto:
o sol adormece ao crepúsculo
no oferecido colo do poente
e nada é tão belo e íntimo.
O resto é business dos amantes.
Dizê-lo seria fragmentar a lua inteira.
ELÍSIO, Filinto. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 171.
Business: palavra, em inglês, que significa negócio.
ELOAR GUAZZELLI
São Tomé e Príncipe: o drama da cor no espaço insular
Coqueiros e palmares da Terra Natal
Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos
[...]
Ilhas paradoxais do Sul do Sará
Os desertos humanos clamam
Na floresta virgem
Dos teus destinos sem planuras...
(É nosso o solo sagrado da terra)
ESPÍRITO SANTO, Alda do. Ilha nua. Disponível em:
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