Reportagem no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha



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— Estou oferecendo a oportunidade de realizar uma obra das mais belas e das mais fecundas, porque é de preservação coletiva da humanidade, de defesa social e de misericórdia — exclamou Machado, encerrando o discurso de apresentação.


O médico Antônio Carlos Pacheco e Silva, sucessor e maior discípulo de Franco da Rocha, foi designado responsável pela execução da medida. Percorreu, por quase um ano, vários países europeus e da América do Sul, em busca de um modelo que se adaptasse às condições brasileiras. Decidiu adotar o mesmo sistema utilizado na França, na Alemanha e na Argentina, em que a instituição judiciária funcionava anexa ao hospital psiquiátrico, O manicômio deveria ser instalado a pouco mais de 2,5 km do Asilo Juqueri e estaria subordinado à Secretaria Estadual de Saúde.


No primeiro dia de janeiro de 1934, o Manicômio de Franco da Rocha recebeu seus hóspedes inaugurais. Eram 150 doentes mentais criminosos, todos homens, que estavam até então confinados numa sala isolada do Juqueri. Durante décadas, os nomes desses pacientes ficaram perdidos nos arquivos empoeirados do manicômio. Nem mesmo a Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitericiários do Estado de São Paulo (Coespe), órgão responsável


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pela preservação da memória do sistema prisional, obtinha informação referente ao assunto. Após algum tempo vasculhando papéis e documentos, o histórico foi encontrado no último compartimento de um móvel de aço desgastado pela ferrugem.


O paciente de registro número 1 é o austríaco Wilheim Holtezmann, jardineiro de 21 anos, que assassinou um colega de trabalho em um baile de carnaval. Desferiu várias coronhadas de uma velha garrucha na cabeça do amigo, em meio a uma crise psicótica aguda. Os quatro pacientes seguintes, cadastrados em papéis que o tempo amarelou, revelam histórias dramáticas. O lavrador Antenor Torres, então com 29 anos, assassinou a tiros uma moça que o olhava com insistência enquanto alguns roceiros se aqueciam ao redor de uma fogueira no interior de São Paulo. O russo Leonardo Chavenka, um invocado senhor de meia-idade, de baixa estatura, matou a socos sua mulher no pasto da fazenda em que trabalhava como cultivador de azeitonas.


O conteúdo dos relatos de números 4 e 5 nasce também de repentinos ataques da mente: o de Macário Alves, que invadiu a


Figura. A instituição recebeu os seus primeiros internos no primeiro dia de 1934.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura observa-se uma grade de tela e ao fundo a fachada do manicômio.

(Fim da descrição da figura)
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casa de um cafeicultor, no município paulista de Pontal, para roubar duas letras de câmbio, movido por um surto de psicose, e o do mineiro João Batista de Miranda, que matou o patrão a golpes de enxada porque o pagamento havia atrasado vinte minutos.


O responsável pelo tratamento desse primeiro grupo foi o psiquiatra André Teixeira Lima, meses depois nomeado o primeiro diretor do manicômio, cargo que exerceria por quase trinta anos. Ainda em 1934, o distrito Estação do Juqueri foi transformado no município de Franco da Rocha, em homenagem ao renomado médico.


Naquela época, Teixeira Lima tratou do autor da mais sangrenta tragédia até então ocorrida na capital paulista. O crime do Horto Florestal, como ficou conhecido, abalou a população de São Paulo no dia 3 de fevereiro de 1926. Já passava da 1 hora da tarde de quarta-feira, quando um guarda florestal flagrou o polonês Francisco Wolnick, de 26 anos, cortando galhos e arbustos para cobrir o corpo ensangüentado de uma mulher. A uma distância de 5 m, estavam três corpos de crianças mutilados. A chacina começara na manhã ensolarada daquele dia. Wolnick, que morava na rua Itariri, havia acordado cedo e tivera a idéia de convidar a mulher e os filhos para um passeio no campo. Queria fazer as pazes com ela e convencê-la a não se separar dele. O casal tinha brigado porque o comportamento de Wolnick mudara depois de um acidente na cervejaria onde trabalhava. Durante uma briga de dois operários, foi atingido por um martelo atirado por um dos contendores. Desde o ferimento, que o deixou acamado por dois meses, passou a surrar os filhos e a falar coisas sem sentido. O passeio era a oportunidade


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de reconstruir seu casamento. Enquanto as crianças se distraíam colhendo frutos silvestres, Wolnick irritou-se com a mulher, que se mostrava irredutível na decisão de abandoná-lo. Sacou o facão e a golpeou na cabeça dez vezes. Em seguida, atacou os filhos, um a um, assassinando-os da mesma forma. No tempo em que esperava a polícia chegar, conversou animadamente com os guardas, como se nada tivesse acontecido. O exame de saúde mental elaborado pelo psiquiatra Teixeira Lima apontou o assassino como “alienado de periculosidade latente”, o que o levou a viver recluso no hospital até janeiro de 1947.


Para abrigar enfermos mentais como Wolnick, o antigo Manicômio Judiciário possuía estrutura de presídio de segurança máxima. Duas torres de vigia em muros altíssimos ajudavam a policiar o pátio em que os pacientes tomavam sol. O prédio central tinha três andares: o primeiro enquadrava o bloco administrativo e as salas de consultório médico; o segundo incluía vinte celas fortes individuais, destinadas aos doentes perigosos; o terceiro abrigava dormitórios coletivos, onde viviam até trinta internos. A construção foi arquitetada para tornar todos os espaços vigiáveis. Os cantos arredondados da cela permitiam que os guardas a avistassem inteiramente. Os banheiros e as privadas também eram expostos, para impedir toda tentativa de fuga.


Desde a sua inauguração até o começo da década de 1940, o manicômio abrigava somente homens. Em 1943, foi instalada uma colônia exclusiva para mulheres portadoras de deficiência mental e que tinham dívidas com a Justiça. Até então, elas dividiam uma das colônias do Juqueri com doentes não delinqüentes. A maioria dos


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crimes era causada por distúrbios de personalidade agravados pela pobreza e por más condições de vida. Havia moças e idosas, geralmente isoladas depois de ter matado marido, filho ou conhecido bem próximo.


A primeira paciente foi registrada no dia 13 de julho de 1935. Vicentina Gonçalves Moreira Fagundes, então com 27 anos, prostituta no centro de São Paulo, assassinou outra prostituta, sua amiga, com dois golpes de machado, ao ser vítima de um surto psíquico não-identificado. Morreu em 1948.


A segunda mulher do Manicômio foi a dona de casa Margarida de Jesus, que tinha 80 anos quando espancou até a morte sua vizinha de quarto, no asilo em que morava. Para cometer o crime, usou um pedaço de bambu, escondido havia anos embaixo de sua cama, e foi internada também em julho de 1935.


As empregadas domésticas Maria Soares, de Rio Claro, e Ana Rangel de Andrade, de Avaré, municípios de São Paulo, foram as pacientes de números 3 e 4 em Franco da Rocha. A primeira asfixiou o filho recém-nascido e enterrou o corpo no quintal. A segunda matou o marido com estocadas de chave de fenda enquanto ele dormia.


Todas essas mulheres passaram a morar juntas no prédio feminino, erguido ao lado do edifício principal. Eram cinco grandes alojamentos que serviam de quarto e uma ampla área para o cultivo da terra. A criação de um espaço exclusivo para acolher as mulheres significava mais um avanço na trajetória do manicômio.


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Doutor Psicose


O Manicômio Judiciário teve desempenho brilhante nas duas primeiras décadas de funcionamento. Nos anos 1950, chegou a ser considerado um dos mais importantes hospitais-presídio da América Latina. Reunia uma equipe célebre de especialistas e desenvolvia os mais avançados estudos psiquiátricos. Os grandes nomes da comunidade científica européia habitualmente embarcavam para o Brasil em busca do saber psicopatológico ali reunido. Um sonho da maioria dos estudantes de medicina era ser selecionada para fazer residência em Franco da Rocha. Significava a oportunidade, talvez única, de iniciar uma carreira de sucesso como psiquiatra, profissão emergente e de prestígio na época.

Esse sonho levou o jovem Abelardo Ribeiro Paiva, médico recém-formado pela Universidade Federal do Paraná, a candidatar- se a uma das vagas de estagiário em Franco da Rocha. Filho do segundo casamento de um tabelião do município paulista de Tambaú, Abelardo foi escolhido por sua experiência paranaense anterior, como residente no antigo Departamento de Assistência aos Psicopatas de Curitiba. Em maio de 1958, passou a trabalhar no manicômio com a função de dar receitas aos doentes, entrevistaros familiares e ajudar na elaboração dos laudos de sanidade mental.


— Eu queria ser um bom médico, estudar a mente das pessoas — afirma Abelardo, hoje com 70 anos e com a voz desalentada.


Um dos professores de Abelardo bem que tentou fazê-lo desistir da idéia. Alegava que o estudante tinha personalidade neurótica; torná-lo psiquiatra seria como dar à raposa o comando do galinheiro.


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Ele pouco se importava com as críticas. Estava decidido: seria como Pacheco e Silva, seu ídolo e grande mestre. Mas o sonho foi bruscamente interrompido por sua displicência no trabalho. Sem motivo aparente, abandonava o posto e passava horas a fio examinando prontuários, a ponto de muitas vezes perder o trem de volta a São Paulo. Rompia as madrugadas escondido na pequena sala de arquivo, à luz de uma lamparina, fazendo leituras e anotações. O que mais o atraía, no entanto, era a chance de dialogar com os pacientes. Sentia-se realizado ao ouvir a lamúria dos loucos, suas histórias e devaneios.


Os seguidos abandonos de posto lhe custaram o emprego. Acabou demitido pessoalmente pelo diretor do manicômio, seis meses depois da admissão. Após a saída, mergulhou numa crise depressiva, rapidamente superada. Nesse meio tempo, reencontrou, na capital paulista, Sílvia Rosalina Sampaio, uma paixão secreta de adolescência. Os dois tinham se conhecido em 1944, quando estudavam no Instituto de Educação de Casa Branca, em São Paulo.
Figura. O jornal Última Hora, na edição de 19 de janeiro de 1959, noticiou o polemico caso.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura temos a manchete do jornal Última Hora, que fala assim: Crime da igreja: advogado reafirma incapacidade mental do criminoso.

Consta tambem a imagem de Abelardo Ribeiro paiva o autor do referido crime.

(Fim da descrição da figura)
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Sílvia, uma bela jovem de Rio Claro, não era mais menina. Tinha se tornado professora e mulher encantadora.


Como Abelardo era solitário, a moça passou a convidá-lo para freqüentar sua casa — mais como um gesto de pena do que propriamente de admiração pelo médico. No início, as visitas eram realizadas a cada quinze ou vinte dias. Depois se tornaram mais freqüentes. A maior decepção de Abelardo foi saber que Sílvia estava prestes a casar-se com o industrial Sílvio Marchioni. No Natal de 1958, pouco antes do casamento, o médico deu a Sílvia um suporte de livros. Detalhe: na caixa do presente, havia uma caveira de gesso, com a inscrição em latim: “Perdoa, Senhor, por eu profanar Tua obra”. Depois de presentear a moça, Abelardo disse:


— Esse não é o presente de casamento. O presente lhe darei no dia das bodas.


Com a aproximação da cerimônia, Abelardo visitava Sílvia quase todos os dias. No casamento civil, deu-lhe outro presente inusitado: dois peixinhos num saco de água.


Era uma tarde de janeiro de 1959, pouco mais de 18h30, dia do casamento de Sílvia. Os noivos desejavam uma grande festa. Reuniram amigos e parentes na Igreja de Santa Teresinha, na rua Maranhão, bairro de Higienópolis. Abelardo chegou alguns minutos antes do final da cerimônia e sentou-se no lado esquerdo da igreja. Usava chapéu preto e estava malvestido, o que o diferenciava dos demais convidados. Em meio ao discurso do padre, inexplicavelmente se ajoelhou e rezou. Ao levantar-se, o surto psicótico: imaginou, no púlpito, o padre, enfezado e com o cálice nas mãos, falando sem parar.


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— Nem essa gente toda reunida conseguirá matar você. Levante e caminhe, levante e aminhe! — vociferava o religioso na mente insana do médico. — Salve seu amor! Salve seu amor!


Abelardo atravessou o salão apressado. Ao final da cerimônia, foi o primeiro a cumprimentar os noivos. Ao ver a mão de Marchioni estendida para receber as felicitações, sacou da cintura um revólver calibre 38 e gritou:


— Parabéns! Toma!


Disparou quatro tiros no industrial. Um deles varou o olho do rapaz e se alojou no cérebro. Os outros acertaram o tórax. Depois atirou duas vezes: uma na perna e outra nas costas de Sílvia, que se havia abaixado para socorrer o noivo. Marchioni morreu no hospital, a noiva sobreviveu. Alguns convidados tentaram linchar Abelardo. Um acertou um golpe de guarda-chuva em sua cabeça — o que o levou a ser medicado no Hospital das Clínicas. Ao sair, foi direto para a Casa de Detenção de São Paulo. No ano seguinte, foi considerado inimputável, numa decisão polêmica da Justiça. Sílvia casou-se novamente anos depois e formou uma família. O médico voltou como interno ao Manicômio Judiciário em janeiro de 1960, quase dois anos após a saída como estagiário.


Chegou em Franco da Rocha numa manhã de chuva fina. Houve alegria entre os pacientes. Funcionários mais antigos contam que alguns internos, que o adoravam, espalharam rapidamente a notícia e comemoraram nas celas durante semanas. O médico foi submetido ao primeiro exame de saúde mental na mesma sala em que realizou o diagnóstico de loucura de centenas de pessoas. ‘Terturbação mental crônica e incapacidade para entender o caráter criminoso”,


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Figura. A imprensa paulistana criticou a decisão da Justiça que considerou o doutor Abelardo psicótico.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura observamos a mancheteque diz: Absolvido o autor da tragedia da igreja de Santa Terezinha.

Tambem conta a foto de duas pessoas que foram vitimas do médico-louco.

(Fim da descrição da figura)


dizia o laudo. A formação em medicina lhe valeu o apelido de Doutor Abelardo, só no manicômio.

O paciente Doutor Abelardo sempre teve conduta elogiável. Uma única vez foi preso na cela de castigo, por mau comportamento. Sua diversão era confundir os médicos residentes recém-chegados ao manicômio. Como conhecia as receitas e os remédios um a um, usava termos técnicos para enganar os novatos. Fingia ter uma doença que não tinha e ironizava os diagnósticos errados. Certo dia, foi flagrado por um dos enfermeiros, quando caía em gargalhadas ao contar o prodígio para os colegas. Ficou detido por algumas horas.


Vestia sempre uma jaqueta de couro preta. Sua assinatura era como um ritual: religiosamente, as iniciais do nome eram contornadas por exatas 33 voltas, a idade de Jesus Cristo crucificado. Quando completou cinco anos de manicômio, enviou uma carta à


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escritora Rachei de Queiroz, em que confessava o assassinato dos noivos e pedia um romance sobre a sua vida. Em outra carta, declarou ter descoberto a solução para o analfabetismo:


É uma pena que Camões levasse 25 anos a escrever uma obra que não é lida por milhares de pessoas que não sabem ler. Não haveria um meio de alfabetizar uma multidão de analfabetos? Não haveria um processo ultrarápido, que reduzisse o tempo de aprendizagem a uma simples fração do atual? Eu o creio. Trata-se de readaptar uma cartilha comum ao método ortográfico fonético, cujas regras envio junto a esta carta. Seria o fim do analfabetismo em nosso país.

Foi em vão: Rachei de Queiroz nunca respondeu às suas cartas.


Nos anos 1970, seu estado de saúde piorou devido à forte medicação. Ficava horas estático na cela, em pé ou deitado. Continuou internado até maio de 1979, sendo, então, transferido para um hospital psiquiátrico de Casa Branca, cidade onde nasceu e foi criado. Ao receber alta, em 1985, foi morar com o irmão, Araken Ribeiro, num bairro arborizado da região. Hoje, passa os dias entre a televisão, a leitura de tratados de medicina e até navegações na internet. Não diz uma palavra sequer sobre a tragédia do passado. Quando perguntado, afirma simplesmente que não deseja desenterrar algo tão triste. Se é importunado pela insistência do repórter, responde, convicto:

— Falo apenas da minha vida pós-Manicômio Judiciário.


Ainda assim, deixa escapar um pouco dos momentos que viveu:


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— Foi um instante de falta de lucidez, só. Não é possível explicar. Tudo foi muito doloroso. Os amigos e até alguns parentes se afastaram, menos meu irmão.


Não precisava dizer. Depois de algum tempo de conversa, Abelardo confessa estar combalido, desiludido, sem sonhos. Revela que seu último desejo é recuperar o registro do Conselho Regional de Medicina, mas a entidade não abre mão: considera que ele está incapacitado para exercer a profissão de médico.


— Estou aguardando o tempo passar, deixando o destino agir. Não tenho mais objetivos — diz ele.


Corpo letárgico
A ditadura militar de 1964 conseguiu fazer mal até para o manicômio. O período áureo de experiências científicas e terapias voltadas para a reintegração social dos doentes tornava-se apenas lembrança remota, como o idealismo de Franco da Rocha e a dedicação sem fronteiras de Pacheco e Silva. Ou como o orgulho dos moradores do antigo vilarejo Estação do Juqueri e os aplausos calorosos do plenário paulista, envaidecido com a aprovação da Medida nº 3, “proposta de preservação coletiva da humanidade”.

A epopéia do manicômio tinha chegado ao fim. Terminara a saga de desvendar mentes humanas, revelar mistérios do comportamento criminoso, percorrer o insondável universo da alienação. Os anos de glória tinham ficado para trás.


O modelo psiquiátrico constituído em enormes complexos, importado da Europa para acolher a demência, encontrava-se falido


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no Brasil. Sem nenhuma modernização de suas estruturas, o manicômio se transformou num verdadeiro depósito de loucos, trinta anos depois de ser fundado com pompas de majestade. O descaso do governo com o sistema de saúde mental resultou num dos capítulos mais nefastos da história do tratamento aos doentes criminosos no país.


A instituição definhou. Era um grande organismo letárgico, que parecia reproduzir as crises do corpo e da mente dos seus habitantes. Produzindo cenas macabras, durante longos anos escondidas em meio às montanhas do Oeste paulista, o horror e a miséria pioraram ainda mais a rotina dos internos. Passaram a fazer parte do dia-a-dia dos pacientes os maus-tratos, as comissões de inquérito, as fugas, as mortes. A superlotação atingia números devastadores. Centenas de doentes mentais eram despejados semanalmente em Franco da Rocha. Muitos chegavam de trem, o que levou a linha que atendia ao município a ser conhecida como a do “trem dos doidos”. Assim, aqueles mesmos 420 leitos criados na época da inauguração passaram a acolher até 1.800 pessoas.


Figura. Nos ‘anos de chumbo’, o descaso do governo provocou a degradação do hospital-presídio.

(Inicio da descrição da figura)

Na figura observa-se vários homens sentados no chão.

(Fim da descrição da figura)


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— A política da comunidade, de segregar as pessoas indesejáveis, ajudou a inchar o manicômio. A qualidade do atendimento ficou totalmente comprometida. O local se transformou para muita gente numa prisão perpétua — lembra Edgar Ângelo Greco, funcionário do setor administrativo entre os anos 1950 e 1966.


Atualmente locutor de rádio em Franco da Rocha, Greco fala com razão. Como no pesadelo dos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra Mundial, ser enviado para o Manicômio Judiciário era quase estar condenado a sair de lá apenas no dia da morte. O então diretor, o psiquiatra Paulo Fraletti, conta que usava os pareceres enviados ao juiz de direito para reclamar das precárias condições da instituição e tentar sensibilizar as autoridades para o caos que tomava proporções trágicas.


— Somente de janeiro de 1959 a abril de 1961, recebemos a incumbência de examinar 152 internados, e dispúnhamos de apenas quatro peritos. Implorei desesperadamente por uma solução, mas nada aconteceu — lembra Fraletti, hoje médico aposentado.


Com o passar dos anos, a deterioração aumentou. Até que, no final dos anos 1960, a Assembléia Legislativa de São Paulo formou, em caráter de urgência, a primeira sindicância para avaliar o grau de ruína. Fome, doenças infectocontagiosas, falta de higiene, morte. “Solidão, carência de afeto, desespero e medo”, denunciava o então promotor público, Antônio Carlos Penteado de Moraes, presidente da sindicância responsável pela visita ao local.


O trabalho da comissão — como o de todas as que passaram pelo Manicômio Judiciário — serviu apenas para algumas autoridades projetar sua carreira política. Nada, de fato, mudou. Em 1965,


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sete médicos eram responsáveis pelo atendimento de uma população de 1.300 internos. Quando muito, havia um enfermeiro para cada duzentos ou trezentos pacientes. Por causa do excesso de doentes e do ínfimo número de peritos, os laudos passaram a ser padronizados e repetitivos. A conclusão do exame era praticamente a mesma para todos os internos: esquizofrenia paranóide, que faz a pessoa ter delírios sem saber que é doente, alternando sua personalidade. Era a maneira de dar soluções rápidas e livrar-se de diagnósticos mais complexos sem perder tempo. Um breve levantamento dos prontuários é suficiente para comprovar a produção em série dos pareceres. Além disso, sem funcionários com conhecimento e habilidade, a doença mental passou a ser considerada no manicômio pela ótica da população em geral: como sinônimo de periculosidade, o que justificava o trato ao paciente como um animal feroz. Os internados eram submetidos a uma rigidez disciplinar — talvez a única maneira que os diretores encontravam para amenizar a perplexa realidade.


Isso gerou toda forma de arbitrariedades. Muitos passavam por tratamentos bizarros, como sessões de “malarioterapia” — inoculação do vírus da malária para tratar outras enfermidades; “traumoterapia”— técnica de violência corporal considerada precursora das modernas terapias de choque, ou banhos de jatos de água quente ou fria demais. Os que desrespeitavam as normas de conduta eram punidos com doses excessivas de remédios. Os neurolépticos, por exemplo, eram medicamentos usados como método punitivo que apavorava os doentes. A droga impede a pessoa de falar ou comandar os movimentos do corpo, principalmente o
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maxilar, a língua e a coluna, além de gerar uma agonizante necessidade de movimentar as pernas, como se estivesse marchando. O coquetel sedativo, outro meio usado como medida disciplinar, provoca sonolência, tonturas, letargia e cansaço. Doses contínuas geram mal-estar e desejo de suicídio. O sedativo mais usado pela equipe de enfermeiros do manicômio era o Anatensol injetável. E a droga mais tenebrosa, apelidada de “sossega-leão”, era a escopolamina — usada pelos nazistas como um soro da verdade, produz morte aparente, pelo relaxamento dos músculos e o enrijecimento das articulações.


O eletrochoque, hoje denominado eletroconvulsoterapia, era um método usual realizado em cubículos escuros no segundo andar do edifício, chamados de “celas surdas”, por serem à prova de som. O aparelho provoca convulsões por meio da eletricidade em esquizofrênicos descontrolados. O paciente recebe entre 70 e 130 volts, em média, por segundo. São colocados dois eletrodos nas têmporas, por onde passa a corrente elétrica e ocorre o choque. Há alteração lógica do pensamento e dificuldade em exercitar a memória, podendo, muitas vezes, causar amnésia.
Figura. Ex-funcionários guardam na memória o estado de penúria do local na década de 1960.

(Inicio da descrição da figura)


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