Gustavo Bernardo educaçÃo pelo argumento colaboração de gisele de carvalho rio de Janeiro – 2000 Copyngh, 2000 by Gustavo Bernardo Direitos desta edição reservados à editora rocco ltda rua Rodrigo Silva, 26 5° andar



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Se pensarmos em termos do Direito clássico, a cola é um ”crime” com atenuantes, uma vez que a escola não só se previne mal contra ele, como até o estimula, meio sem querer querendo (como diria o Chaves, personagem de popular seriado mexicano). Beccaria dizia que ”não se pode chamar precisamente justa (isto é, necessária) a pena de um delito, enquanto a lei, nas dadas circunstâncias de uma nação, não tenha aplicado os melhores meios possíveis para preveni-lo.”161

Ao invés de prevenção eficaz, a cola se estimula, quase se obriga, quando se submete o aluno a múltiplas disciplinas fragmentadas, cada uma delas com exigências cumulativas e conflitivas entre si, somando testes e exames toda semana, às vezes todos os dias de uma única semana, dentro de um espaço usualmente apertado, em que o colega ao lado senta-se a menos de um metro. Como requinte final, a cola se estimula, definitivamente, quando os testes são de ”múltipla escolha”. A tal da múltipla escolha pode ser resolvida, no menor esforço, pelo chamado rabo do olho. Sua própria denominação revela contradição flagrante, sintomática de contradições mais amplas: o aluno, ao tentar resolver uma questão de múltipla escolha, precisa encontrar a única resposta certa, ou seja, ele não tem escolha nenhuma; ao contrário, enfrenta muito maior

161 Cesare Beccaria Obra citada, p 118

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possibilidade de errar (cinco contra um) do que de acertar. A contradição se torna patética se lembramos a ”opção” [E] de várias provas: ”n.r.a. - nenhuma das respostas anteriores”. Quando essa ”opção” é a ”certa”, então não há opção correta seria um paradoxo, se não promovesse, perversamente, a ignorância. Logo, antes de ser um paradoxo, é um absurdo.

A múltipla escolha é irmã gêmea da cola, ambas menos problemas ocasionais da escola que construções suas, pelas quais se aprende, subliminarmente, a desonestidade. O aluno se anima em enganar o professor, sem perceber, assim como o próprio professor usualmente não percebe, que desse modo torto entra no sistema e corresponde ao que dele se espera. Os sistemas de avaliação ao mesmo tempo reprimem e estimulam a cola, não só porque proíbem-na com estardalhaço (emitindo assim irrecusável convite), mas também quando enchem o aluno daquelas exigências conflitantes e excessivas, escolhendo instrumentos de avaliação e cobrança para os quais o caminho de superação mais fácil (logo, mais inteligente, em certo sentido bem lógico) é a cola.

Fora da escola, no mundo do trabalho, não se produz mais nada sozinho; o trabalho é coletivo, a consulta a todos os meios disponíveis é indispensável. Aquele que não contribua com sua parte para o trabalho coletivo, que só queira colar do alheio, é ejetado rapidamente do trabalho, ou da pesquisa. Logo, no mundo do trabalho, não cabe repressão a priori à cola. Não faria sentido que isso permanecesse na escola, se não fosse parte disfarçada das estratégias de controle e disciplinamento - de corpos e de mentes - de que vimos tratando.

Se, de fato, esse é o logro, e se dele estamos agora conscientes, cabe desfazê-lo na prática. Mas, considerando, como se descreveu, o profundo enraizamento dos sistemas panópticos, é possível superar o logro, instaurando, no lugar, outro jogo? Parece chegado o momento de resolver. Será possível apresentar alguma solução para o problema? Temos respostas, ou somente perguntas e constatações impertinentes?

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Em fenômenos complexos, não encontramos uma única causa para um único efeito; em problemas complexos, as soluções não se encontram do lado de fora da questão, à espera de serem magicamente encontradas. Explicitar o problema, como tentamos fazer nestas poucas folhas, já faz parte da solução que, aos poucos, se constrói. Ao contrário de Platão, não acreditamos que saber implique, necessária e mecanicamente, poder. De que todo esforço de saber seja uma forma de exercer um poder não se deduz que conhecer algo nos dê poder instantâneo sobre o que pensamos conhecer.

Sabemos, por exemplo, que já há soluções tecnológicas para a redução drástica da poluição nas grandes cidades, como substituir o motor de combustão por motores elétricos e eletrônicos, em todos os veículos. Se isso já é possível, por que não se faz? Porque exige mudanças de longa duração, tanto nas grandes indústrias quanto nos hábitos dos seres urbanos. Mexe radicalmente com as bases do capital e do trabalho, com as empresas multinacionais e com o emprego das pessoas. Do mesmo modo que uma pessoa sozinha não inventou o capitalismo e o automóvel, outra pessoa sozinha, ou determinada geração, não consegue desinventá-los.

Quando Foucault estuda os procedimentos do inquérito e do exame, descreve longas linhas de tempo, sabendo que conhecê-las - pressupondo-se que pôde conhecê-las - não permite interrompê-las, ou reorientá-las. Quando, como professores, tentamos estudar as contradições do ofício, não nos imaginamos trocando de profissão. Apenas, para relativizar nossas decisões e nosso comportamento cotidiano, queremos (devemos) olhar um pouco o nosso próprio rabo, melhor dizendo, a nossa própria sombra, atendendo ao adágio latino que prega, ao médico, que cure, antes de qualquer paciente, a si mesmo: medice, cura te ipsum...

Diariamente devemos nos perguntar, por exemplo, se os nossos alunos aprendem alguma coisa graças ao nosso trabalho, ou se aprendem apesar do nosso trabalho. Escutamos, com atenção e apreensão, quando alguém nos diz, a sério,

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como o cartunista Ziraldo, que ”é melhor ler do que estudar” isto é, mais valeria o estudo orientado pelo desejo do que aquele organizado pelas disciplinas. Na verdade, no ensino médio e universitário, uma boa bibliografia, uma boa orientação para o estudo e o esforço pessoais, é o que de melhor o aluno pode receber de cada professor. Para além disso, só mesmo o próprio exemplo do professor, passando curiosidade e hábitos de leitura crítica. Se o mestre não lê muito, não há método que faça seus alunos lerem; se ele não investiga, não escreve, não há método que leve seus alunos a pesquisarem e escreverem.

Em outras palavras, que desfazem o dito popular: se o mestre não faz, não ensina; não é mestre.

Logo, sobra, no fim e ao cabo, sempre o mesmo antigo e digno método pedagógico: o exemplo. Quais alunos, e quando, seguirão os nossos melhores exemplos, é algo que foge inteiramente ao nosso controle - portanto, não deveríamos tentar exercê-lo. Assim como Kant dizia que não deveríamos tentar ser felizes, por implicar hybris e arrogância em relação ao destino e ao acaso, mas sim lutar tão-somente por merecermos a felicidade, os professores talvez devêssemos nos esforçar não por tentar controlar e moldar, histericamente, nossos alunos à imagem e semelhança de nossas melhores palavras, mas sim lutar tão-somente por merecermos seu reconhecimento, por merecermos bons alunos - eles, pelo seu lado, que fizessem a sua parte.

Incomoda-nos, e é saudável que isso aconteça, quando vemos aquele cineasta, que reputamos genial, dizer que aprender ou é um ato de amor ou não é nada:

Você não pensa que está escutando jazz para estudá-lo. Você apenas escuta porque gosta de jazz. Gosta, gosta muito... e, gradativamente, aprende. Você aprende tudo o que vale a pena por osmose. O mesmo se dá com a autoria de peças teatrais, direção de cinema ou interpretação. Você tem de gostar de ler, ver filmes ou peças e de ouvir música. Isto, de uma maneira ou de outra, vai entrando, através dos anos, no

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seu sangue, nos poros do seu corpo ou coisa semelhante. É errado esse negócio de estudar como uma obrigação, uma disciplina.162

Não que o cineasta em questão seja indisciplinado. Para ter dirigido, produzido e atuado em mais de vinte filmes, precisou desenvolver uma disciplina de trabalho e de criação férrea mas o fez de dentro para fora, a partir das suas escolhas e não da escola. Em Crimes and misdemeanours (traduzido no Brasil como Crimes e pecados), filme de Woody Allen, de 1989, um dos personagens aconselha sua sobrinha a não ouvir o que os professores falam mas a ver com o que eles se parecem. Segundo o diretor, exatamente porque ”eles falam, falam, falam, falam e quando você olha para eles - pelo menos os que eu tive na escola secundária - vê que são pessoas de aparência má, preocupadas, tristes e amargas”.

E ele se referia a professores norte-americanos. Romance recente de um escritor francês, também professor, nos mostra espelho - panóptico - parecido, nos contemplando com os mesmos adjetivos: ”tristes e amargos”.

Os tempos haviam mudado e no Georges-de-Scudéry ninguém se preocupava com a cultura ou o saber. O barulho substituíra essa dupla, os alunos eram-lhe hostis, os pais desconfiavam dessas coisas e o que Louise Lefébure mais queria era que tudo estivesse em ordem: alunos e professores nas salas de aula, bedéis nos corredores e funcionários da administração nos escritórios. Assim, o amor pelos estudos dera lugar, no caso de muitos colegas, à espera pela aposentadoria. Sonhavam com o dia em que ela os libertaria da impertinência dos alunos, da tirania de seus superiores e da maldade do mundo. Eram motivados graças a uns bons pitos para entrarem na linha e a umas apreciações pedagógicas. Muitos foram ficando tristes e amargos. Segundo os casos, eram tímidos e trancados - como que esbofeteados pela vida

162 Woody Allen, em Stíg Bjôrkman. Woody Allen por Woody Allen, p. 23.

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- ou exageradamente extrovertidos, falando em alto e bom som para mostrar que não eram nada trouxas mas que ainda assim a estima e as apreciações de seus superiores equivaliam a tudo o que a vida lhes havia recusado.163

No Brasil, somos estas pessoas ranzinzas, tristes e amargas, reclamando do controle que legitimam? Pior?

Talvez, em parte, e em certos momentos - quando perdemos momentos preciosos da vida lendo, não bons livros, mas pilhas de provas de alunos, provas essas recheadas de besteiras estimuladas pelas perguntas bestas que lhes fizemos. Ou quando estamos tomando conta de provas, nossas próprias ou de colegas, andando entre as filas não como mestres, mas como guardas ou bedéis (ou idiotas, se pensarmos nos alunos que colam rapidinho às nossas costas).

Há, sem dúvida, outros momentos, digamos, melhores, quando sentimos que uma aula foi especialmente boa e interessante, ou quando percebemos que certos alunos nos elegeram como Mestres, isto é, como referenciais provisórios para as suas vidas. Por eles, tudo vale a pena? Não sabemos. Não sabemos se a alma já não foi ficando pequena. Mas, se não nos cabe, se não nos é possível abolir a escola, ou ao menos abolir a forma do exame, não seria possível ampliar a presença do princípio medice, cura te ipsum?

Começa a se esboçar algo semelhante a uma solução - a uma proposta pragmática para resolver de uma vez por todas o problema da cola e assim requalificar toda a avaliação escolar.

Cada aluno nosso vai ser, sempre, aquilo que ele quiser ser, aquilo que ele fizer do que aprendeu, dentro e fora da escola. Poderíamos encostar o afã de controlá-los, de controlar seus saberes e seus pequenos grandes crimes, economizando energia para promover trabalhos e leituras, para ofertar-nos aulas melhores, cuidando de nós mesmos, curando a nós mesmos. Poderíamos sugerir formas de interdisciplinaridade, bem como

163 Jean-Pierre Gattégno. A noite do professor, pp. 31-2.

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redução de disciplinas no currículo - com o concomitante oferecimento de cursos optativos. Poderíamos pensar na progressiva evolução das nossas maneiras de ensinar para um sistema de aulas magnas e tutoria, articulado com bibliotecas, multimeios, laboratórios, excursões, Internet... Há muitas coisas que poderíamos, ou deveríamos mudar - mas vamos nos ater ao título do livro, portanto à questão da cola. Vamos nos limitar a uma única proposta - que, cremos, parte do centro do problema. A solução apresentada é, antes de mais nada, uma solução semântica (o que não quer dizer, irrelevante). A solução apresentada é simples, tanto que podemos sintetizá-la em dois momentos e em duas linhas.

Primeiro, rebatizar a cola, que passa a trazer o nome de consulta. Em seguida, descriminalizá-la, tornando-a necessária.

Em todas as avaliações, todas as provas, todos os exames, a consulta, antiga cola, deve ser permitida, ou melhor, reconhecida como necessária. Em todos os exames, de todas as matérias, toda resposta do aluno deve ser justificada, não só com os cálculos, mas, principalmente, com uma explicação discursiva, redigida, extensiva, dos passos do seu raciocínio.

A múltipla escolha persistirá, enquanto continue a existir nos concursos públicos - mas toda questão de múltipla escolha passa a cobrar a justificativa correspondente do aluno a respeito de todas as ”opções”: a certa, e as erradas. Nas séries que precedem os concursos públicos, cabe, naturalmente, treinamento específico, treinamento esse que não precisa adormecer o senso crítico de alunos e de professores.

O aluno poderia também consultar o trabalho do colega? Sem dúvida. Preservando-se um certo ambiente, um certo clima de silêncio, a consulta ao colega simula a situação de trabalho coletivo usual nas empresas, nas redações dos jornais, nos escritórios e consultórios. Trocar idéias, e mesmo respostas, com o vizinho, não o exime de construir a sua justificativa

- que é o que importa. Se soube defender sua resposta, tanto faz se com muita ou pouca ajuda alheia, ele aprendeu - algum mestre deseja, conscientemente, outra coisa?

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O construtivismo, desde Piaget, nos diz há bom tempo que importa o porquê se respondeu de tal ou qual modo, menos do que o conteúdo da resposta em si (como nos lembra Patrícia Lins e Silva, em palestra de 3 de fevereiro de 1997). Por que você respondeu isto? é a pergunta-chave do professor, a replicar sempre que receber uma resposta do aluno, muito antes de determinar, certo, ou, errado.

Aplicando a dúvida metódica, cartesiana, às suas práticas, o professor pode relegar a quinto plano a necessidade de, em cada exame, ”cobrar” todo o programa, toda a matéria. Não é necessário um número grande de questões, a menos que se queira continuar a fingir que se pode ensinar tudo (e mais um pouco); a menos que se queira insistir na ilusão de controle do saber alheio. Deveriam bastar duas ou três perguntas abrangentes, que demandassem dos alunos, justamente, consulta, para construção elaborada de uma resposta interessante - perguntas que refletissem os interesses do aluno, cujas respostas interessassem ao professor como leitura, e não como castigo, ou karma.

Essa solução, que cremos semântica mas não inócua, desde que cortasse horizontal e verticalmente toda uma escolaa - em todas as disciplinas e em todas as séries -, quebraria o eixo da, na famosa expressão de Paulo Freire, ”educação bancária”, na qual o conhecimento é reificado como ”moeda podre”: o professor dá a matéria na aula, cobra na prova com juros e correção monetária, o aluno devolve sempre faltando algum valor importante e, depois, esquece, ou seja, amplia seu débito. Transformar a cola (in)conveniente em consulta necessária assume o conhecimento como um constructo infinitum, relativizando toda avaliação, portanto todo exame, dentro do contexto dos processos de construção do saber.

Não é pouca coisa.

Exames e provas com consulta tendem a ser até mais difíceis, qualquer aluno sabe - mas sente que tem sua inteligência respeitada. A aceitação da novidade, por parte dos alunos, não seria problema. Forçoso admitir, entretanto, que, entre os professores,

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haveria alguma (ou muita) resistência. A resistência é saudável. Todos estamos cansados de soluções de gabinete, de soluções de papel. A resistência é saudável porque chama a atenção para outras questões. A mudança proposta é simples transformar a instituição consentida da cola na instituição da consulta necessária e cotidiana -, mas não seria pequena, afetando as práticas de sala de aula, de elaboração de testes e provas, de correção e avaliação destes testes e provas.

Na verdade, qualquer mudança mais ou menos profunda é muito difícil em uma escola cujos professores sejam horistas, isto é, com seu tempo tão fragmentado quanto as disciplinas que ministram. Modificar a relação dos professores com o saber, com os alunos e com os exames exige, como contrapartida, que a instituição, pública ou privada, modifique na raiz sua relação com os seus profissionais. Modificar a relação global com o conhecimento depende de alterar, concomitantemente, a relação global com o trabalho. Essa mudança mais ampla, entretanto e infelizmente, foge ao escopo deste trabalho

- donos e diretores de escolas particulares, secretários de educação e diretores de escolas públicas, é que não podem fugir dela.

Pedindo desculpas, aos leitores, pela imodéstia, acreditamos haver construído, sem ser especialmente originais, uma solução interessante, envolvendo e aproximando as disciplinas da escola na promoção de determinado nível de transdisciplinaridade, através de um alicerce ético. Acreditamos que os professores precisamos aprender a desconfiar de toda intenção de controle. Precisamos depor algumas armas (restando-nos sempre nosso saber e nossa mestria), até para conquistarmos mais ”moral”, perante os alunos e a sociedade - abdicar de parte das funções policiais de que nos investiram modificaria, de maneira microscópica mas substantiva, o nosso lugar social.

Tentamos demonstrar que o controle tende a ser, primeiro, ineficiente, e depois, perverso - gerando o avesso do que suas ”boas” intenções pregam. Gostaríamos de acrescentar que, além de ineficiente e perverso, o esforço de controle, por parte

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dos controladores, é altamente estressante, envelhecendo-nos prematuramente. O controle, portanto, é ineficiente, perverso, e burro.

O controle só não é estúpido para o sistema como um todo, que se perpetua e se reproduz graças à legião de micropoderes que representamos. Mas o ”sistema”, por definição, não tem rosto, não tem corpo - não merece tanta fidelidade assim, de nossa parte. Propõe-se, aqui, uma outra fidelidade: ao enigma, à incerteza; ao que todos podemos ser e não temos, felizmente, como saber.

Todavia, algumas ressalvas se impõem. A solução desta segunda parte tem, na sua força, o seu inconveniente: só pode ser testada se toda a administração de uma escola, direção e coordenação, bem como todo o corpo docente, fizerem a mesma aposta. Talvez a solução se ressinta da mesma falha visceral que afeta os sistemas utópicos: na melhor das hipóteses, uma boa descrição crítica da conjuntura presente, que não leva, necessariamente, a alguma alternativa decente para o futuro. É muito mais fácil dizer o que não se quer, o que estaria errado, do que afirmar o que se quer, o que seria o certo.

De dentro da crítica mesma pode emergir outro defeito da saída apresentada. Não lembramos Freud, que considerava três as profissões impossíveis, a saber, psicanalisar, governar e educar? Uma vez que educar se baseia, como psicanalisar e governar, no poder que um homem pretende exercer sobre outro, poder esse anulado pelo inconsciente, pelo que, em suma, não se pode saber, propostas pedagógicas surgiriam natimortas.

Não nos apoiamos em Foucault, que justamente estuda a microfísica do poder para demonstrar que toda intenção pode portar seu avesso, toda instituição sua sombra negativa, todo ser seu abismo e seu limite escuro? Transformar a cola em consulta não poderia ser apenas mais um joguinho de palavras, sonhando com uma reconstrução da moral na escola enquanto produz, sem o perceber, outras formas de controle, quem sabe mais eficientes e perigosas?

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Não vimos que a lógica de Eros passa pela lógica de Tanatos, na medida em que se deseja o que nunca é nem atual nem presente, em que se deseja não essa mulher, que é real, mas sua posse (que não é possível), em que se deseja não a obra, que fazemos, mas a glória (que esperamos), em que se ama, enfim, não o aluno à nossa frente, mas somente aquele que não existe (porque o queremos ”formar”)?

Propor uma alternativa pedagógica libertadora que elida o controle não seria contraditório em seus próprios termos, se a pedagogia é, por definição, a arte de conduzir os moços para uma meta que a priori não poderia ter sido estabelecida por eles?

É possível. Tudo isso é possível.

Mas não temos como saber. Nossa solução certamente carrega boa probabilidade de ser canhestra (se humana). Mas o quanto, e como, se pode saber só-depois. Algo, sempre, deve ser feito. Na verdade, algo, sempre, será feito (ou refeito). O passado contém infinitamente mais elementos, para ser observado e criticado, do que o futuro, ou do que uma idéia para o futuro, simplesmente porque o futuro ainda não há. Pensar eticamente o passado implica tanto homenageá-lo quanto superálo. Propor idéias para o futuro, propor-se em disponibilidade de ação e risco para o futuro, implica admitir-se e oferecer-se, igualmente, à sua crítica. As invenções humanas começam pálidas, meras frases, e depois se tornam, ao mesmo tempo, brilhantes (na melhor das hipóteses) e sombrias (porque portam sempre as suas próprias sombras). Geram-se, desde então, novas frases (no começo, pálidas).

Se as escolas vão implantar as nossas idéias é de somenos, porque foge, e ainda bem que foge, ao nosso controle. Importa, antes, continuar refutando o platonismo: refutar o platonismo é preciso. A menor de nossas ações, o menor de nossos prazeres, a menor de nossas alegrias cumpre esse objetivo.

Há ação, há prazer, há alegria cada vez que desejamos o que fazemos, o que temos, o que somos ou o que existe, em

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suma, cada vez que desejamos aquilo que não nos falta: há ação, prazer ou alegria cada vez que Platão está errado, e isso diz muito sobre o platonismo!164

Se para Platão o desejo é falta, para Spinoza todo desejo seria potência de agir ou força de existir (agendi potentia sive existendi vis). Na declaração do amor platônico, eu te amo pelo que você não é (e é isto que você não é nem tem que deve me dar), e te deixo pelo que você é (pela falta mesma que moveu a paixão) - o marido mau mata o príncipe encantado; a esposa que vira madrasta sufoca a bela adormecida. Na declaração do amor spinozista, ao contrário, eu te peço nada: fico feliz com a idéia de que você existe. O Deus de Bentham - a ficção de Deus, o inspetor-geral de Bentham - constrói sua onividência e onipresença a partir, justamente, da ausência. Sendo Ele mesmo todo o Bem, só pôde criar outra coisa que não Ele, isto é, só pôde fazer menos bem que Si mesmo. Deus, já sendo todo o Bem possível e não podendo, por conseguinte, aumentá-lo, só pôde criar o Mal - daí, esse nosso mundo.

Mas há um outro Deus, ou uma outra ficção de Deus, que cria de modo diferente, ainda que a falta primeira também faça parte da sua raiz. É o Deus de Simone Weil.

A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Essa resposta, esse eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura do

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